Alvatir Carolino da Silva (*)
O texto analisa a ressignificação do termo folclorista nos grupos folclóricos de Manaus, onde o conceito não define apenas aqueles que fizeram pesquisas ou publicaram algo sobre folclore. “Donos de brincadeiras” e demais agentes sociais que militam e adquirem importância nesses grupos são definidos como folcloristas. Ortiz (1992) mostra como grupos de intelectuais, na Europa do século XIX, contribuíram para estabelecer a idéia de cultura e de povo, bem como esses significados se prolongam na atualidade. Para Vilhena (1997), “o folclorista se tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico ligado por uma relação romântica ao seu objeto”. Em Manaus, os agentes sociais dos grupos folclóricos, ao se autodefinirem como folcloristas, ressignificando uma atribuição dos intelectuais, investem-se de capital simbólico para dialogar com órgãos de políticas culturais.
Desta feita, os agentes sociais de grupos folclóricos de Manaus, ou seja, dirigentes de associações de grupos folclóricos, “donos de brincadeira” e outras pessoas que militam e adquirem importância nesses grupos, fazem uso do termo folclorista não apenas para denominar aqueles que fizeram pesquisas e/ou publicaram algo a respeito dessas manifestações culturais, usam-no também como autodefinição para si mesmos. Portanto, folcloristas são também os agentes sociais dos grupos folclóricos, sobretudo aqueles que representam seus grupos e/ou são dirigentes em uma das quatro associações de grupos folclóricos de Manaus, as quais possuem mais de 175 grupos filiados.
A primeira associação de grupos folclóricos de Manaus surgiu em 1979, visando uma estrutura mais adequada para suas apresentações e melhores condições financeiras para serem aplicados no trabalho de produção de suas apresentações, ou seja, nos ensaios e na elaboração e produção de suas indumentárias, representantes dos grupos folclóricos reuniram-se e fundaram a Associação dos Grupos Folclóricos do Amazonas – AGFAM. Dentre as reivindicações e objetivos da associação destacam-se: organizar e administrar o Festival; mudar do Vivaldão (Estádio de futebol Vivaldo Lima) para a Bola da SUFRAMA; adquirir terreno para edificar sede própria para a associação e julgar os grupos por categorias.
Por dissidência, da AGFAM surgiram outras associações de grupos folclóricos. Atualmente, além da AGFAM, existem a Associação dos Grupos Folclóricos de Manaus – AGFM, a Liga Independente dos Grupos Folclóricos de Manaus – LIGFM e a Associação Movimento Bumbás de Manaus.
O propósito das associações de grupos folclóricos, segundo seus presidentes, é de defender os interesses dos grupos folclóricos de Manaus junto aos órgãos de políticas culturais da Prefeitura Municipal de Manaus e do Governo do Estado do Amazonas. Nota-se que os principais interesses defendidos dizem respeito aos valores dos recursos financeiros repassados pelo poder público aos grupos, prazos de liberação dos recursos, transporte para os grupos no decorrer do Festival Folclórico do Amazonas, organização do Festival e elaboração de plano de mídia para a divulgação do evento.
É no âmbito das associações que a atribuição de folclorista ganha importância. Cada grupo folclórico filiado a uma dessas associações credencia seus representantes para as reuniões da associação. Esses representantes são dirigentes de grupos folclóricos ou os chamados “donos de brincadeira”. Os agentes sociais de grupos folclóricos que participam das associações usam o termo folclorista como forma identificação. Nota-se que ser folclorista é participar do dialogo entre associações de grupos folclóricos e órgãos de políticas culturais, tais como Secretaria de Estado da Cultura - SEC, Secretaria Municipal de Cultura - SEMC, ou mesmo em trabalhos da Câmara Municipal de Manaus.
