domingo, 1 de agosto de 2010

WALLACE SOUZA: O VELÓRIO E OS FUNERAIS

Márcio Souza (*)

Sem querer ofender os trogloditas, politicamente o Amazonas ainda está na era da Pedra Lascada.

A sociedade amazonense experimentou esta semana um acontecimento chocante: o velório e os funerais do ex-deputado Wallace Souza, processado pela justiça por formação de quadrilha, assassinato e tráfico de drogas. Evidente que todo enterro é um ato carregado de emoção, mas o que se viu foi o uso deliberado do acontecimento como ato político eleitoral Mas não é de política que estou falando, mas do esgoto desta.

Enterrar os mortos sempre foi considerado um ato político. Na antiga Grécia, Antígona, filha de Édipo, tomada pelo poder estabelecido e decide fazer o enterro de seu irmão Polínices, acusado de traição e condenado a morte e a ter o corpo atirado aos abutres. Antígone desobedece as ordens de Creontes, o rei, e realiza o sepultamento, fazendo desse ato um protesto político.

O gesto de Antígone, celebrando ao longo dos séculos pelos dramaturgos e poetas, representa a integridade do indivíduo frente ao poder discricionário. Ainda na arte, há o velório de Júlio César, na escadaria do Senado Romano, e o famoso discurso de Marco Antônio, imortalizado por William Shakespeare.

Esses exemplos grandiosos, que tocam profundamente a alma humana pelo mistério da morte, não mais se repetiram no século XX. E a tendência no século XXI é de se banalizar ainda mais a morte e seus rituais.

O nascimento das sociedades de massas analisadas por Ortega y Gasset, liquidou com o que restava de sagrado nas exéquias e no respeito pelos mortos. Os funerais passaram a ser menos feito em sinal de respeito e muito mais espetáculo. E os pioneiros foram os nazistas, que em 1939 transformaram um arruaceiro morto durante enfrentamentos de rua em herói com direito a um espetacular cortejo fúnebre. Ali naquele ato de provocação estavam lançados os germes da manipulação populista: glorificação da transgressão através do crime; irracionalismo e estímulo aos instintos primários.

Era o que William Reich poria a num em seu ensaio A Psicologia de Massas do Fascismo. Reich testemunhou a desintegração política política que ocupou a cena mundial numa conjuntura que fazia a adição de uma guerra de larga escala, a Primeira Guerra Mundial, com a crise econômica de 1929 que atirou a classe trabalhadora no desemprego e reduziu à miséria países como Alemanha, afogada pela derrota e estrangulada pelas indenizações resultantes da capitulação.

O resultado foi a ascensão de ideologia autoritárias, como o fascismo e o nazismo, que se aproveitou do estado de depressão econômica e baixa estima das massas depauperadas para instalar conceitos de superioridade racial, apelos aos instintos primários, culto ao irracionalismo e subserviência política com muita repressão.

Não é de espantar que os caudatários dessa ideologia de lumpesinato fossem os políticos latino americanos. O populismo cleptocrático que grassa nesta parte do planeta é uma versão supostamente benigna do fascismo, já que tirando a ideia de superioridade racial, que não faria sentido numa sociedade miscigenada, os outros componentes ideológicos estão presentes aqui, tão vivos quanto na Itália dos anos 30.

Pior, ainda mais arraigados nas emoções primitivas das massas com baixíssima escolaridade, bombardeadas pela barbárie das mídias. O populismo é hostil a inteligência, e não devemos nos surpreender que o Amazonas esteja na rabeira dos índices de aproveitamento escolar do país. Mas os meus sete leitores dever estar se perguntando: o que isso tem a ver com os funerais de herói da pátria do senhor Wallace? Tudo, eu diria!

Assim como o enterro do arruaceiro nazista, este funeral nos envergonha e nos mete medo pela deslavada canonização de um péssimo exemplo da vida e ação política. Uma sociedade que tolera isso perdeu o rumo, nega a civilização e nos faz reféns de sinistros interesses. Sem querer ofender os trogloditas, politicamente o Amazonas ainda está na era da Pedra Lascada.

(*) É amazonense, escritor, dramaturgo e articulista de a Crítica.

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