Ellza Souza (*)
Era um sonho antigo assistir a festa dos bois em Parintins, que fica na grande ilha de Tupinambarana. A viagem de ida e volta no barco Golfinho do Mar foi tranqüila apesar de longa. Mais de trezentas pessoas se apertavam rede a rede para o longo percurso singrando o rio Amazonas. São quase quatorze horas na ida e umas 18 na volta. Isso porque o Golfinho é uma embarcação muito rápida e na volta deixou para trás até o famoso navio Ibero Star.
O que vimos durante a viagem é difícil de descrever. De dia, o esplendoroso sol, ao nascer e ao se pôr dá um brilho especial aos cenários até aonde a vista alcança. O rio, a vegetação, as casinhas nas beiradas, os ribeirinhos nas canoas com produtos da floresta tentando fazer trocas e o firmamento, ganham uma textura diferente que valeu a pena apreciar. À noite quem brilha literalmente são as estrelas, zilhões delas de todos os tamanhos. A lua se exibia redonda como nunca e alaranjada como um girassol.
Na ilha, onde vivem cerca de cem mil pessoas, grande parte se envolve no festival que acontece no final de junho. São três dias de festa e no primeiro dia não consegui entrar. Aproveitei para observar as redondezas do Bumbódromo. Não gostei do que vi. Lixo pra todo lado, iluminação inadequada, ambulantes despreparados, alimentação oferecida sem higiene, som muito alto de música brega e religiosa que impedem quem não conseguiu entrar, de ouvir os acordes de seu boi. Improvisação total. Na área externa só vi um telão. No Bumbódromo cabem umas 40 mil pessoas portanto grande parte do público fica mesmo é do lado de fora. Nessa hora o melhor a fazer é se dirigir à beira do rio para olhar os barquinhos ancorados. E voltar mais cedo no dia seguinte.
Foi o que fiz. Na segunda noite já estava na fila às 17 horas. A apresentação do primeiro boi começa às 21 horas. Mesmo assim a “cobrinha” não andava o que equivale dizer que o Bumbódromo já estava lotado. Bateu uma certa angústia. Ouvi alguém falar que aquela era a fila “dos lisos”. Uma moça grávida tentou passar a mão na carteira de um homem. Ônibus e vans passam no meio da multidão levando os vips direto para os camarotes no Bumbódromo. O formando em agroecologia Luiz Roçoda, 43 anos, concorda que existem problemas como “a prostituição, aids, o lixo jogado a céu aberto, a exploração econômica, etc.” E acha que “o parintinense paga um alto preço pela realização da festa”.
Entrei no segundo dia e pude sentir a energia das galeras de perto. Fiquei do lado azul, do Caprichoso que, aliás, se tornou campeão. A apreciação do meu boi foi prejudicada pelos holofotes e pela obrigação de participar das coreografias lideradas por dois dançarinos à frente da galera. Queria fazer tudo ao mesmo tempo. Olhar o boi na arena, dançar com o público, observar tanta energia, acompanhar pelo telão. O espaço é exíguo e o calor é intenso. Mesmo assim balancei o tempo todo. Sei também que fiz publicidade de grandes empresas com os objetos do kit-coreografia. Não pude deixar de pensar naquele momento qual a contrapartida social disso tudo. Fora os lucros para essas empresas não consigo perceber os ganhos para a população da cidade.
Nesse mesmo dia, depois da apresentação do Caprichoso grande parte da galera deixa o lugar. Aí sim fiquei à vontade para assistir o boi contrário, o Garantido. E então pude observar algumas peculiaridades. Por exemplo, as gigantescas alegorias que pareciam grandes demais para passar na pequena entrada. O segredo é que elas vêm em bloco, aos pedaços, e se encaixam na arena, empurradas por dezenas de brincantes. Vi muito brilho, cores perfeitamente combinadas entre si, e a criatividade peculiar do povo parintinense, mostrada nos personagens que compõem as lendas da Amazônia. O que me encantou de verdade foi o uso de material tão simples como o papelão, o papel celofane colorido, a corda, o isopor, para compor tão belas esculturas precisamente de acordo com as toadas cantadas durante a apresentação. Achei lindo o momento que o palco a céu aberto encheu-se de imensos monstros iluminados, de gigantescos insetos, aranhas (de papelão) subiram galera acima, o boi negro desceu galera abaixo. Para mim isso é puro teatro. É pura arte popular.
E essa arte precisa a todo custo ser preservada. O patrocínio é importante desde que a população do município possa usufruir melhorias verdadeiras (educação, saneamento, capacitação, planejamento, saúde, coisas assim). E que as autoridades cumpram o seu papel. Isso tudo realmente não vi no festival folclórico de 2010. Antes de torcer pelo meu boi Caprichoso, torço pela população da ilha, para que o extenuante trabalho de fazer uma linda festa como essa reverta em qualidade de vida para todos. Que a festa seja para todos não apenas para meia dúzia de convidados especiais.
(*) É Jornalista, estudiosa da cultura popular e parceira do NCPAM/AM.