Como exemplo do que estamos tratando, em outubro de 2007 a Câmara Municipal de Manaus autorgou a Medalha de Ouro Rodolpho Valle ao Senhor Adelson Cavalcante, conforme propositura do Vereador Williams Tatá, através do Decreto Legislativo número 123/2007 – outubro – 2007. No texto do convite para a solenidade desta honraria que apresenta o receber da medalha, percebe-se que a atribuição de folclorista não está apenas no âmbito das associações, mas também na relação oficial entre associações e poder público,
Adelson Cavalcante cursou o ensino fundamental na escola Euclides da Cunha, ensino médio na escola Ruy Araújo. Está cursando o quarto período de Direito na Faculdade Martha Falcão. É Agente Técnico Fazendário, funcionário público da Secretaria de Finanças (SEMEF). Foi chefe do setor de cadastro Mercantil durante 15 anos. É folclorista desde 1982. Começou na Ciranda Ruy Araújo, sendo conhecido como Adelson da Ciranda. Sob seu comando, a Ciranda Ruy Araújo foi 12 vezes campeã do Festival Folclórico, sendo que 6 vezes a ciranda foi destaque do Festival. Fundou a Liga Independente dos Grupos Folclóricos de Manaus com 24 grupos. Foi eleito presidente em 23 de agosto de 1994.
Nos seus mandatos deu amplitude a Liga que hoje conta com 61 grupos entre dança regional, ciranda, cacetinhos, garrotes, cangaços, boi bumbá e dança nacional. Lutou para manter viva a tradição folclórica, empenhando sempre em conseguir um local digno e fixo para as apresentações, passando pela Praça General Osório, Colina, Parque Amazonense, Bola da Suframa, Estacionamento do Vivaldão e finalmente o Centro Cultural dos Povos do Amazônia.
Não apenas os dirigentes de associações de grupos folclóricos são chamados de folcloristas, pois, percebe-se que os chamados mestres da cultura popular ligados a esses grupos folclóricos também são chamados de folcloristas, assim como outras pessoas que tenham prestado serviços relevantes a esses grupos. Tem-se que o termo o folclorista em Manaus é usado para identificar as pessoas que adquirem importância dentro dos grupos folclóricos, seja na vivencia do grupo folclórico ou atuando nas associações.
Arqueologia do Conceito
Renato Ortiz (1992), em Românticos e Folcloristas, traça um panorama da história do conceito de popular no século XIX na Europa, mostrando como grupos de intelectuais contribuíram para estabelecer a idéia de cultura e de povo, bem como esses significados se prolongam na atualidade. Para tanto Ortiz faz, conforme suas palavras, uma espécie de arqueologia do conceito. Segundo o autor, é no século XIX que a idéia de “cultura popular” foi inventada, sendo progressivamente lapidada pelos diferentes grupos de intelectuais. Conforme Ortiz, dois deles são fundamentais para a compreensão dos avatares posteriores,
“Os românticos e os folcloristas. Suas respostas configuram uma matriz de significados que, reelaborados, recuperados, prolongam-se até os dias de hoje nas discussões que fazemos. Os românticos são os responsáveis pela fabricação de um popular ingênua, anônimo, espelho da alma nacional; os folcloristas são seus continuadores, buscando no Positivismo emergente um modelo para modernidade, eles se insurgem contra o presente industrialista das sociedades européias e ilusoriamente tentam preservar a veracidade de uma cultura ameaçada” (Ortis, 1992, p. 06).
No início do século XIX são criados vários clubes de antiquários na Inglaterra. Nesses clubes, reúnem membros da classe média para discutir e publicar, livros e revistas sobre as antiguidades populares. Conforme Ortiz, o próprio William Jhon Thoms, criador da palavra “folclore”, é fellow da “Sociedade dos Antiquários” (1838), e na revista “Athenaeum”, funda uma seção dedicada à cultura popular, na qual comenta a correspondência enviada pelos leitores à editora. Ele edita ainda sua própria revista, “Notes and Queries”, para depois se enganjar na formação da Folklore Society, a qual vai presidir até 1885, ano de sua morte.
