domingo, 16 de setembro de 2012


Quando o setor privado faz política pública - e a sociedade ganha (mesmo)

Ana Carla Fonseca (*)

Escaldados que estamos por parcerias público-privadas em que alguns ganham e todos pagam e por operações urbanas de transparência questionável, entendo que o título acima possa suscitar muxoxos. Mas, se a cidade de amanhã se faz com as ações que tomamos hoje, nada melhor do que beber uma bela dose de otimismo, diretamente da fonte de experiências que nos lavam a alma.

Mundo afora, brotam casos de investimento privado em políticas urbanas, sociais e até de saúde pública que, com abordagens inovadoras e compromissos de longo prazo, transformam bairros, oferecem oportunidades de inclusão socioeconômica e, além disso tudo, são bons negócios. Quimera? Utopia? Nada disso! Preparem as malas mentais, para uma pequena peregrinação por iniciativas criativas.

Incensada por sua criatividade e por ter sido o estopim do debate (e da prática) da economia criativa, Londres segue à risca a intenção de se tornar o polo criativo do mundo. Nessa pauta, cabe tudo - de programas de economia criativa transversais às várias pastas de governo, a projetos de reinserção de áreas esgarçadas do tecido urbano. Caso emblemático é o da Tate Modern, museu de vanguarda e ícone visível de um processo de transformação da região de Southbank. Mas o caso que mais chama a atenção, por ser investimento privado com impacto social, é o da Old Truman Brewery.

Com raízes que remontam a 1666, a antiga fábrica de cerveja já foi a maior da cidade, no áureo século 18. Quando fechada, em 1988, lançou o bairro em um misto de desânimo e decadência. Até há cerca de 15 anos, quando o grupo The Zeloof Partnership comprou o conjunto de edifícios patrimoniais e os converteu em um microcosmo que emana economia criativa por cada um de seus 45 mil m2. Lar de 250 empreendimentos criativos das mais diversas ordens - lojas, galerias, mercados, bares, restaurantes, ateliês, escritórios, casas de eventos -, a Old Truman Brewery é um ecossistema de trabalho, lazer e efervescência, além de ímã de turistas de todo o mundo.

Investimento 100% privado, não apenas é um excelente negócio, como gera impactos econômicos, sociais, turísticos e urbanos que se irradiam por toda a região.

Outra história de derrocada e ascensão nos chega da holandesa Eindhoven. Conhecida pelos amantes do futebol por dar nome a um time de primeira, a fama da cidade foi construída graças à instalação, em 1891, da primeira fábrica da Philips. Nas décadas seguintes, o complexo de invenção e produção da empresa só fez crescer. Às lâmpadas às quais ainda hoje associamos o nome Philips vieram se somar outras invenções, saídas das pranchetas e dos laboratórios ali instalados: vidros, rádios, CDs, cerâmicas e muitos outros fizeram a glória da cidade e atraíram profissionais de todos os cantos do mundo.

Com a migração das fábricas da Philips para outros países, no doloroso processo de desindustrialização, sobraram para a cidade um contingente de desempregados e um complexo de fábricas desocupadas, a poucos minutos do centro. Em 2004, a incorporadora imobiliária Trudo e dois parceiros (a construtora VolkerWessels e a Prefeitura de Eindhoven) compraram o Strijp-S, um complexo de 66 acres, onde a Philips produziu de tudo. O que surgiu disso foi um plano inovador de reutilização do espaço, que hoje abriga um parque de skate, inúmeros escritórios de design e arquitetura, gravadoras musicais, ateliês de artistas, salas de eventos e exposições e toda a multiplicidade de empreendimentos que formam um ambiente criativo.

Atraídos pela vivacidade do lugar, pela disponibilidade de espaço e pelos aluguéis convidativos, profissionais descolados de Amsterdã e Roterdã passaram a considerar a outrora modorrenta Eindhoven um celeiro de possibilidades. Quanto mais pessoas criativas moram em uma cidade, mais criativa ela passa a ser; quanto mais criativa é uma cidade, mais profissionais criativos ela atrai. Por isso a Trudo tem na mira o lançamento de 240 apartamentos acessíveis em estilo loft, um mercado de alimentos regionais, um parque que lembra o High Line de Nova York e uma série de containers que servirão de locais de experimentação para artistas. Quebrando com a lógica das incorporadoras tradicionais, a Trudo conseguiu não apenas catalisar um processo de transformação da cidade, como concretizar um excelente negócio (a expectativa da empresa é de, na próxima década, ao menos dobrar seu portfolio imobiliário, hoje avaliado em 200 milhões de euros).

O exemplo mais apetitoso, porém, nos chega da pequenina comunidade de Sant Benet de Bages, encarapitada nas montanhas da Catalunha. Nela, o premiado chefe Ferran Adrià dirige desde 2007 a sede da Fundación Alicia, criada por parceria entre o Governo da Catalunha e o banco Caixa Manresa. O nome não é uma homenagem à musa do artista, mas sim o casamento de duas de suas paixões: ALImento e ciênCIA. A Fundação é um centro de pesquisas gastronômicas e inovação tecnológica, que une ciência, cultura, sociedade e gastronomia, para promover a alimentação saudável e não por isso menos atraente.

Além das pesquisas alimentares para combate aos males que nos afligem - diabetes, anorexia, hipertensão etc. -, a Fundação oferece inúmeras oficinas de conscientização de crianças, jovens e adultos, que usam e abusam da ludicidade e do encantamento. É impossível resistir à gincana das frutas, ao concurso de exercícios retribuídos por avelãs em igual número de calorias ou à vivência que atiça os cinco sentidos. Afinal, se inovação se baseia em criatividade, despertá-la é fundamental para a pessoa, a sociedade e a economia.

Três experiências distintas e inspiradoras, como tantas outras que podemos garimpar em todos os continentes. Sob medida para os que defendem que benefícios econômicos, sociais e urbanos só funcionam quando somam forças.

(*) É economista e urbanista, consultora e palestrante internacional pela Garimpo de Soluções.

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