terça-feira, 12 de maio de 2009

TERREIROS DE MANAUS: RESISTENCIA E REINTERPRETAÇÃO



Dentre os muitos problemas atuais existentes no tocante a questão da religião de matriz afro-brasileira na cidade de Manaus, como é o caso da intolerância religiosa, ainda perduram os ataques verbais e físicos tanto às casas quanto às pessoas que ali freqüentam. Os conflitos existentes entre os seus adeptos e as igrejas de denominações evangélicas, a problemática ou ausência de espaços para a prática da religiosidade, as implicações referentes à saúde nos terreiros, entre tantos outros temas estão na lista de prioridades a serem debatidas com maior efetividade por seus adeptos, poderes públicos e instituições de ensino e pesquisa.

Regina Medeiros*

O século XX foi palco de muitas transformações políticas, econômicas, sociais e culturais. O Brasil passou, nesse século, de um país eminentemente agrário para uma sociedade industrializada e urbanizada, inserida nos marcos dos avanços tecnológicos da modernidade.

Nesse contexto, registraram também, dentro de um processo de exclusão social, grandes fluxos migratórios inicialmente das regiões Norte e Nordeste para a Região Sudeste e, posteriormente da região Sudeste e Sul para a região Norte, acompanhando a política nacional de desenvolvimento econômico ditada pelos sucessivos governos, sobretudo no período de 1960 a 1980.

Considerando-se o processo em curso, a cidade de Manaus viu florescer uma série de mudanças que foram além da inauguração de um novo modelo de desenvolvimento econômico regional, mas, sobretudo, de uma reconfiguração sociocultural proporcionada pela ocorrência deste novo fluxo migratório, sobretudo com o advindo das novas mentalidades, em especial, com o ingresso de novos migrantes negros para o Amazonas e principalmente para a cidade de Manaus.

No Amazonas, em particular na cidade de Manaus, a economia da borracha possibilitou a criação das primeiras iniciativas oficiais em torno da organização espacial e do planejamento urbano. No entanto, com o declínio da economia gomífera a região mergulhou em um período de estagnação econômica, arrefecendo o fluxo migratório para a cidade, retomado apenas com a instalação, em 1967, da Zona Franca de Manaus.

No campo religioso, em particular do chamado afro-brasileiro, esse período, conforme Chester Gabriel (1985), um dos poucos estudiosos a ter realizado pesquisas sobre o tema, a cidade de Manaus sofreu uma profunda mudança. A instalação da Zona Franca, além de ter proporcionado um novo fluxo econômico à cidade, marcou o surgimento de novos terreiros, com a chegada de novos líderes religiosos, iniciados nas práticas da religião afro-brasileira fora de Manaus.

Nesse período, apesar da dificuldade de se promover uma distinção entre os cultos diante a tanta variedade, Chester Gabriel identificou três variedades: a mesinha de cura ou banquinha de cura, os centros e o batuque ou tambores.

Nesse sentido é correto afirmar que, sob a influência de crenças locais, como é o caso da cosmologia indígena, do crescimento em âmbito nacional da Umbanda e do Espiritismo e, em especial, do fortalecimento da religião afro-brasileira, a cidade ingressou em uma nova fase de redefinição e reconfiguração de suas práticas religiosas.

Destaca-se, para uma melhor compreensão do leitor não familiarizado com o tema, que no que diz respeito à religião afro-brasileira, a pesquisadora Mundicarmo Ferretti (1999), considera aquela que “engloba uma variedade de manifestações religiosas existentes há muitos anos no Brasil, originárias de religiões africanas tradicionais ou organizadas no Brasil há algumas décadas, onde o transe, ou a incorporação de entidades espirituais, é bastante importante”.