É a partir da segunda metade do século XIX que os estudiosos da cultura popular vão considerar-se “folcloristas”. Conforme Ortiz, “esse neologismo inglês, cunhado tardiamente, não é apenas uma inovação terminológica – ele encobre uma disposição que redefine o estudo das tradições populares. Pode-se captar esta mudança, quando focalizamos a Folklore Society, criada na Inglaterra em 1878. A escolha não é arbitrária – são os ingleses que fundam a primeira associação de folclore cuja ambição é transformá-lo em uma nova ciência. A Folklore Society agrupava um conjunto de intelectuais e, através de publicações, palestras, congressos, pretendia organizar e divulgar o estudo da cultura popular de forma sistemática e dinâmica.”(Ortiz, 1992, p. 28)
Os folcloristas do século XIX acreditavam na possibilidade de fundar uma ciência positiva, pois estavam sob influência do pensamento positivista de Augusto Comte e de Spencer. Este é, também, o mesmo momento em que Darwin publica “A origem das Espécies”, portanto, as idéias de progresso, evolução e ciência são dominantes. Contudo, Taylor ao escrever, em “Cultura Primitiva”, publicado em 1871, que existe pouca diferença entre os lavradores ingleses e um negro da África Central, acaba por influenciar os folcloristas ingleses na conceitualização do folclore, esses, “reivindicam como objeto a análise da cultura selvagem no seio das sociedades modernas” (Ortiz, 1992, p.33).
Para Ortiz, os românticos e os folcloristas cultivam a tradição. “O elemento selvagem encerra, portanto, uma positividade, permitindo aproximá-lo da riqueza das pedras preciosos. O antiquário tinha um afã colecionador, o folclorista, respaldado no positivismo, cria o museu das tradições populares. Como diz Michel de Certeau, ele se contenta em mirar a “beleza morta”, pois o que interessa é o passada em vias de extinção” (Ortiz, 1992, p.39).
Contudo, a obsessão classificatória, assimilando o espírito científico à botanização dos dados obtidos produz longos catálogos descritivos. Para Ortiz, o empirismo dos folcloristas se sobrepõe à reflexão teórica, colocando suas produções aquém do positivismo das ciências sociais.
Desta forma, tem-se a noção de cultura popular é fruto recente da História; como os antiquários possuíam um mero interesse de colecionador, ela surge somente com o movimento romântico, cristalizando-se com os folcloristas. Portanto, tratam-se de uma criação de intelectuais que, com intenções variadas, voltam-se para a compreensão das tradições.
Em Projeto e Missão, Vilhena (1997), faz um estudo sobre a trajetória dos estudos de folclore no Brasil, em um período compreendido entre 1947 e 1964. O autor mostra como o folclorista se tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico ligado por uma relação romântica ao seu objeto. Mesmo que o relativo sucesso que os folcloristas obtiveram na criação de agências estatais dedicadas à preservação de nossa cultura popular, não obtiveram sucesso no desenvolvimento de espaços dedicados ao estudo do folclore no interior das universidades.
Segundo Vilhena, os folcloristas da Comissão Nacional do Folclore (CNFL) influenciaram profundamente a produção folclorística de então, formando uma geração de estudiosos que ainda têm uma presença importante dentro dessa área em nosso país. Segundo o autor, a maioria dos integrantes do movimento folclórico não se considerava “folclorista” antes da mobilização coordenada pela CNFL, cujo objetivo era justamente de criar essa “especialidade”.
“A exclusão desse ramo de estudos do processo de institucionalização das ciências sociais – que se consolida quando já está encerrado o período em que concentra minha pesquisa – faz com que o “folclorista” sobreviva não como uma identidade “profissional” (nem mesmo como uma especialização de pesquisa para “sociologia”, “antropologia” ou “cientistas sociais” (Vilhena,1997, p.34).
Percebe-se que os estudos de folclore não alcançaram o estatuto de disciplina cientifica tal como pretenderam alguns de seus estudiosos e defensores. Contudo, a prática dos folcloristas foi institucionalizada em institutos, museus, órgãos do governo estadual e federal. Segundo Vilhena, no primeiro plano, no caso da esfera federal, pode-se dizer que o movimento folclórico ajudou a fundar no final dos anos cinqüenta sofreu com a conhecida ausência de continuidade da política cultural de nosso país. Apesar disso, tem sobrevivido à mudança de siglas e a períodos de retração e de expansão do investimento federal em cultura que se alternaram ao longo de sua história.
