segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

FERNANDO SABINO NO ENCONTRO DAS ÁGUAS

A crônica do renomado escritor brasileiro é parte de sua obra: Encontro das Águas – Crônica irreverente de uma cidade tropical – (1977), com prefácio de Márcio Souza. O realismo do texto denuncia a barbárie, como expressão do capitalismo neocolonial na Amazônia. Se no passado falava de ”integração”, hoje mascara sua prática falando em “sustentabilidade”. Fernando Sabino, em sua crônica, discute a política de desenvolvimento regional centrada na “exploração predatória”, que busca transformar as nossas florestas e rios em um “centro produtor de valores, integrados na economia nacional”. No entanto, futuramente, afirma o autor: “talvez amanhã a riqueza de um povo seja medida pelos seus esforços a favor da conservação da Natureza, do seu ambiente natural, ou seja pela capacidade de conseguir preservar a sua própria alma”. Nivaldo Santiago, citado pelo cronista, foi um dos primeiros maestros à frente do nosso Conservatório de Música e, juntamente como sua mulher, Socorro Santiago, contribuiu para a criação do Curso de Educação Artística na Universidade Federal do Amazonas. Finalmente, deixe-se seduzir pelo saudoso Fernando Sabino, mergulhando na leitura do Encontro das Águas.

Estamos no hotel, arrumando as malas. É o nosso último dia de Manaus. Como despedida, fomos ver hoje o encontro das águas.

Dois rios que se juntam, que tem isso de tão extraordinário? Um escuro como mate, cheio de matéria orgânica em suspensão; outro, claro e de águas barrentas, da cor de café-com-leite: o Negro e o Solimões, que se encontram para formar o Amazonas.

Que se encontram e não se misturam ao seguir o mesmo curso. Eis tudo que há para ver: uma grande extensão de água, aqui de uma cor, ali de outra – e a barca cruzando de cá para lá a fim de que possamos ver de perto a junção dos dois fluxos distintos. Seria apenas uma curiosidade a mais, se de súbito não assumisse aos meus olhos as proporções de um símbolo.

Tudo aqui parece encerrar um sentido simbólico; os rios, a florestas, os animais e as plantas, os próprios homens. Aqui a natureza nos dá a sensação vertiginosa de que um dia fomos deuses. Aqui a alma se expande até perder-se no vazio onde o espaço e o tempo se confundem, para reencontrar-se numa vida além da vida, em que tudo se harmoniza – tempo e espaço, civilização e natureza, homens e deuses – numa perfeita integração.

Integração. É preciso integrar a Amazônia. Colocá-la sob nossa soberania, captar a sua força, usufruir de sua riqueza, incorporar seu território ao nosso destino de nação civilizada. E Manaus é o posto avançado de uma nação civilizada. Cabeça-de-ponte, como se diz nas guerras de conquista. A Amazônia tem de ser conquistada.

Mas há conquistas e conquistas – as da guerra e as da paz. Houve um tempo em que se procurou conquistá-la pela força – e os desbravadores só fizeram violentá-la pela barbárie, deixando em seu rastro o vilipêndio e a morte. Abandonada à sua própria sorte durante anos, voltou a ser vitima da cobiça, desta vez através da exploração predatória. As água e os tempos rolam, e se vê novamente ocupada – agora pelos que lhe oferecem o ensejo redentor da integração.

O que significa que a Amazônia deixará de ser no mapa apenas aquela região enorme por onde corre o maior rio do mundo – em volume dágua – de que nos falava a professora. De fornecedora de matérias-primas, passará a ser ela própria um centro produtor de valores, integrados na economia nacional.

Mas há valores e valores – os da Amazônia não serão apenas os produtos industriais e os bens de consumo, mas aqueles que constituem a sua maior riqueza, a integrar-se também na cultura brasileira.

Que valores são esses? Talvez seja os mesmos de um pequeno país africano como o Zaire, na palavra do seu Presidente:

“A herança que nos legaram nossos antepassados é a beleza natural de nosso país. São os nossos caudais, nossos rios, nossas florestas, nossas montanhas, nossos animais, nossos lagos, nossos vulcões e nossas planícies. Em uma palavra: a Natureza é parte integrante, inseparável e real da nossa essência peculiar.”

“Aqueles que se encontram na fase de industrialização estão correndo constantemente o perigo de empobrecimento de se desnortearem em vários rumos. Talvez amanhã a riqueza de um povo seja medida pelos seus esforços a favor da conservação da Natureza, do seu ambiente natural, ou seja, pela capacidade de conseguir preservar a sua própria alma.”

Esta, a consciência já despertada em sociólogos, artistas, escritores, poetas, jornalistas, arquitetos, paisagistas de nosso país: a de que a integração da Amazônia tem de significar uma harmonia de valores distintos, uma relação da coexistência sem predomínios, que não afete a integridade de sua natureza e suas tradições. Um encontro como o das águas de seus grandes rios.

Arrumadas as malas, ficamos aguardando a hora de partir. Seguiremos de volta ao Rio num avião que fará escala em Manaus à meia-noite, procedente do México. No último instante Nivaldo Santiago e sua mulher aparecem para se despedir. O maestro não esconde sua alegria

– conseguimos – anuncia, os olhos brilhando.

- Conseguiram o que?

Conta-nos que em breve irá ao Rio para contratar músicos: o governador assinou o ato criando a orquestra sinfônica de Manaus. É uma boa notícia: para celebrar, consumimos o resto de uísque que sobrou de meu primeiro dia. E eles se vão, deixando-nos a sós – integrados, nós próprios, em terna harmonia. Já nos despedimos dos outros amigos que fizemos aqui. E já dissemos adeus a Manaus. Agora vamos partir. Manaus, Manaus! Em breve estaremos lá em cima e esta cidade que durante alguns dias me desnorteou com suas contradições, me entusiasmou com sua grandeza, me deprimiu com seus problemas, me seduziu com seus encantos não será mais do que um ponto de luz cercado pela escuridão. De luz e de esperança.

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