O MP pode muito, mas não
deve poder tudo!
Guilherme Octavio Batochio (*)
Sobre as discussões em torno da
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n.º 37, indispensáveis alguns
esclarecimentos. Destaque-se, de início, que no Brasil o Ministério Público
(MP) jamais teve poderes de investigação criminal, tarefa expressamente atribuída
pela Constituição às polícias judiciárias, consoante se extrai da única leitura
possível do seu artigo 144. Ao Parquet são reservadas competências específicas
(artigo 129), como patrocinar com exclusividade a ação penal pública, promover
o inquérito civil, a ação civil pública, exercer o controle externo da
atividade policial, requisitar diligências investigatórias e instauração de
inquérito policial, etc.
Acham-se muito bem definidos, como se
vê, os poderes e atribuições de cada um dos órgãos da persecução penal na Lei
Maior. E, diziam os romanos, in claris cessat interpretatio!
Não obstante, insistem alguns no
equivocado argumento de que, se ao MP está cometida a promoção da ação penal
pública, poderia ele também (por que não?) promover investigações de natureza
criminal. Afinal, "quem pode o mais (oferecer a denúncia em juízo) pode o
menos (investigar)". Sob essa perspectiva, para colocar à calva o rematado
sofisma que o raciocínio encerra, caberia indagar se à vítima, nos casos de
ação penal privada, também seria dado promover investigações e presidir
apuratórios oficiais... Quem pode o mais (promover a queixa-crime, querela não
pública) também poderia o menos (privatizar a investigação criminal
correlativa)?
Ademais, essa interpretação estrábica
da Constituição não se compadece com a vontade do povo brasileiro, manifestada
em Assembleia Nacional Constituinte. De fato, ao longo do processo que culminou
com a promulgação da Carta de 1988, não foram poucas as iniciativas que
almejavam a entrega da direção do inquérito ao MP. Todas foram democraticamente
rechaçadas, em maciça votação levada a efeito pelos constituintes, que assim
deliberaram, fortes na soberania popular. Haveria como revogar tal opção sem
emendar a Constituição? Quem estaria acima do povo? Quais artifícios
interpretativos poderiam inverter - ou subverter - a sua vontade, fonte de onde
emana todo poder? Se a proposta foi rejeitada no plenário constituinte, com que
autoridade ou com que fundamentos pretendem alguns dar interpretação "elástica"
ao que ficou soberanamente positivado na Carta da Nação? Quem se poderia lançar
a tão temerária empresa?
Argumenta-se também que só no Brasil
e em três outros países o MP não presidiria as investigações criminais. Será
mesmo verdade? Dando-se de barato que seja isso procedente, fixemos vista à
desconversável realidade dos fatos. Assinale-se, nesse diapasão, que o sistema
repressivo e a estrutura do MP nos países invocados para comparação são
inteiramente diversos dos nossos.
De outro lado, nas democracias consolidadas
em que o MP possui estrutura orgânica, não detém ele, nem de longe, os poderes
e as superlativas garantias que ostenta no Brasil. Na Alemanha, na Espanha e em
Portugal, por exemplo, não há independência funcional, agindo seus membros sob
a autoridade dos superiores hierárquicos (na Espanha, aliás, o chefe da
instituição nem sequer precisa ser integrante da carreira).
Na citada República Alemã (onde não
há inamovibilidade nem vitaliciedade) o tema é alvo de intensa discussão, eis
que, detendo o órgão acusatório o monopólio da investigação, seria ele senhor
absoluto do que deve e do que não deve ser levado ao crivo do Judiciário,
cenário que tem sido apontado como manifestamente inconveniente e pouco
republicano... Em França, de outro bordo, além de o membro do MP vincular-se à
orientação do chefe da instituição (sem autonomia funcional, pois), não há a
garantia da inamovibilidade.
No ordenamento italiano, a despeito
de conduzir o MP as primeiras investigações, concluídas as apurações o juízo
sopesará a viabilidade da acusação em audiência preliminar, em que são
produzidas provas, da qual participam as partes, observado o contraditório. Só
então se instaura, se for o caso, o giudizio, a fase de julgamento, que deverá
ser conduzida por outro magistrado, a quem não são submetidos os adminículos
colhidos pelo MP nas chamadas indagini preliminari. Registre-se, aliás, que no
Direito peninsular é dado à defesa igualmente promover investigações,
equilibrando-se a par conditio.
Como se percebe, não há medidas
isométricas que se prestem a comparar espécies tão diferentes; logo, o
incabível cotejo de tão diferentes realidades abriga o risco de se incorrer em
equívoco (e para ele arrastar a opinião pública).
Sepultada a PEC 37 se estará gerando
um Leviatã, com poder de promover investigação criminal secreta, unilateral,
seletiva - inaceitável no Estado Democrático de Direito. Além disso, ela se
processará ela sem nenhum controle jurisdicional e com resultado destinado ao
próprio investigador, em violação das mais caras garantias processuais do
cidadão.
Emblemático o ocorrido na Itália
durante a chamada Operação Mãos Limpas, em que o então procurador Di Pietro
teve de renunciar ao cargo, tangido por comprovadas denúncias de escabroso
abuso de poder...
Por derradeiro, e sobre impunidade,
tome-se de exemplo o caso Banestado, no qual o MP levou quase um ano e meio
para dar seu parecer, o que também contribuiu para a prescrição (instituto tão
hostilizado pelo Parquet).
Fica-se a imaginar o que viria a
acontecer se o Ministério Público, além de suas relevantíssimas atribuições
ordinárias, viesse a assumir as afetas à polícia judiciária...
Quem (pelo volume do trabalho) não
tem podido o menos conseguirá poder o mais?
(*) É advogado criminal, conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil. É membro da Comissão de Defesa da Constitucionalidade da Investigação Criminal da OAB-SP
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