Portanto, os folcloristas do movimento folclórico estudado por Vilhena conseguiram tornar folclore em um item significativo da agenda de política cultural do país nas esferas federal, estadual e mesmo municipal. Contudo, esse sucesso relativo, não parece ter sido alcançado na área da educação, sendo sempre uma cadeira ou tema abrangido no interior de formações dedicadas a cada uma das ciências sociais.
Mas, em Manaus...
Diferente dos folcloristas do século XIX na Europa e mesmo dos folcloristas do movimento folclórico no Brasil do período de 1947 a 1964, definir-se ou ser reconhecido como folclorista é pressuposto para articulação com várias instâncias e níveis de políticas públicas, sejam no âmbito estadual ou municipal, o que implica ser investido de autoridade para dialogar com agentes de órgãos públicos locais que conduzem políticas culturais e de turismo.
Ao pensarmos na configuração identitária dos grupos folclóricos na cidade de Manaus, frente aos gestores públicos e organizações sociais, utilizamos a noção de grupos étnicos como tipo organizacional de Fredrik Barth (2000). Segundo o autor, “ao se enfocar aquilo que é socialmente efetivo, os grupos étnicos passam a ser visto como uma forma de organização social”. Neste caso, o que fica em evidência é a auto-atribuição identitária e a atribuição considerada por outros. É o que o autor considera como atribuição de uma categoria étnica. Nesse sentido organizacional, quando os atores, tendo como finalidade a interação, usam identidades étnicas para se categorizar e caracterizar os outros, passam a formar grupos étnicos.
Desta forma, considera-se, pelo viés dos grupos sociais inseridos nas manifestações folclóricas na cidade de Manaus, que o termo folclorista é tomado pelos sujeitos que pensam e fazem desta manifestação o sentido de suas vidas, agregando valores nas mais diferentes práticas, como religiosas, de trabalho, políticas, econômicas e sociais.
A categorização identitária dos dirigentes destes grupos frente aos órgãos públicos gestoras de políticas culturais leva em conta os sinais e signos manifestos para mostrar sua identidade, “características tais como vestimenta, língua, forma de casas ou estilo geral de vida” e implica também em “padrões de moralidade e excelência pelos quais as performance são julgadas”, ambos os aspectos são relevantes para a identidade, tais como: as formas de identificação de grupo, espaços de lazer, ato simbólicos de reivindicação de espaços para apresentação, reconhecimento pelos trabalhos prestados a comunidade em atos solenes, como na Câmara de Vereadores de Manaus, negociação de liberação de verba para montar as brincadeiras e outros.
Assim, nos folcloristas dos grupos folclóricos de Manaus não há a preocupação de fundar uma ciência positivista como no século XIX, ou criar uma disciplina autônoma no interior das ciências sociais, e sim, gerar condição para que seus grupos se perpetuem e façam bons espetáculos em suas apresentações no ciclo das festas juninas na cidade. Desta forma, a autodefinição desloca dos intelectuais para os agentes sociais dos grupos folclóricos o atributo de folclorista. Com essa ressignificação, esses agentes agregam capital simbólico, o que se configura como atributo importante nos diálogos com os órgãos públicos de política cultural, mas também a idéia de missão, de devoção ao trabalho, protótipo de personalidade sem ambição, cujo valor de seu trabalho é justamente a satisfação de ver seu grupo nas ruas, ou seja, se apresentando nas festas do ciclo junino de Manaus.
Nesta perspectiva é que o trabalho no âmbito dos grupos folclóricos de Manaus se apresenta não apenas como processo produtivo no sentido economicista, mas significa muito mais que isso, e é justamente o que em última instância buscarei apreender no livro Festa Dá Trabalho que estará a disposição do publico no final deste.
Referências Bibliográficas
BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Or. T. Lask. Rio de Janeiro. Contracapa. 2000. P. 24-67.
VILHENA, Luís Rodolfo. PROJETO E MISSÃO: O MOVIMENTO FOLCLÓRICO BRASILEIRO. Fundação Getúlio Vargas, 1997.
ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas.Editora Olho d’água.
(*) É mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia –UFAM e professor do IFAM Campus Zona Leste/Manaus.
