terça-feira, 14 de dezembro de 2010

DAS TROPAS DE RESGATE ÀS TROPAS DE CHOQUE: A RESISTÊNCIA INDÍGENA NA AMAZÔNIA

Roberto Monteiro de Oliveira (*)

Um dia, contam, toda a gente ouviu da banda onde sae o Sol um estrondo grande, que fez tremer a terra.Um pagé velho, que estava ahi riu gostoso, depois disse: “Quem sabe, amanhã mesmo já chegam os comedores de gente que se pintam na minha imaginação.”. (sic) Os companheiros estavam perto, ouviram isso, perguntaram logo que novidades ele via. Elle respondeu: “Há duas semanas já que eu vejo na minha mente gente que tem costumes feios subir este rio. Eles comem gente como onça.” Logo, dizem, os companheiros perguntaram o que era bom fazer adeante desta gente. O pagé respondeu: “Vocês esfreguem bem o uirari nos kurabis para elles não deixarem vivo quem eles espetarem. Homens e mulheres, todos hão de brigar.” Ninguém há de correr em face do inimigo, havemos de matar todos eles. Nosso pai o Sol, nossa mãe a Lua, conhecem já a nossa valentia.” Amanhã antes de nosso pai o Sol levantar-se, o filho do nosso tuicháua deve ir em cima da Serra do Tejú, para de la vigiar quando esta gente chega.” O pagé só disse assim. Aqulle estrondo grande que fez a terra tremer, dizem, foi este mesmo pagé velho que o fez para mostrar a toda gente o seu poder.Três dias depois o filho do tuicháua viu uma porção de gente subindo o rio, veio logo contar. O pagé então disse para o tuicháua: “Tuicháua, junta já a nossa gente, vamos esperar esta gente ruim na cachoeira.” Si elles bulirem comnosco havemos de brigar com eles; si chegarem como gente boa, como gente boa havemos de encontrá-los.... (cf. Kukuhi - Lenda baré. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, Tomo 104, volume 158, 1928, p. 740-741).

Esta lenda baré nos diz muito bem qual a atitude dos índios no trato com os estrangeiros sejam quais forem as suas procedências. Cordiais e hospitaleiros com aqueles que demonstrarem possuir estas qualidades. Altivos e fortes com aqueles que se apresentarem como sendo gente ruim. Infelizmente os europeus ou mais precisamente os portugueses não chegaram como gente boa como imaginava o velho pagé, mas como gente ruim.

É importante afirmar logo de início o caráter imoral dos europeus na apropriação predatória da Amazônia. O princípio ético, expresso pelos teólogos que norteou os comportamentos e atitudes dos europeus na conquista dos chamados povos ultramarinos: “ultra aequinotialem non peccatur”. (Além da linha do Equador não se comete pecado).

A partir desse princípio ético não tem mais o que se discutir, tudo é permitido. Assassinatos cruéis e violentos das nações indígenas, escravização dos negros e dos índios, depredação da natureza e etc.... Aos europeus tudo é permitido para satisfazer aos objetivos do Estado e dos súditos: enriquecimento rápido e fácil, a qualquer custo.

Esta será a marca indelével imposta à Amazônia pelos conquistadores europeus que acompanhará toda a sua trajetória histórica e geográfica: ser uma região colonial. Ou seja, uma região cujo projeto de desenvolvimento autóctone foi abortado pelos europeus massacrando e matando as nações indígenas e reduzindo os sobreviventes à condições subumanas.

Na verdade a conquista da Amazônia pelos europeus está envolvida pelo mito expansionista do Eldorado, o lugar do enriquecimento rápido e fácil, país utópico onde havia ouro em extrema abundância e onde se havia refugiado o último dos incas com todos os seus tesouros. Esta lenda, durante o século XVI induziu muitos aventureiros a diversos pontos da Amazônia.

O historiador português Jaime Cortesão faz um estudo geocartográfico minucioso sobre este e outros mitos amazônicos para concluir que se trata de mitos expansionistas.

São tipicamente mitos de Conquista, criados pela imaginação ardente e o caráter heróico dos conquistadores, que não souberam descortinar, nas informações dos indígenas do Amazonas e do Alto-Paraguai, a miragem das opulências do império dos Incas. Essas lendas revestem-se nas narrativas espanholas duma espécie de alucinação visual, reflexo das aventuras prodigiosas de Cortez e Pizarro”.*. (cf. CORTESÃO, Jaime. Realização geográfica e expansão do mito. In: ____. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro, Instituto Rio Branco, [1965], tomo I, IV parte, p. 356).**

Na verdade podemos aplicar à Amazônia aquelas palavras que Eduardo Galeano refere à América Latina: “... desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos”. (cf. GALEANO, Eduardo. Cento e vinte milhões de crianças no centro da tormenta. In: ____. As veias abertas da América Latina. 8 ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 14).

