domingo, 18 de julho de 2010

O LUGAR ONDE NASCI

Ellza Souza (*)

Nasci em uma colina que se esparrama à beira do rio Negro. A praia que a circundava era limpa, tinha areia e segundo os mais antigos contam muita gente vinha da “cidade”, do outro lado do igarapé, para passar horas agradáveis naquele lindo lugar. No começo da história o bairro onde nasci formava uma densa floresta com grandes árvores e muitos, muitos passarinhos e outros animais. A água da beira do rio era limpa. Do rio se tirava água para beber e para lavar as roupas. Até então o próprio Negro fazia o trabalho de desinfecção e impedia a proliferação de doenças.

Na beira já teve pedra, areia, algodoeiro, palmeiras. Um igarapé separava a colina do centro da cidade, das casas mais antigas, do castelinho, do curro. Veio a primeira ponte que segundo alguns ligaria aquele lugar a lugar nenhum. As casinhas de madeira foram sendo construídas no rio mesmo e formaram uma cidade flutuante. O povo pegou gosto por jogar o lixo no rio. Aliás uma prática antiga em Manaus. Sempre se jogou tudo que não prestava, no rio. Não importa se dessa água beberei. Com a tão sonhada segunda ponte o bairro cresceu e aconteceu o casamento entre os bairros de São Raimundo e Aparecida dos Tocos, onde se chegava até então pelas singelas catraias. Morreu a profissão do catraieiro como morreu a de bucheiro, a do magarefe, a boneca viva, o Sulão, o cine Ideal. Ficamos sem praia, sem as palmeiras, sem a gruta de Nossa Senhora de Lourdes torpemente derrubada, sem história. Com o tão ansiado progresso chegaram as drogas. De barco, a nado, a pé e a bela praia mudou de paisagem. No lugar da placidez ficou o burburinho da violência, das crianças sem infância, da miséria patrocinada pelos comerciantes da desgraça alheia. E o pior é que as tão resolutas mulheres, mães, esposas, de antes, não botaram os marginais para correr com suas vassouras. E o resultado aí está.

Agora, em nome de mais progresso ou da extinção de qualquer vestígio de memória, de beleza, de criatividade, o restinho da história está com os dias contados, dizem. Uma obra de dar inveja a qualquer faraó vem aí para colocar abaixo barrancos, as primeiras ruas (Beira Mar e Boa Vista), o pé de jenipapo que espremido e protegido por um formigueiro atravessou gerações, as casas onde nasci e cresci, a casa souza entranhada pela energia boa do meu pai, a casa dos meus avós. Um povo sem história não existe, dizem os entendidos. Para existir precisamos contar a nossa história. Viver só do presente não há “foreiver” que agüente.

(*) É Jornalista e estudiosa da cultura do Amazonas.

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