sexta-feira, 10 de junho de 2011

ENTRE O CÉU ESTRELADO E O PÔR DO SOL A VIDA ESCORRE MANSAMENTO NA AMAZÔNIA

Ellza Souza (*)

Seria mansa se não fosse a piracema. A viagem começou no porto da Feira Moderna mais de meio dia no barco Comandante Sena com quase vinte anos navegando pelos rios da região amazônica. Descendo o rio foram mais de oito horas de viagem. O nosso esplendoroso Encontro das Águas continua ali, vibrante e belo mas na sua margem, em direção ao Mauazinho e Colônia Antonio Aleixo, a terra desnuda e avermelhada denota o avanço insano do ser humano. Deus nos livre de um porto ali, que aumentará muito o movimento de grandes embarcações a poluir águas brancas e pretas, sem dó. O pôr do sol com suas cores azuis celestes, alaranjados e o verde das beiradas nos proporcionou um cenário dos mais belos.

O barco deslizou no rio Amazonas a noite toda até chegar a Costa da Conceição, zona rural de Itacoatiara, aqui pertinho quase 400 quilômetros de Manaus, o nosso destino final. A negritude não é mais tão intensa na paisagem. Já se vê as pequenas comunidades ao longo do rio pois a luz se faz presente e os moradores festejam a chegada da energia elétrica. No céu a lua nova resplandece e dá até para contar os zilhões de estrelas, se tiver paciência. É lindo demais.

Chegamos no local às 22 horas. Eu, Ana e Emília descemos no trapiche do Jorge, dono de um próspero sítio na região, onde passaríamos uns dias. Ali ao lado da casa de alvenaria de Jorge e Janildes, com luz, ar condicionado e outros confortos fica o igarapé do Cainãmanzinho. Por ali existem muitos outros riozinhos saídos do grande Amazonas que enfeita a frente do sítio. A ponte sobre esse igarapé foi planejada por algum político inteligente e tem grande inclinação o que dificulta a travessia da mesma principalmente dos velhos que moram no local. É difícil subir e para descer salve-se quem puder.

O amanhecer na beira do rio Amazonas é um privilégio. De manhã fui logo para o pequeno trapiche que fica no alto de um barranco mas com a cheia está com a água na escada onde sentei para molhar os pés e não só sentir aquela água friinha mas também apreciar a natureza que se descortina dali. Os peixes pulam. Está na piracema e nessa época jaraquis e matrinxãs, principalmente, descem o rio para desova. O movimento é grande no rio num vai e vem de barcos e balsas de todos os tamanhos com mercadorias como carros e calcáreo.

A todo momento encostam no trapiche, onde o Jorge tem uma taberna, as canoas de madeira e de alumínio conhecidas como “voadeiras”. Na frente do sítio tem ilhas como Trindade e Ilha Grande onde vivem várias comunidades. Dona Aleci, 82 anos, filha de alemão com cearense nascida na Ilha Grande do Suriame afirma “que o estrangeiro já levou tudo de bom que nós temos como o petróleo, o ouro e a água”.

Aliás as ilhas desse grande rio se formam “do dia para a noite”. As terras caem e são levadas pela força da correnteza formando relevos diferentes. Árvores na beira do rio são arrancadas aos poucos e seus troncos ficam à deriva o que exige maior atenção dos experientes comandantes das embarcações. A água do Amazonas, repleta de nutrientes, deixa nas várzeas uma terra enlameada e rica. Ouvi pra todo lado as pessoas satisfeitas pela fartura da terra e das águas dos abençoados rios. Só ali na Costa da Conceição, tirando os igarapés e lagos, dos grandes rios temos o Amazonas, o Madeira (o rio do ouro) que vem desembocar no rio-mar bem ali à nossa frente, o Urubu, um dos berçários dos jaraquis que empurra os peixes para o alto rio e faz a piracema nas vistas de todos e os coloca sem bandeja nas redes e malhadeiras dos pescadores. Tem ainda o Negro, que também empurra sua cota de peixes cujo berçário dos benfazejos jaraquis se encontra no nosso ameaçado Encontro das Águas e suas águas se infiltram Amazonas a dentro deixando parte das águas brancas desse rio, escuras. É tão abundante o peixe nessa época que vimos os jaraquis pular nas canoas. Os barcos ao voltarem de suas pescarias à noitinha trazem milhares de peixes que seguem para as feiras de Manaus e Itacoatiara, onde são vendidos a preços exorbitantes.