A economia da Amazônia

Se examinarmos a função da Amazônia no processo histórico e geográfico do ocidente verificaremos que as principais atividades econômicas que lhe foram atribuídas referem-se sempre a exploração extrativa predadora de seus recursos naturais e humanos. Inicialmente foram as drogas do sertão e o extermínio das nações indígenas resistentes ao colonialismo. Posteriormente a exploração das gomas elásticas e das resinas e a degradação dos nordestinos, dos cabocos e das remanescentes tribos indígenas. Atualmente é a vez dos recursos minerais, das madeiras nobres e dos fármacos.

Na verdade a Amazônia contemporânea dos incentivos fiscais emerge no contexto da criação das zonas francas em todo o mundo capitalista. Trata-se de uma estratégia elaborada nos centros internacionais do poder para resolver a crise de concentração de capital nos países capitalistas hegemônicos ocorrida na década de 60.

Deve ficar claro que a Amazônia primitiva, do ponto de vista das relações interétnicas não difere das outras comunidades humanas que se desenvolveram em outras partes do mundo. Em contato com os europeus, precisamente com os portugueses, mais adiantados tecnologicamente, tiveram a mesma sorte de seus semelhantes do resto do Brasil. Os que tentaram a confrontação na defesa de seus territórios foram simplesmente massacrados e eliminados pela violência dos portugueses. Outras tribos foram cooptadas através de seus chefes transformaram-se em trabalhadores escravos ou dos colonos ou das ordens religiosas vindo a constituir posteriormente a massa de trabalhadores “livres” que se submetem às novas formas de exploração de sua força de trabalho. Essa estratégia desestruturou as nações indígenas destruindo o seu modo de ser primitivo, suas identidades e singularidades culturais integrando-as uniformemente a um novo modo de produção.

Nessas condições, de extrema inferioridade e completamente desumanizados, os índios, passam a fazer parte desse novo ordenamento geo-social, que foi a Amazônia portuguesa.

Aqui também o capitalismo mostra uma de suas mais perversas características que é a erradicação de valores que constituem uma identidade cultural e imposição violenta de novas formas de comportamento. Na verdade ao entrarem neste novo ordenamento geo-social e consequentemente cultural, os índios deixam a condição de homens livres e passam a ser os “descidos” ou escravos.

“Descidos” na verdade foram os índios que persuadidos pelos missionários e escoltados pelos militares desciam de suas malocas para trabalhar nas “aldeias de repartição” onde ficavam sob o controle do “capitão de aldeia” e eram “repartidos” entre as ordens religiosas, os colonos portugueses e as instituições da coroa.

Índios escravos foram na terminologia dos portugueses aqueles índios escravizados através dos “resgates”. Aqui, ao contrário dos “descimentos”, a iniciativa era das “tropas de resgates” que legitimadas pelos religiosos missionários promoviam “as guerras justas”. As “tropas de resgates” capturavam os índios, homens, mulheres, crianças e idosos e os levavam para os mercados de escravos onde eram adquiridos pelos colonos, pelos religiosos e pelos funcionários do governo português, na sede da província, Belém.

Outra modalidade de atuação das tropas de resgate era trocar os índios capturados nas guerras intertribais e que seriam sacrificados por quaisquer objetos de interesse de seus detentores. Esses índios eram encaminhados para serem vendidos nos mercados de escravos em Belém. Esses fatos mostram muito bem a cumplicidade existente entre o Estado português e a Igreja Católica, entre soldados e missionários. Ora os missionários solicitam os serviços da tropa para completar sua pregação ora é a tropa que requer a legitimação teológica do missionário para suas perversas ações.

Também na Amazônia os índios adotaram como forma de resistência a clássica retirada estratégica para áreas a salvo das investidas do inimigo. Dessa forma muitas nações indígenas conseguiram resistir até hoje. São aquelas nações indígenas que a literatura própria denomina-os de índios arredios, semi-aculturados, semi-civilizados e outras denominações pejorativas que só denunciam preconceito e discriminação contra os índios.

É necessário dizer que do ponto de vista dos europeus acusa-se algumas nações indígenas de aliarem-se aos inimigos de Portugal e por conseqüência da Igreja católica. Na verdade isto foi apenas pretexto para legitimar massacres das tribos indígenas resistentes uma vez que os índios nunca tiveram nos europeus aliados e os europeus sempre se serviram dos índios para atingir seus objetivos. Sob pretexto de aliança com os holandeses os manaos e seus aliados mayapenas são exterminados pelas tropas portuguesas. Na verdade as autoridades holandesas premiavam a quem matasse um manaos e colocaram vigilantes nas cachoeiras do Essequibo para manter os manaos distantes de sua área. Os holandeses aproximaram-se dos manaos com o claro objetivo de transformá-los em escravos.

