sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O PALADAR TEM MEMÓRIA

É muito mais lembraças do que um texto sisudo cheio de marcadores convencionais. A revista Veja (2179) em edição Especial fez um recorte da memória do poeta amazonense sobre a boa comida acompanhada de um tempero simples dotada de um cheiro sedutor. Como se diz: a arte da cozinha não está só nos ingredientes, mas sobretudo, no como fazer, na arte do servir e outras artimanhas carregadas de afetividade e ternura, que denunciam a especificidade do homem e do lugar. Confira o texto do poeta extraído da Veja Manaus - Comer... Beber 2010/2011 e manifeste também a sua memória degustativa.

Thiago de Mello (*)

Não estou dizendo que as papilas gustativas têm células educadas para guardar o gosto de uma iguaria. Nem que os nervos da língua enviam aos neurônios do centro da memória o sabor de uma ova de acari-bodó (deixam o caviar russo no chinelo) cozidas ao suco de laranja com alfavaca ou o cheiro (o vento espalha, toda a vizinhança sente) do peito de tartaruga assado no fogareiro.

A minha ciência como é no prato limpo da vida. Bebe na cuia colorida o caldo do que me acontece. “um saber de experiências feito”, diz o verso do Camões. Numa casa portuguesa do meu exílio foi servida a bondade de um pargo de forno ao sal grosso. Saboreei vagaroso um pedaço do lombo.

- Este pargo está me lembrando o tambaqui do meu rio.

- É igualzinho? - perguntou Catharina Wendt, tradutora alemã dos meus poemas.

- Não, é até diferente, mas o fim de uma provada me trouxe o gosto saudoso do peixe da floresta, que faz tempo não saboreio.

Num dia chileno dos anos 60, o Armando Nogueira, também filho da floresta, me quis fazer um agrado. Me mandou por um comandante amigo seu da Varig uma banda de tambaqui congelada, que conseguiu lá no Arataca do Rio de Janeiro.

Levei a preciosidade para a Isla Negra, de presente para o meu querido Pablo Neruda, cujo gosto requintado eu conhecia bem. Exigente tanto no caldilho de congrio como no boeuf à La bourguignonne, na truta de piedra ou no goulash vienense. Esperei que as brasas se recobrissem de cinza,assei o tambaqui só com sal e umasa folhas de perejil, salsinha chilena. O vate repetiu a costela. Guardo o tom solene do seu comentário:

-Este teu peixe merece um lugar no Larousse Gastronomique.

Paro de escrever. O Zé Brito me chama para almoçar ali na beira da Ponta da Gaivota. Uma piranha-preta do Rio Andirá. Na proa de canoa. De mão. Na pá do remo, um montinho de sal,um de farinha-d’ água, outro de pimenta murupi, especiaria que só dá na floresta, arde que só ela, mas é gostosa é perfumada. Fina flor da cultura culinária ribeirinha. Lá na capital não tem disso, não.

Manaus tem primores da cozinha cabocla, na qual o tambaqui, o pirarucu e o tucunaré são os soberanos. Sem me desfazer da maravilha dos menos famosos, meus preferidos: curimatã, pacu, branquinha, matrinxã, pescada.

Vou dizer onde eu gosto de comer o peixe de que eu gosto.

No Galo Carijó, o jaraqui ( que faz a fama da casa) e o pacu. Dourados na banha de porco. Baião de dois, farinha-d’água. O poeta e padre Ernesto Cardenal já três vezes veio de Nicarágua passar uns dias comigo em Barreirinha. Na volta a Manaus, faz questão de duas coisas: rever o Encontro das Águas (onde empresários impiedosos querem construir um grande porto) e repetir o tucunaré do Carijó, que aliás entra com uma estrofe no seu apaixonado poema Manaus Ressuscitada .

A caldeirada de tambaqui (que venha com a cabeça ) no Canto da Peixada. Para começar, ovas cozidas de curimatã.

No Bom Gosto, na Cidade Nova, o cozido de pirarucu, com quiabo maxixe, pimentão, batata-doce e pimenta-de-cheiro. Ou então o filé do tucunaré.

A matrinxã na brasa é arte do Bosco, assada com escamas. O pirão mole de farinha do Uarini. No Recanto do Peixe, no Ajuricaba.

O Braz do Hotel Mercure grelha uma costela de tambaqui com lombo e tudo. Só que o lombo vem sem as afiadas espinhas de forquilha. Quanta delicadeza! Pirão de farinha seca.

O tucunaré na telha de barro. Refogado com alho e cebola, depois assado no forno. Especialidade do Choupana.

A festejada matrinxã sem espinhas, preparada pelo Reginaldo, chefe de cozinha do Hotel Tropical. Assada no forno envolva em folhas de bananeira.

Quando a ternura me pede, não me faço de rogado. Abro um tucunaré pelo dorso, de alto a baixo. Tiro o espinhaço, limpo o bucho, esfrego devagar por dentro com limão e sal. Recheio com farofa de farinha-seca no alho. Costumo as duas bandas e levo ao forno bem brando. Não quero me gabar. Fica quase igualzinho ao que fazia minha mãe, dona Maria. Quem me dera a mão dela.

(*) É poeta e consagrado ícone da cultura nacional que tomou para si a defesa do homem e da floresta amazônica como missão do seu caminhar.

NR:
O restaurante Galo Carijó, especialista em Peixe, localizado em Manaus, encontra-se fechado com placa de venda.

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