O texto analisa a ressignificação do termo folclorista nos grupos folclóricos de Manaus, onde o conceito não define apenas aqueles que fizeram pesquisas ou publicaram algo sobre folclore. “Donos de brincadeiras” e demais agentes sociais que militam e adquirem importância nesses grupos são definidos como folcloristas. Ortiz (1992) mostra como grupos de intelectuais, na Europa do século XIX, contribuíram para estabelecer a idéia de cultura e de povo, bem como esses significados se prolongam na atualidade. Para Vilhena (1997), “o folclorista se tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico ligado por uma relação romântica ao seu objeto”. Em Manaus, os agentes sociais dos grupos folclóricos, ao se autodefinirem como folcloristas, ressignificando uma atribuição dos intelectuais, investem-se de capital simbólico para dialogar com órgãos de políticas culturais.
Desta feita, os agentes sociais de grupos folclóricos de Manaus, ou seja, dirigentes de associações de grupos folclóricos, “donos de brincadeira” e outras pessoas que militam e adquirem importância nesses grupos, fazem uso do termo folclorista não apenas para denominar aqueles que fizeram pesquisas e/ou publicaram algo a respeito dessas manifestações culturais, usam-no também como autodefinição para si mesmos. Portanto, folcloristas são também os agentes sociais dos grupos folclóricos, sobretudo aqueles que representam seus grupos e/ou são dirigentes em uma das quatro associações de grupos folclóricos de Manaus, as quais possuem mais de 175 grupos filiados.
A primeira associação de grupos folclóricos de Manaus surgiu em 1979, visando uma estrutura mais adequada para suas apresentações e melhores condições financeiras para serem aplicados no trabalho de produção de suas apresentações, ou seja, nos ensaios e na elaboração e produção de suas indumentárias, representantes dos grupos folclóricos reuniram-se e fundaram a Associação dos Grupos Folclóricos do Amazonas – AGFAM. Dentre as reivindicações e objetivos da associação destacam-se: organizar e administrar o Festival; mudar do Vivaldão (Estádio de futebol Vivaldo Lima) para a Bola da SUFRAMA; adquirir terreno para edificar sede própria para a associação e julgar os grupos por categorias.
Por dissidência, da AGFAM surgiram outras associações de grupos folclóricos. Atualmente, além da AGFAM, existem a Associação dos Grupos Folclóricos de Manaus – AGFM, a Liga Independente dos Grupos Folclóricos de Manaus – LIGFM e a Associação Movimento Bumbás de Manaus.
O propósito das associações de grupos folclóricos, segundo seus presidentes, é de defender os interesses dos grupos folclóricos de Manaus junto aos órgãos de políticas culturais da Prefeitura Municipal de Manaus e do Governo do Estado do Amazonas. Nota-se que os principais interesses defendidos dizem respeito aos valores dos recursos financeiros repassados pelo poder público aos grupos, prazos de liberação dos recursos, transporte para os grupos no decorrer do Festival Folclórico do Amazonas, organização do Festival e elaboração de plano de mídia para a divulgação do evento.
É no âmbito das associações que a atribuição de folclorista ganha importância. Cada grupo folclórico filiado a uma dessas associações credencia seus representantes para as reuniões da associação. Esses representantes são dirigentes de grupos folclóricos ou os chamados “donos de brincadeira”. Os agentes sociais de grupos folclóricos que participam das associações usam o termo folclorista como forma identificação. Nota-se que ser folclorista é participar do dialogo entre associações de grupos folclóricos e órgãos de políticas culturais, tais como Secretaria de Estado da Cultura - SEC, Secretaria Municipal de Cultura - SEMC, ou mesmo em trabalhos da Câmara Municipal de Manaus.
