quinta-feira, 14 de maio de 2009

DE CATIVOS A LIBERTOS: O PROCESSO DE ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA

Nesta semana em que comemoramos a libertação dos escravos, precisamos ter em mente de que o processo de abolição ainda não terminou, mesmo depois de mais de um século, pois os processos de lutas sociais são lentos e árduos. Mesmo tendo a liberdade formal, jurídica, boa parte dos afro-descendentes, ainda não conquistara a liberdade plena em seu mais completo, a cidadania do qual a elite econômica e dirigente deste país sempre gozou.

Ricardo Lima*

Sempre que a palavra África reverbera em nossos ouvidos, somos assaltados por miríades de imagens, de sons e de cheiros característicos que invocam sempre pobreza, morte, fome, e guerras.

Imaginamos também que o povo africano é uno, ou seja, que apenas é dotado de uma única matriz cultural, como se um continente de mais de 30 milhões de quilômetros quadrados e que cobre mais de 20% da área total do planeta tivesse desenvolvido, nos mais de vinte mil anos de historia do homo sapiens, um único tipo e pensar e de expressar o mundo e de se relacionar entre os seus mais de oitocentos milhões de habitantes.

Durante os trezentos anos em que o regime escravista foi uma política de Estado, cerca de cinco milhões de negros vieram para o Brasil, das mais variadas etnias, eram bantos, iorubas, negros minas, jejês, angolanos, congos, nagôs... Eram povos com as mais diferentes culturas e formas de sociabilidade, uns tinham como especialidade o comércio, outros a agricultura, alguns eram povos nômades e outros eram senhores de poderosos impérios, como foram as cidades iorubás.

A chegada dos portugueses na África remonta ao périplo africano, iniciado no inicio do século XV, com a conquista de Ceuta, importante entreposto comercial mantido sob o poder do Império Otomano desde a Idade Média. Buscavam um caminho para as índias. Desejavam quebrar o monopólio comercial imposto pelas cidades italianas e chegar á fonte do ouro comerciado por tuaregues e mulçumanos do norte da África, na atual costa de Gana. Contudo, havia uma outra razão para essa expansão marítima, a motivação espiritual de converter as populações pagãs na África através da escravidão e isolar o Islã, grande rival do cristianismo.

Mas os lusos se enraizaram em certos lugares, como nas ilhas de cabo verde e Açores, onde procuraram implantar uma indústria açucareira capaz de aumentar-lhe os lucros, cujo braço de mão de obra principal foi o escravo.

Navios negreiros percorriam toda a costa africana efetuando o comércio de pessoas com os povos locais. O pioneirismo deve-se aos portugueses, mais tarde seguidos pelos espanhóis, franceses, holandeses e ingleses. Os lusos iam buscar pessoas em Luanda, Guiné, Benin, Congo, Benguela, e Senegâmbia para concretizar empresa colonial em constante expansão.

A produção de açúcar na Brasil e no Caribe exigiu que uma demanda determinada mão de obra a fizesse funcionar, assim como o algodão nos Estados Unidos, e posteriormente a tabaco na Bahia e o café no sudeste. A ocupação do novo mundo só foi possível com ajuda de mão de obra escrava, um dos sustentáculos fundamentais da economia colonial.

O comercio de escravos era efetuado com verdadeiros impérios, como com as cidades estados iorubas de Oió e Daomé, que tinham uma parceria comercial bastante lucrativa com os mercadores europeus. Muitas filhas dos chefes africanos chegavam a casar-se com os administradores e comerciantes, que simbolizavam alianças e privilégios comerciais.

As negociações para efetuar as relações comerciais eram demoradas e muitas vezes tensas. Os comerciantes tinham de oferecer objetos que tinham grande valor para os reis, como cavalos, armas, pólvora ou barras de ferro, pois eram objetos que tinham o papel de moeda entre muitas sociedades locais.

Os portugueses tinham um contato comercial maior com as regiões da alta guiné e cabo verde, negociando com os bambaras, bijagós, beafadas e pepéis, comprando escravos de etnias como os congoloses.

É necessário frisar que, inicialmente, no comércio de pessoas, muitos escravos eram prisioneiros das guerras entre os reinos, mas um negócio efetuado entre os comerciantes europeus e os reis africanos, e seguia as regras estipuladas das tradições dos povos locais. Apesar de sua influência dos homens da Europa na estrutura do comercio de escravos ser cada vez maior, em virtude da influencia que as mercadorias européias exerciam sobre a elite africana, a ajuda militar que os europeus davam aos reis nas guerras entre os reinos, somando as outras pressões externas, os povos do continente negro ficavam cada vez mais vulneráveis aos europeus.

Lembremo-nos que no inicio o comercio de escravos obedecia ás regras dos povos africanos e que boa parte dos escravos vendidos eram prisioneiros dos exércitos vencidos nas guerras entre os vários reinos africanos.

No inicio das navegações, Portugal interessava-se muito mais pelos povos africanos e com o oriente que pelo Brasil, isso se dava em virtude do comercio feito com os reinos africanos de escravos, ouro e marfim; quanto ao oriente, havia uma intensa troca comercial de seda e especiarias. A novo mundo só viria a ter relevância para os lusos nos anos de 1530, quando a chegada de franceses e holandeses, então a região começou a preocupar a coroa portuguesa.