É importante o registro de que nesse mesmo período foram fundados os terreiros mais antigos da cidade de Manaus, a exemplo das casas centenárias do Moro da Liberdade, fundado por volta de 1900, por Joana Maria da Conceição (Joana Gama), iniciada na Casa de Nagô do Maranhão e oriunda da cidade de São Bento, também naquele estado; e do Terreiro de Santa Bárbara, conhecido como Seringal Mirim, fundado em 1908, por Maria Rita Estrela da Silva, filha de uma escrava nascida e criada em São Luiz do Maranhão. Maria Estrela fora iniciada na capital do Maranhão, na Casa das Minas.

Logo, as transformações ocorridas no campo religioso de Manaus, no que diz respeito à religião afro-brasileira, podem ser explicadas seja pelo fortalecimento das casas aqui existentes como, também, pelo ingresso de novos adeptos e líderes religiosos do candomblé, vindos de outros estados do país predominantemente dos estados do Maranhão, Pará e Rio de Janeiro.

Para esta afirmativa corrobora o trabalho de Chester Gabriel, por meio de pesquisa realizada, em Manaus, na década de 1970, quando releva que “dos 117 líderes que especificaram a data de fundação de seu centro, aproximadamente 46% tinham começado as suas atividades a partir de 1967, início da Zona Franca”.

A configuração da religião afro-brasileira se dá com o entrelaçamento de crenças, práticas, ritos e costumes de diferentes grupos étnicos africanos trazidos como escravos para o Brasil, dos quais se destacam: o primeiro grande grupo foi o do sudaneses, dividido em três subgrupos – o Yorubá, conhecido como Nagô e vindo da atual Nigéria, o daomeano, ou Ewe, conhecido no Brasil como Jeje, e os Fanti-Ashanti, provenientes da Costa do Ouro, ou Costa da Mina, conhecidos como Minas -; o segundo, com influência islâmica, os Fulas, Mandingas e Hausas; o terceiro, os Bantu, oriundos de Angola, Congo e de Moçambique.

No caso de Manaus, os termos utilizados para nomear esses locais de culto se misturam não havendo uma denominação comum para designar a religião afro-brasileira ou mesmo as casas aqui existentes. O povo-do-santo, como são conhecidos seus adeptos, costumam identificar suas casas ou locais de culto como terreiro, roça, barracão ou batuque.

Desse modo, o Candomblé surge em solo brasileiro como uma marca da resistência da memória ancestral africana frente à crueldade do sistema escravocrata, sendo sua cosmologia reelaborada, como forma de preservação religiosa, com influência decisiva das várias práticas de culto regionais. Logo o termo Candomblé é na realidade uma construção brasileira para designar a religião dos orixás (deuses africanos) que, também, pode definir o local de culto.

Por outro lado, esse processo de ressignificação das práticas africanas não pode ser dissociado da ação empreendida pela condição de muitos homens e mulheres que para o

Brasil vieram como cativos. Para o pesquisador Ivaldo de França Lima (2004), a adaptação de crenças, línguas, de usos e costumes dos negros às terras brasileiras “deve ser entendida como tentativa de manter a inteligibilidade de um mundo novo, estranho e ao mesmo tempo complexo, em que muitas de suas tradições foram refeitas, e outras sendo ressignificadas ou agregadas a outros modos e costumes”.

De um modo geral, as religiões de matriz africana têm em seu plano principal o culto aos deuses africanos denominados de Orixás para os Nagôs, Inkisses para os angolanos e Vodouns para os Jejês. Esses deuses se fazem presentes numa roda de Candomblé, por meio da incorporação de pessoas iniciadas, para dançar, fortalecer espiritualmente o iniciado e serem revividos através da celebração religiosa.

Conforme Volney Berkenbrock (1995), o “culto tem papel central no relacionamento entre Orixá e fiel. Ele possibilita o contato direto, no qual o fiel tem a possibilidade de experienciar seu Orixá pessoal com uma intimidade tal que ele coloca seu corpo à disposição do Orixá, de modo que ambos encontram-se unidos em um único corpo”.