Como exemplo do que estamos tratando, em outubro de 2007 a Câmara Municipal de Manaus autorgou a Medalha de Ouro Rodolpho Valle ao Senhor Adelson Cavalcante, conforme propositura do Vereador Williams Tatá, através do Decreto Legislativo número 123/2007 – outubro – 2007. No texto do convite para a solenidade desta honraria que apresenta o receber da medalha, percebe-se que a atribuição de folclorista não está apenas no âmbito das associações, mas também na relação oficial entre associações e poder público,
Adelson Cavalcante cursou o ensino fundamental na escola Euclides da Cunha, ensino médio na escola Ruy Araújo. Está cursando o quarto período de Direito na Faculdade Martha Falcão. É Agente Técnico Fazendário, funcionário público da Secretaria de Finanças (SEMEF). Foi chefe do setor de cadastro Mercantil durante 15 anos. É folclorista desde 1982. Começou na Ciranda Ruy Araújo, sendo conhecido como Adelson da Ciranda. Sob seu comando, a Ciranda Ruy Araújo foi 12 vezes campeã do Festival Folclórico, sendo que 6 vezes a ciranda foi destaque do Festival. Fundou a Liga Independente dos Grupos Folclóricos de Manaus com 24 grupos. Foi eleito presidente em 23 de agosto de 1994.
Nos seus mandatos deu amplitude a Liga que hoje conta com 61 grupos entre dança regional, ciranda, cacetinhos, garrotes, cangaços, boi bumbá e dança nacional. Lutou para manter viva a tradição folclórica, empenhando sempre em conseguir um local digno e fixo para as apresentações, passando pela Praça General Osório, Colina, Parque Amazonense, Bola da Suframa, Estacionamento do Vivaldão e finalmente o Centro Cultural dos Povos do Amazônia.
Não apenas os dirigentes de associações de grupos folclóricos são chamados de folcloristas, pois, percebe-se que os chamados mestres da cultura popular ligados a esses grupos folclóricos também são chamados de folcloristas, assim como outras pessoas que tenham prestado serviços relevantes a esses grupos. Tem-se que o termo o folclorista em Manaus é usado para identificar as pessoas que adquirem importância dentro dos grupos folclóricos, seja na vivencia do grupo folclórico ou atuando nas associações.
Arqueologia do Conceito
Renato Ortiz (1992), em Românticos e Folcloristas, traça um panorama da história do conceito de popular no século XIX na Europa, mostrando como grupos de intelectuais contribuíram para estabelecer a idéia de cultura e de povo, bem como esses significados se prolongam na atualidade. Para tanto Ortiz faz, conforme suas palavras, uma espécie de arqueologia do conceito. Segundo o autor, é no século XIX que a idéia de “cultura popular” foi inventada, sendo progressivamente lapidada pelos diferentes grupos de intelectuais. Conforme Ortiz, dois deles são fundamentais para a compreensão dos avatares posteriores,
“Os românticos e os folcloristas. Suas respostas configuram uma matriz de significados que, reelaborados, recuperados, prolongam-se até os dias de hoje nas discussões que fazemos. Os românticos são os responsáveis pela fabricação de um popular ingênua, anônimo, espelho da alma nacional; os folcloristas são seus continuadores, buscando no Positivismo emergente um modelo para modernidade, eles se insurgem contra o presente industrialista das sociedades européias e ilusoriamente tentam preservar a veracidade de uma cultura ameaçada” (Ortis, 1992, p. 06).
No início do século XIX são criados vários clubes de antiquários na Inglaterra. Nesses clubes, reúnem membros da classe média para discutir e publicar, livros e revistas sobre as antiguidades populares. Conforme Ortiz, o próprio William Jhon Thoms, criador da palavra “folclore”, é fellow da “Sociedade dos Antiquários” (1838), e na revista “Athenaeum”, funda uma seção dedicada à cultura popular, na qual comenta a correspondência enviada pelos leitores à editora. Ele edita ainda sua própria revista, “Notes and Queries”, para depois se enganjar na formação da Folklore Society, a qual vai presidir até 1885, ano de sua morte.