Era um sonho antigo assistir a festa dos bois em Parintins, que fica na grande ilha de Tupinambarana. A viagem de ida e volta no barco Golfinho do Mar foi tranqüila apesar de longa. Mais de trezentas pessoas se apertavam rede a rede para o longo percurso singrando o rio Amazonas. São quase quatorze horas na ida e umas 18 na volta. Isso porque o Golfinho é uma embarcação muito rápida e na volta deixou para trás até o famoso navio Ibero Star.
O que vimos durante a viagem é difícil de descrever. De dia, o esplendoroso sol, ao nascer e ao se pôr dá um brilho especial aos cenários até aonde a vista alcança. O rio, a vegetação, as casinhas nas beiradas, os ribeirinhos nas canoas com produtos da floresta tentando fazer trocas e o firmamento, ganham uma textura diferente que valeu a pena apreciar. À noite quem brilha literalmente são as estrelas, zilhões delas de todos os tamanhos. A lua se exibia redonda como nunca e alaranjada como um girassol.
Na ilha, onde vivem cerca de cem mil pessoas, grande parte se envolve no festival que acontece no final de junho. São três dias de festa e no primeiro dia não consegui entrar. Aproveitei para observar as redondezas do Bumbódromo. Não gostei do que vi. Lixo pra todo lado, iluminação inadequada, ambulantes despreparados, alimentação oferecida sem higiene, som muito alto de música brega e religiosa que impedem quem não conseguiu entrar, de ouvir os acordes de seu boi. Improvisação total. Na área externa só vi um telão. No Bumbódromo cabem umas 40 mil pessoas portanto grande parte do público fica mesmo é do lado de fora. Nessa hora o melhor a fazer é se dirigir à beira do rio para olhar os barquinhos ancorados. E voltar mais cedo no dia seguinte.
Foi o que fiz. Na segunda noite já estava na fila às 17 horas. A apresentação do primeiro boi começa às 21 horas. Mesmo assim a “cobrinha” não andava o que equivale dizer que o Bumbódromo já estava lotado. Bateu uma certa angústia. Ouvi alguém falar que aquela era a fila “dos lisos”. Uma moça grávida tentou passar a mão na carteira de um homem. Ônibus e vans passam no meio da multidão levando os vips direto para os camarotes no Bumbódromo. O formando em agroecologia Luiz Roçoda, 43 anos, concorda que existem problemas como “a prostituição, aids, o lixo jogado a céu aberto, a exploração econômica, etc.” E acha que “o parintinense paga um alto preço pela realização da festa”.
Entrei no segundo dia e pude sentir a energia das galeras de perto. Fiquei do lado azul, do Caprichoso que, aliás, se tornou campeão. A apreciação do meu boi foi prejudicada pelos holofotes e pela obrigação de participar das coreografias lideradas por dois dançarinos à frente da galera. Queria fazer tudo ao mesmo tempo. Olhar o boi na arena, dançar com o público, observar tanta energia, acompanhar pelo telão. O espaço é exíguo e o calor é intenso. Mesmo assim balancei o tempo todo. Sei também que fiz publicidade de grandes empresas com os objetos do kit-coreografia. Não pude deixar de pensar naquele momento qual a contrapartida social disso tudo. Fora os lucros para essas empresas não consigo perceber os ganhos para a população da cidade.
Nesse mesmo dia, depois da apresentação do Caprichoso grande parte da galera deixa o lugar. Aí sim fiquei à vontade para assistir o boi contrário, o Garantido. E então pude observar algumas peculiaridades. Por exemplo, as gigantescas alegorias que pareciam grandes demais para passar na pequena entrada. O segredo é que elas vêm em bloco, aos pedaços, e se encaixam na arena, empurradas por dezenas de brincantes. Vi muito brilho, cores perfeitamente combinadas entre si, e a criatividade peculiar do povo parintinense, mostrada nos personagens que compõem as lendas da Amazônia. O que me encantou de verdade foi o uso de material tão simples como o papelão, o papel celofane colorido, a corda, o isopor, para compor tão belas esculturas precisamente de acordo com as toadas cantadas durante a apresentação. Achei lindo o momento que o palco a céu aberto encheu-se de imensos monstros iluminados, de gigantescos insetos, aranhas (de papelão) subiram galera acima, o boi negro desceu galera abaixo. Para mim isso é puro teatro. É pura arte popular.
E essa arte precisa a todo custo ser preservada. O patrocínio é importante desde que a população do município possa usufruir melhorias verdadeiras (educação, saneamento, capacitação, planejamento, saúde, coisas assim). E que as autoridades cumpram o seu papel. Isso tudo realmente não vi no festival folclórico de 2010. Antes de torcer pelo meu boi Caprichoso, torço pela população da ilha, para que o extenuante trabalho de fazer uma linda festa como essa reverta em qualidade de vida para todos. Que a festa seja para todos não apenas para meia dúzia de convidados especiais.
(*) É Jornalista, estudiosa da cultura popular e parceira do NCPAM/AM.
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