Aquiles Pinheiro (*)
O conceito de identidade acompanha as concepções de sujeito ou seja a “noção de pessoa”, a noção de “eu”. Sabemos, a partir do estudo clássico de Marcel Mauss, que “noção de pessoa”, a noção de “eu” – como uma das “categorias do espírito humano”–, foram socialmente construídos e naturalizados ao longo de lento e complexo processo histórico, cujo percurso nos é apresentado por Mauss, nas seguintes palavras:
De uma simples mascarada à máscara; de um personagem a uma pessoa, a um nome, a um indivíduo; deste a um ser com valor metafísico e moral; de uma consciência moral a um ser sagrado; deste a uma fonte fundamental do pensamento e da ação, foi assim que o percurso se realizou. (MAUSS, 1974, p. 397).
Assim sendo, a partir de Mauss, a tradição antropológica acostumou-se a pensar que a idéia de identidade referida a uma pessoa singular, a uma individualidade específica, é resultado dessa construção. De modo que, a própria noção que temos hoje, de pessoa, de individualidade e singularidade e que está associada à ideia de “permanência”, é uma criação recente de nossa história.
De acordo com Mauss, a ideia de pessoa provém da palavra latina persona que designa máscara, na qual está implícita, a referência à atuação daquele que fala por trás da máscara. Entretanto, segundo a antropóloga Maria Lúcia Montes, quando olhamos para outras sociedades, o que vemos por trás da máscara não é o indivíduo, não é uma pessoa singular que a reveste, mas, ao contrário, é a própria máscara que é o essencial.
Assim, em muitas sociedades não-ocidentais é a máscara que tem uma identidade, é ela que representa uma função e um papel social, cabendo aos indivíduos tão somente dar voz a ela, ou seja, preencher o papel, dar significado a uma função social. A máscara, mais do que aquele que lhe empresta a voz é o que é significativo em outras sociedades.
Portanto, a idéia que temos, de que cada pessoa tem um nome, que a identidade de uma maneira singular é algo que praticamente todas as sociedades não-ocidentais desmentem categoricamente. Por exemplo, os zuni e os pueblos citados por Mauss, são grupos que têm um estoque limitado de nomes próprios para determinadas funções sociais e, assim, quem exerce uma dessas funções tem de levar este nome e não outro. Em sociedades xinguanas, a cada transformação da vida social do indivíduo, alteram-lhe o nome.
Em seu livro Interpretação das Culturas (1978), Clifford Geertz mostra que em Bali a simples idéia de que alguém devesse ter um nome próprio seria uma coisa assustadora, pois nessa cultura a ideia de individualidade é vista quase como uma ameaça, isto porque nas aldeias balinesas toda a idéia de organização social e a própria interação entre as pessoas são articuladas de modo a negar certos papeis e funções. Em outras palavras, nessa sociedade como em outras sociedades não-ocidentais, á máscara é o que importa mais que a pessoa, isto é, o nome atribuído à função é o que importa muito mais do que o nome da pessoa ou do indivíduo que a exerce.
Vemos assim que a idéia de identidade produzida por este nosso sistema de identificação, em que se imagina que ela signifique permanência de alguma coisa sempre igual a si mesma, é algo que a história das culturas e das sociedades humanas contradiz de maneira categórica.
Avançando na discussão e contextualizando para os dias atuais, o que se observa é que as sociedades contemporâneas se caracterizam cada vez mais, pela mudança constante em oposição às “sociedades tradicionais”, referidas por Lévi-Strauss como sociedades “frias”, sem história ou impermeáveis ao fluxo da História. Em tais sociedades, os valores são perpetuados de geração em geração, conforme assinalado por Stuart Hall (2000, p. 25), “as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”.
O que está em questão, portanto, é a mudança desse sujeito dotado de uma identidade unificada e permanente para o sujeito pós-moderno, que não possui uma identidade essencial, unificada e fixa, mas, antes se torna fragmentado, composto por várias identidades que, por vezes, são até mesmo contraditórias, conforme afirma Stuart Hall:
O sujeito contemporâneo assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas [...]. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia (HALL, 2000, p.13).
Nesse sentido, Denys Cuche (2002), afirma que a identidade se refere, ao mesmo tempo, à inclusão e exclusão, sendo constantemente construída e reconstruída no interior das trocas sociais e se caracterizando pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social. Para este autor: “A identidade permite que o indivíduo se localize em um sistema social e seja localizado socialmente. [...]. Todo grupo é dotado de uma identidade que corresponde à sua definição social” (CUCHE, 2002, p. 177).
O mesmo autor defende o aspecto dinâmico da identidade, afirmando que esta possui um caráter de alteridade:
Não há identidade em si, nem mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra. Ou seja, identidade e alteridade são ligadas e estão em relação dialética. A identificação acompanha a diferenciação. (CUCHE, 2002, p. 183).