Para ocupar a região foi usado o sistema das capitanias hereditárias, que consistia em conceder um determinado lote de terra a um nobre para administrá-la em nome do Rei, na condição de seu vassalo. A ocupação econômica foi efetuada usando o método dos engenhos açúcar, um método já experimentado em Cabo Verde e Açores, sustentado com mão de obra escrava provinda principalmente da África.

Quando a questão dos quilombos é abordada, sua imagem vem profundamente estigmatizada como um lugar totalmente marginal da sociedade escravista, como se estes não tivessem, de alguma forma, uma relação com o mundo que pretendiam “combater”.

Os quilombos na verdade estabeleceram uma gama de complexas relações com a sociedade colonial que variavam desde a completa ruptura, indo alojar-se nos mais distantes lugares, até uma extrema proximidade, quando estabeleciam o comércio ilegal ou chegavam mesmo a negociar com as autoridades.

Uma das características dos exércitos africanos era que a nobreza ocupava os lugares mais altos das patentes militares, embora a ascensão por merecimento também seja de alguma forma possível.

Mas o que isso tem a ver com os quilombos?

Simples. Boa parte dos escravos vindos para o Brasil eram soldados desses exércitos vencidos, muitos eram grandes generais derrotados, até mesmo reis que, liderando seu exercito, perderam a guerra a pagaram com isso sendo escravizados. Então estes negros cativos, quando rebelavam-se contra os senhores e fugiam, automaticamente organizavam-se em grupos de resistência que obedeciam a uma estrutura militar, com um governo centralizado, e um corpo militar extremamente disciplinado. O próprio nome quilombo, vem do acampamento militar dos imbagales, um povo extremamente guerreiro da costa a áfrica.

Os quilombos, como foi dito, estabeleciam uma série de relações com a sociedade, mesmo que estas relações fossem tidas como clandestinas pelo estado. Muitos deles estabeleciam o comércio com os viajantes que passavam pelas estradas ou com os índios das tribos próximas aos acampamentos. Os quilombolas chegavam mesmo a tecer relações com os habitantes da periferia das cidades, onde desciam a noite para trocar mantimentos. Nos quilombos no norte do Pará, por exemplo, seus habitantes costumavam trocar armas e pólvora com os franceses da guiana.

Podiam ser também agricultores, ou simplesmente extrativistas, dependendo de sua localização e das formas de interação com a sociedade. Alguns tinham apenas alguns poucos quilombolas numa única aldeia, outros chegavam a ter centenas de milhares de habitantes unidos numa confederação de tribos com um exercito próprio e um governo bem definido, como o foi o quilombo dos palmares, que durou sessenta anos, sua organização era similar aos povos bantos da angola.

Por isso, nesta semana em que comemoramos a libertação dos escravos, precisamos ter em mente de que o processo de abolição ainda não terminou, mesmo depois de mais de um século, pois os processos de lutas sociais são lentos e árduos. Mesmo tendo a liberdade formal, jurídica, boa parte dos afro-descendentes ainda não conquistara a liberdade plena, em seu mais completo, a cidadania do qual a elite econômica e dirigente deste país sempre gozou.

África está presente em nós, portanto, e para além dos preconceitos que ainda permeiam a nossa estreita visão sobre nossas origens, será apenas conhecendo a nós mesmos, nosso passado africano, que poderemos ser melhores do que somos.

*Editor e pesquisador do NCPAM

2 comentários:

Breno Rodrigo disse...

Caro Ricardo, parabéns pela análise histórica equilibrada sobre um tema tão controverso. Certamente a questão do negro ainda é crucial para entendermos a nossa formação civilizatória – ou aquilo que chamamos genericamente de civilização brasileira. Ao lado do índio e do europeu, o negro forma o tripé da identidade nacional. E como sabemos foi o pé mais explorado, ou em outros termos, escravizado de forma brutal. Ao contrário de outras instituições políticas e econômicas, a escravidão foi muito eficiente no Brasil. Aí nos colocamos diante de uma questão relevante: a escravidão foi abolida no Brasil? Afirmo que sim. Há um século, a introdução da econômica capitalista substituiu a economia escravocrata, mas inda perpetuou aqui e acolá algumas práticas e rotinas remanescentes do modo de produção anterior. Caio Prado Jr., o maior historiador do Brasil colonial, afirma que se trata de um capitalismo desigual e combinado – uma combinação moderna da economia mercantilista com uma prática que inviabilizava a formação de um mercado consumidor de mercadorias e força de trabalho livre (este foi o grande diferencial do processo de acumulação capitalista no Brasil e nos EUA). Como já disse, trata-se de um tema importante e quente justamente por suas consequências para os dias de hoje: discriminação social-racial, cotas em universidades, inserção no mercado de trabalho e revalorização social da imagem do negro. Só gostaria de fazer uma ponderação: quando você se refere ao temo “quilombo” trata de uma forma geral, como se ainda hoje o quilombo foi o espaço do “escravo fugido”. Digo que o quilombo foi um fenômeno situado e datado exatamente do século XIX. Hoje, por convenção jurídica e econômica – e também para se evitar certos anacrônicos conceituais –, utiliza-se o termo “remanescente de quilombo” para retratar a rotina dos quilombos de ontem resignificada nos remanescentes de hoje. Jacob Gorender, em a “Escravidão Reabilitada”, faz uma análise muito importante sobre este tema. Leitura obrigatória.

Um abraço e parabéns pela discussão.

R. Lima disse...

Breno, com certeza temos que evitar comcepçãos anacronicas como "quilombos urbano", mas o uso do termo quilombo esta sendo usado como um fenomeno tipico da sociedade escravista.