O problema do alto preço na capital não é a falta do produto mas o desperdício e a falta de apoio logístico e tecnológico aos ribeirinhos. O pequeno barco que nos trouxe de volta à grande cidade veio lotado de peixes como a gigante pirarara que segundo me disseram é vendida na feira como pirarucu. Dona Aleci garante, se referindo a essa espécie hoje escassa, que “o pirarucu está tão sabido que faz reunião no fundo do rio onde tratam da melhor estratégia para fugir do bicho homem”. As várzeas são as terras alagadas das margens dos rios. O trabalho do ribeirinho que tem suas roças de macaxeira e cultivam goiabas, graviolas, acerolas, laranjas, mamãos, cocos, várias espécies de banana como pacova e maçã, é árduo. Nessas terras próximas a capital temos plantações de cacau.

“Aqui já foi uma terra de cacaueiros, agora está sendo substituído pelo maracujá e outras frutas” dizem antigos moradores. O cacau vai todo para fora do Estado. Não existe conhecimento para a utilização do fruto no próprio sítio. O cheiro e a cor dessas frutas, principalmente a goiaba e o cacau, instigam a vontade de comê-las. Alguns mais corajosos fazem uma saborosa geléia, o vinho e o pão do cacau mas não para fins comerciais. As pessoas que moram na beirinha do rio Amazonas preferem presentear vizinhos, parentes e visitantes com aquela abundância de produtos, numa cortesia sem precedentes que já não existe nas grandes cidades.

As frutas estragam no pé o que é uma grande pena. Juntei maracujás, limões, jenipapos e trouxe na bagagem. Comprei ainda um cacho de banana prata e uma galinha gorda e caipira encomendada pela mamãe que não esquece do tempo que vivia no interior do Pará. Trazer tudo isso parece difícil mas o burburinho no pequeno motor é bem administrado e não faltou absolutamente nada.

O sol escaldante dá uma cor amarronzada aos pescadores e agricultores. Os homens são fortes e sarados pois suas atividades exigem força e coragem. As mulheres também são guerreiras e cuidam das roças, de suas casas, pescam e quase sempre têm muitos filhos. Eunice, por exemplo, uma jovem cunhantã pequena e magrinha que ajuda Janildes nas tarefas de sua grande e confortável casa, está no oitavo filho cujo mais velho tem apenas 14 anos e o mais novo tem 6 meses. A fogosa Domitila, 88 anos, diz que já dançou muito por aquelas beiradas. Mora sozinha num sítio onde planta macaxeira, cana de açúcar, algumas verduras e plantas como a “lágrima de Santa Luzia” cuja semente é utilizada no artesanato de colares e a mangarataia, uma raiz usada em xaropes e no aluá, saborosa bebida indígena que foi substituída pelo refrigerante.

Infelizmente encontramos embalagens de todo tipo nas beiras dos rios e jogados no meio da exuberante vegetação. Com o progresso chegou o plástico e os moradores não sabem o que fazer com esse material. A professora aposentada Ana, de Manaus, reuniu na escola local um grupo de alunos para juntar o lixo espalhado nas proximidades, dando algumas informações sobre o assunto. Tanta coisa para fazer mas falta a vontade política e a competência para realizar os projetos.

Um fato histórico marcante na vida da comunidade foi a visita por 45 minutos do Fernando Collor de Melo, na década de 1990. No auge, o presidente veio inaugurar o navio Osvaldo Cruz que daria suporte a saúde dos ribeirinhos, desembarcou no sítio e foi recepcionado pelo Jorge que falou em nome da comunidade. Veio gente das mais diversas comunidades.


Na viagem de volta, a dificuldade foi grande com o transporte das malas, redes, frutas e cuias doadas pela dona Domitila. No pequeno barco cerca de cem passageiros se apertam com suas redes no convés. Como um ônibus fluvial, pára em todas as comunidades entre Itacoatiara e Manaus. O entra e sai é grande de pessoas e mercadorias. Valdir, cerca de 40 anos, líder na comunidade de terra firme Benjamim Constant (40 minutos abaixo do Remanso) na Costa do Amatari, onde vivem cerca de 86 famílias, leva para a cidade produtos como acerola, laranja, tucumã e peixes. “Melhorou muito com a luz”, diz satisfeito o produtor rural. Floripe, 74 anos, treze filhos e moradora do Paraná da Eva fala, com aquele olhar sublime do mormaço amazônico, que o seu pedaço de terra e o rio estão transbordando nessa época de muita fartura.

O passeio só não foi perfeito porque me contaram que naquele paraíso muito bem protegido por sádicos carapanãs, mucuins e afins, já circulam drogas como a cocaína que não tem nada a ver com natureza, com fartura, com o Criador. Espero muito que as pacatas pessoas que vivem interior adentro e até os nossos índios saibam dar o chute merecido a quem vem macular tão preciosas vidas, de todas as espécies.


(*) É jornalista, escritora e articulista do NCPAM/UFAM.

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