Ao afirmar o caráter dinâmico da identidade, uma vez que esta se constrói na dinâmica de identificação e diferenciação, Cuche (2002, p. 183) afirma sua preferência pelo conceito de “identificação de Galissot” (1987), em detrimento do conceito de identidade. Isto porque, segundo Simon (1979, p. 24) citado em Cuche (2002, p. 184), a identificação pode funcionar como afirmação ou como imposição de identidade. A identidade é sempre uma negociação, uma concessão entre uma ‘auto-identidade’ definida por si mesmo e uma ‘hetero-identidade’ ou uma ‘exo-identidade’ definida pelos outros”.
Para Cuche (2002), a situação relacional definirá se a “auto-identidade” terá maior ou menor legitimidade do que a “hetero-identidade”, nos remetendo à problemática da constituição identitária no jogo das lutas sociais, uma vez que numa situação de dominação a hetero-identidade pode determinar a estigmatização de grupos minoritários através da construção de uma identidade negativa. Podemos relacionar esta análise à compreensão de Pierre Bourdieu (1989) de identidade como luta de poder.
Assim como Hall (2000), Cuche (2002) afirma que não podemos considerar a existência de uma identidade fixa ou “pura”. Como construção social, a identidade está inserida na complexidade social, onde cada indivíduo possui diferentes vinculações através das quais fabrica sua própria identidade. Pode-se falar então do conceito de identidade sincrética, em que “cada um integra, de maneira sincrética, a pluralidade de referências identificatórias que estão ligadas à sua história” (CUCHE, 2002, p. 195).
Referências:
BORDIEU, P. A identidade e a Representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região. In: O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. 2. ed. Tradução: Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2002.
GALISSOT, René. (1987), Sous l’identité, le processus d’identification. L’Homme et la Societé, n.º 83, p. 12-67.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro.11. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo, EDUSP, 1974.
MONTES, M. L. Raça e Identidade: entre o espelho, a invenção e a ideologia. s/d.
SIMON, Pierre-Jean. Ethnisme et racisme ou École de 1492. Cahiers Internationaux de Sociologie, v. 48, p. 119-152, jan./juin. 1970.
(*) É pesquisador do NCPAM e pós-graduando em antropologia na UFAM.
O conceito de identidade acompanha as concepções de sujeito ou seja a “noção de pessoa”, a noção de “eu”. Sabemos, a partir do estudo clássico de Marcel Mauss, que “noção de pessoa”, a noção de “eu” – como uma das “categorias do espírito humano”–, foram socialmente construídos e naturalizados ao longo de lento e complexo processo histórico, cujo percurso nos é apresentado por Mauss, nas seguintes palavras:
De uma simples mascarada à máscara; de um personagem a uma pessoa, a um nome, a um indivíduo; deste a um ser com valor metafísico e moral; de uma consciência moral a um ser sagrado; deste a uma fonte fundamental do pensamento e da ação, foi assim que o percurso se realizou. (MAUSS, 1974, p. 397).
Assim sendo, a partir de Mauss, a tradição antropológica acostumou-se a pensar que a idéia de identidade referida a uma pessoa singular, a uma individualidade específica, é resultado dessa construção. De modo que, a própria noção que temos hoje, de pessoa, de individualidade e singularidade e que está associada à ideia de “permanência”, é uma criação recente de nossa história.
De acordo com Mauss, a ideia de pessoa provém da palavra latina persona que designa máscara, na qual está implícita, a referência à atuação daquele que fala por trás da máscara. Entretanto, segundo a antropóloga Maria Lúcia Montes, quando olhamos para outras sociedades, o que vemos por trás da máscara não é o indivíduo, não é uma pessoa singular que a reveste, mas, ao contrário, é a própria máscara que é o essencial.
Assim, em muitas sociedades não-ocidentais é a máscara que tem uma identidade, é ela que representa uma função e um papel social, cabendo aos indivíduos tão somente dar voz a ela, ou seja, preencher o papel, dar significado a uma função social. A máscara, mais do que aquele que lhe empresta a voz é o que é significativo em outras sociedades.
Portanto, a idéia que temos, de que cada pessoa tem um nome, que a identidade de uma maneira singular é algo que praticamente todas as sociedades não-ocidentais desmentem categoricamente. Por exemplo, os zuni e os pueblos citados por Mauss, são grupos que têm um estoque limitado de nomes próprios para determinadas funções sociais e, assim, quem exerce uma dessas funções tem de levar este nome e não outro. Em sociedades xinguanas, a cada transformação da vida social do indivíduo, alteram-lhe o nome.