É a partir da segunda metade do século XIX que os estudiosos da cultura popular vão considerar-se “folcloristas”. Conforme Ortiz, “esse neologismo inglês, cunhado tardiamente, não é apenas uma inovação terminológica – ele encobre uma disposição que redefine o estudo das tradições populares. Pode-se captar esta mudança, quando focalizamos a Folklore Society, criada na Inglaterra em 1878. A escolha não é arbitrária – são os ingleses que fundam a primeira associação de folclore cuja ambição é transformá-lo em uma nova ciência. A Folklore Society agrupava um conjunto de intelectuais e, através de publicações, palestras, congressos, pretendia organizar e divulgar o estudo da cultura popular de forma sistemática e dinâmica.”(Ortiz, 1992, p. 28)
Os folcloristas do século XIX acreditavam na possibilidade de fundar uma ciência positiva, pois estavam sob influência do pensamento positivista de Augusto Comte e de Spencer. Este é, também, o mesmo momento em que Darwin publica “A origem das Espécies”, portanto, as idéias de progresso, evolução e ciência são dominantes. Contudo, Taylor ao escrever, em “Cultura Primitiva”, publicado em 1871, que existe pouca diferença entre os lavradores ingleses e um negro da África Central, acaba por influenciar os folcloristas ingleses na conceitualização do folclore, esses, “reivindicam como objeto a análise da cultura selvagem no seio das sociedades modernas” (Ortiz, 1992, p.33).
Para Ortiz, os românticos e os folcloristas cultivam a tradição. “O elemento selvagem encerra, portanto, uma positividade, permitindo aproximá-lo da riqueza das pedras preciosos. O antiquário tinha um afã colecionador, o folclorista, respaldado no positivismo, cria o museu das tradições populares. Como diz Michel de Certeau, ele se contenta em mirar a “beleza morta”, pois o que interessa é o passada em vias de extinção” (Ortiz, 1992, p.39).
Contudo, a obsessão classificatória, assimilando o espírito científico à botanização dos dados obtidos produz longos catálogos descritivos. Para Ortiz, o empirismo dos folcloristas se sobrepõe à reflexão teórica, colocando suas produções aquém do positivismo das ciências sociais.
Desta forma, tem-se a noção de cultura popular é fruto recente da História; como os antiquários possuíam um mero interesse de colecionador, ela surge somente com o movimento romântico, cristalizando-se com os folcloristas. Portanto, tratam-se de uma criação de intelectuais que, com intenções variadas, voltam-se para a compreensão das tradições.
Em Projeto e Missão, Vilhena (1997), faz um estudo sobre a trajetória dos estudos de folclore no Brasil, em um período compreendido entre 1947 e 1964. O autor mostra como o folclorista se tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico ligado por uma relação romântica ao seu objeto. Mesmo que o relativo sucesso que os folcloristas obtiveram na criação de agências estatais dedicadas à preservação de nossa cultura popular, não obtiveram sucesso no desenvolvimento de espaços dedicados ao estudo do folclore no interior das universidades.
Segundo Vilhena, os folcloristas da Comissão Nacional do Folclore (CNFL) influenciaram profundamente a produção folclorística de então, formando uma geração de estudiosos que ainda têm uma presença importante dentro dessa área em nosso país. Segundo o autor, a maioria dos integrantes do movimento folclórico não se considerava “folclorista” antes da mobilização coordenada pela CNFL, cujo objetivo era justamente de criar essa “especialidade”.
“A exclusão desse ramo de estudos do processo de institucionalização das ciências sociais – que se consolida quando já está encerrado o período em que concentra minha pesquisa – faz com que o “folclorista” sobreviva não como uma identidade “profissional” (nem mesmo como uma especialização de pesquisa para “sociologia”, “antropologia” ou “cientistas sociais” (Vilhena,1997, p.34).
Percebe-se que os estudos de folclore não alcançaram o estatuto de disciplina cientifica tal como pretenderam alguns de seus estudiosos e defensores. Contudo, a prática dos folcloristas foi institucionalizada em institutos, museus, órgãos do governo estadual e federal. Segundo Vilhena, no primeiro plano, no caso da esfera federal, pode-se dizer que o movimento folclórico ajudou a fundar no final dos anos cinqüenta sofreu com a conhecida ausência de continuidade da política cultural de nosso país. Apesar disso, tem sobrevivido à mudança de siglas e a períodos de retração e de expansão do investimento federal em cultura que se alternaram ao longo de sua história.