Em Manaus, pode-se afirmar que o Candomblé tem se moldado com a presença, cada vez mais constante, de líderes religiosos vindos de outros estados, além de se caracterizar como uma religião aberta a qualquer pessoa, independente de sua origem étnica, social ou econômica. Como afirma Reginaldo Prandi (2005), essa adesão ao Candomblé é recente e que, na maioria dos casos, esses novos adeptos não possuem nenhum contato anterior com os valores, práticas e modos de agir, característicos dessa religião.

Informalmente, estima-se a existência de aproximadamente 4.000 terreiros espalhados pela cidade, conforme dados extraídos por meio de conversas com representantes das federações e associações existentes em Manaus.

Dentre os muitos problemas atuais existentes no tocante a questão da religião de matriz afro-brasileira na cidade de Manaus, como é o caso da intolerância religiosa, ainda perduram os ataques verbais e físicos tanto às casas quanto às pessoas que ali freqüentam. Os conflitos existentes entre os seus adeptos e as igrejas de denominações evangélicas, a problemática ou ausência de espaços para a prática da religiosidade, as implicações referentes à saúde nos terreiros, entre tantos outros temas estão na lista de prioridades a serem debatidas com maior efetividade por seus adeptos, poderes públicos e instituições de ensino e pesquisa.

Por tanto, em períodos em que se comemora ou se relembra a luta e resistência dos negros que aqui chegaram aos milhares, trazidos na perversa condição de escravos, de seus descendentes, não é demais lembrar que ainda é longa a caminha para que este País, por meio da via democrática, garanta igualdade, respeito e condições dignas para a celebração de seu universo cultural e religioso.


Referência:

ARAÚJO, André Vidal de. Introdução à Sociologia da Amazônia. Tenório Telles (Org.). 2ª Edição Revista – Manaus. Editora Valer / Governo do Estado do Amazonas / EDUA, 2003.

BERKENBROCK, Volney J. A Experiência dos Orixás. Um Estudo sobre a Experiência Religiosa no Candomblé. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes. 2ª Edição, 1995.

FERRETTI, Mundicarmo. “Tradição e Mudança na Religião Afro-Brasileira do Maranhão”. In: XXV Conférence de la Société Internationale de Sociologie des Religions (SISR) - Séssion Thématique: Les Religions afro-americaines aujourd´hui: permanences et transformations (Université Catholique de Leuven – Bélgica,1999.

_____________. “Entidades Espirituais Não Africanas na Religião Afro-Brasileira e Sincretismo Afro-Ameríndio”. In: CLARKE, Peter B. New Trends and developments in african religions. London: Greenwood Press, 1998, ps. 37-44. Cap.3.

GABRIEL, Chester E. Comunicações dos Espíritos. Umbanda, Cultos Regionais em Manaus e a Dinâmica do Transe Mediúnico. Edições Loyola. São Paulo, 1985.

LIMA, Ivaldo Marciano de França. “Tempo e Instituições, Lógicas Não-Ocidentais em Alguns Maracatus-Nação: da África ao Brasil, a homogeneização das diversidades”. 72 SAECULUM – Revista de História, João Pessoa. 2004.

ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. São Paulo. Brasiliense, 1999.

PEREIRA, Nunes. A Casa das Minas. Culto dos Voduns Jeje no Maranhão. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes. 2ª Edição, 1979.

PRANDI, Reginaldo. Segredos Guardados. Orixás na Alma Brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte. Petrópolis, Rio de Janeiro. Vozes. 11ª Edição, 1986.

*Cientista Social formada pela UFAM, texto adaptado para este site.

Um comentário:

Unknown disse...

Amo de paixão essa religiao afro infelizmente por uns pagam todos no qual se dizem sérios e pegam seu dinheiro suado dizendo que vão fazer aquele determinado serviço que vc acredita e precisa e te engana ai vc passa a não confiar passa a ser tudo pilantra.