Em seu livro Interpretação das Culturas (1978), Clifford Geertz mostra que em Bali a simples idéia de que alguém devesse ter um nome próprio seria uma coisa assustadora, pois nessa cultura a ideia de individualidade é vista quase como uma ameaça, isto porque nas aldeias balinesas toda a idéia de organização social e a própria interação entre as pessoas são articuladas de modo a negar certos papeis e funções. Em outras palavras, nessa sociedade como em outras sociedades não-ocidentais, á máscara é o que importa mais que a pessoa, isto é, o nome atribuído à função é o que importa muito mais do que o nome da pessoa ou do indivíduo que a exerce.
Vemos assim que a idéia de identidade produzida por este nosso sistema de identificação, em que se imagina que ela signifique permanência de alguma coisa sempre igual a si mesma, é algo que a história das culturas e das sociedades humanas contradiz de maneira categórica.
Avançando na discussão e contextualizando para os dias atuais, o que se observa é que as sociedades contemporâneas se caracterizam cada vez mais, pela mudança constante em oposição às “sociedades tradicionais”, referidas por Lévi-Strauss como sociedades “frias”, sem história ou impermeáveis ao fluxo da História. Em tais sociedades, os valores são perpetuados de geração em geração, conforme assinalado por Stuart Hall (2000, p. 25), “as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas”.
O que está em questão, portanto, é a mudança desse sujeito dotado de uma identidade unificada e permanente para o sujeito pós-moderno, que não possui uma identidade essencial, unificada e fixa, mas, antes se torna fragmentado, composto por várias identidades que, por vezes, são até mesmo contraditórias, conforme afirma Stuart Hall:
O sujeito contemporâneo assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas [...]. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia (HALL, 2000, p.13).
Nesse sentido, Denys Cuche (2002), afirma que a identidade se refere, ao mesmo tempo, à inclusão e exclusão, sendo constantemente construída e reconstruída no interior das trocas sociais e se caracterizando pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social. Para este autor: “A identidade permite que o indivíduo se localize em um sistema social e seja localizado socialmente. [...]. Todo grupo é dotado de uma identidade que corresponde à sua definição social” (CUCHE, 2002, p. 177).
O mesmo autor defende o aspecto dinâmico da identidade, afirmando que esta possui um caráter de alteridade:
Não há identidade em si, nem mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra. Ou seja, identidade e alteridade são ligadas e estão em relação dialética. A identificação acompanha a diferenciação. (CUCHE, 2002, p. 183).
Ao afirmar o caráter dinâmico da identidade, uma vez que esta se constrói na dinâmica de identificação e diferenciação, Cuche (2002, p. 183) afirma sua preferência pelo conceito de “identificação de Galissot” (1987), em detrimento do conceito de identidade. Isto porque, segundo Simon (1979, p. 24) citado em Cuche (2002, p. 184), a identificação pode funcionar como afirmação ou como imposição de identidade. A identidade é sempre uma negociação, uma concessão entre uma ‘auto-identidade’ definida por si mesmo e uma ‘hetero-identidade’ ou uma ‘exo-identidade’ definida pelos outros”.
Para Cuche (2002), a situação relacional definirá se a “auto-identidade” terá maior ou menor legitimidade do que a “hetero-identidade”, nos remetendo à problemática da constituição identitária no jogo das lutas sociais, uma vez que numa situação de dominação a hetero-identidade pode determinar a estigmatização de grupos minoritários através da construção de uma identidade negativa. Podemos relacionar esta análise à compreensão de Pierre Bourdieu (1989) de identidade como luta de poder.
Assim como Hall (2000), Cuche (2002) afirma que não podemos considerar a existência de uma identidade fixa ou “pura”. Como construção social, a identidade está inserida na complexidade social, onde cada indivíduo possui diferentes vinculações através das quais fabrica sua própria identidade. Pode-se falar então do conceito de identidade sincrética, em que “cada um integra, de maneira sincrética, a pluralidade de referências identificatórias que estão ligadas à sua história” (CUCHE, 2002, p. 195).
Referências:
BORDIEU, P. A identidade e a Representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região. In: O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. 2. ed. Tradução: Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2002.
GALISSOT, René. (1987), Sous l’identité, le processus d’identification. L’Homme et la Societé, n.º 83, p. 12-67.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro.11. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006.
MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo, EDUSP, 1974.
MONTES, M. L. Raça e Identidade: entre o espelho, a invenção e a ideologia. s/d.
SIMON, Pierre-Jean. Ethnisme et racisme ou École de 1492. Cahiers Internationaux de Sociologie, v. 48, p. 119-152, jan./juin. 1970.
(*) É pesquisador do NCPAM e pós-graduando em antropologia na UFAM.
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