Portanto, os folcloristas do movimento folclórico estudado por Vilhena conseguiram tornar folclore em um item significativo da agenda de política cultural do país nas esferas federal, estadual e mesmo municipal. Contudo, esse sucesso relativo, não parece ter sido alcançado na área da educação, sendo sempre uma cadeira ou tema abrangido no interior de formações dedicadas a cada uma das ciências sociais.
Mas, em Manaus...
Diferente dos folcloristas do século XIX na Europa e mesmo dos folcloristas do movimento folclórico no Brasil do período de 1947 a 1964, definir-se ou ser reconhecido como folclorista é pressuposto para articulação com várias instâncias e níveis de políticas públicas, sejam no âmbito estadual ou municipal, o que implica ser investido de autoridade para dialogar com agentes de órgãos públicos locais que conduzem políticas culturais e de turismo.
Ao pensarmos na configuração identitária dos grupos folclóricos na cidade de Manaus, frente aos gestores públicos e organizações sociais, utilizamos a noção de grupos étnicos como tipo organizacional de Fredrik Barth (2000). Segundo o autor, “ao se enfocar aquilo que é socialmente efetivo, os grupos étnicos passam a ser visto como uma forma de organização social”. Neste caso, o que fica em evidência é a auto-atribuição identitária e a atribuição considerada por outros. É o que o autor considera como atribuição de uma categoria étnica. Nesse sentido organizacional, quando os atores, tendo como finalidade a interação, usam identidades étnicas para se categorizar e caracterizar os outros, passam a formar grupos étnicos.
Desta forma, considera-se, pelo viés dos grupos sociais inseridos nas manifestações folclóricas na cidade de Manaus, que o termo folclorista é tomado pelos sujeitos que pensam e fazem desta manifestação o sentido de suas vidas, agregando valores nas mais diferentes práticas, como religiosas, de trabalho, políticas, econômicas e sociais.
A categorização identitária dos dirigentes destes grupos frente aos órgãos públicos gestoras de políticas culturais leva em conta os sinais e signos manifestos para mostrar sua identidade, “características tais como vestimenta, língua, forma de casas ou estilo geral de vida” e implica também em “padrões de moralidade e excelência pelos quais as performance são julgadas”, ambos os aspectos são relevantes para a identidade, tais como: as formas de identificação de grupo, espaços de lazer, ato simbólicos de reivindicação de espaços para apresentação, reconhecimento pelos trabalhos prestados a comunidade em atos solenes, como na Câmara de Vereadores de Manaus, negociação de liberação de verba para montar as brincadeiras e outros.
Assim, nos folcloristas dos grupos folclóricos de Manaus não há a preocupação de fundar uma ciência positivista como no século XIX, ou criar uma disciplina autônoma no interior das ciências sociais, e sim, gerar condição para que seus grupos se perpetuem e façam bons espetáculos em suas apresentações no ciclo das festas juninas na cidade. Desta forma, a autodefinição desloca dos intelectuais para os agentes sociais dos grupos folclóricos o atributo de folclorista. Com essa ressignificação, esses agentes agregam capital simbólico, o que se configura como atributo importante nos diálogos com os órgãos públicos de política cultural, mas também a idéia de missão, de devoção ao trabalho, protótipo de personalidade sem ambição, cujo valor de seu trabalho é justamente a satisfação de ver seu grupo nas ruas, ou seja, se apresentando nas festas do ciclo junino de Manaus.
Nesta perspectiva é que o trabalho no âmbito dos grupos folclóricos de Manaus se apresenta não apenas como processo produtivo no sentido economicista, mas significa muito mais que isso, e é justamente o que em última instância buscarei apreender no livro Festa Dá Trabalho que estará a disposição do publico no final deste.
Referências Bibliográficas
BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Or. T. Lask. Rio de Janeiro. Contracapa. 2000. P. 24-67.
VILHENA, Luís Rodolfo. PROJETO E MISSÃO: O MOVIMENTO FOLCLÓRICO BRASILEIRO. Fundação Getúlio Vargas, 1997.
ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas.Editora Olho d’água.
(*) É mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia –UFAM e professor do IFAM Campus Zona Leste/Manaus.
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