O episódio dos manaos é bastante significativo para mostrar as contradições da implantação da Amazônia lusitana. Uma vez definida a situação do Rio Negro e do seu afluente o Rio Branco como áreas estratégicas para assegurar a presença lusitana na Amazônia devia-se fixar os limites territoriais dessa soberania organizando os núcleos de povoamento. Esta era a tarefa fundamental para a construção da Amazônia lusitana e esta obra só poderia realizar-se com o consentimento e o concurso das nações indígenas, posto que os portugueses não conheciam o território e nem sabiam como nele sobreviver. Daí a eliminação pura e simples não só dos manaos como de todas as outras nações indígenas potenciais aliadas dos concorrentes na apropriação do território amazônida.

A aldeia dos Mayapenas

Mapa da aldeia do principal Majuri. Este croqui mostra a aldeia dos índios Mayapenas, aliados dos Manaus, cercados por tropas portuguesas Os números 3 indicam pedras. Os números 1 indicam guaritas. As letras indicam posições de grupos de combate de soldados portugueses. Esta batalha começou no dia 06 de julho de 1728. (Cf. Mapoteca do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Seção de cartografia e iconografia Mapa nº 366 Catálogo de Castro de Almeida. Caixa 1. Doc. nº 1).

Explicação do Mapa Junto da Aldéa do Principal Majuri, aqual Seachava fundada na forma seguinte: Chegou a Tropa emq foy por Cabo oCapitão João Paes do Amaral a Aldea, do Principal Majuri em 6 de julho do prezte anno de 1728, e logo em o mesmo dia expedio ao Ajudante Thomas Teixra. a por a Aldea Em citio, q se achava cituada sobre uma pedra, q em redondo se julga ter tres coarta delegoa pouco mais ou menos, descobrindoce della mta pte do Rio Negro, e varias aldeas vezinhas de Principaes pares (parentes) amos (amigos) ealiados do Principal Majuri: no cume desta pedra estão mtos cãpos (campos) q a natureza obrou estando a aldea formada com dobradas fortificações de sercas de madeira tão fortes, que combatidos com ballas de artilhara, senão pode abrir brexa pa. abalruar ada.(dita) Aldea que esteve em citio doze dias, em o fim dos quaes se arrojarão os defensores a sahir della por lhes faltar a agoa pella falta q tinhão della dentro da Aldea aonde se matou hum grande no de gentio dezertando o Mayor pa as ptes que detriminavão fugir fazendo-o com as armas de fogo nas mãos e zagaias, emcuja ocazião se mostrou o Principal Cabã Ca bari, com valor conhecido cauzando enveja aos valerozos soldados.

Pello ABC se declara as ptes e senuaes do dto Mapa: Na letra A, ocupava o Ajudante Thomas Teyxeyra com alguma infantra guarnecendo a Cortina que ficava no camo (caminho) que dece ao rio dagoa de beber; aonde se poem a letra B, mostra aparte do rio negro; na letra C, guarnecia o soldado Narcizo de Souza com se us companhros; pella pte do camo do porto, na letra D, guarnecia o Alferes Manoel da Cunha por cabo dos mais soldados; na letra E, guarnecia o soldado Balthezar Soares com seus companhros. na letra F, guarnecia o Alferes Angelico Ribeiro com sua Companha, na letra G, se poz o soldado Julio de Seyxas por cabo de alguns soldados; na letra H, sepoz o Principal Cabã Cabari, donde perigozamente se vio pelejando com hum conhecido valor, abrindo brexa na trinxa com grande risco de sua vida; na letra l, guarnecia o soldado Frco Portilho, e os soldados q com elle estavão: no lugar L, sepoz de guarnição o soldado Joseph de Matos com seus companhros.Eos no de 3 são pedras q se achavão no cume da aldea, as cifras pretas são escarpas da Aldea, o no 1, as guaritas; he ainformação serta q Sedá da Aldea de clarada" . (Cf. Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Documentos avulsos do Rio Negro. Caixa 1. Doc. nº 1).

Na verdade esta “Explicação do Mapa Junto da Aldéa do Principal Majuri” é um Relatório de Campanha acompanhado do croqui da operação tradição castrense que remonta às Legiões Romanas. A primeira parte do relatório faz a descrição do teatro das operações do combate. Na segunda parte do relatório se descreve o dispositivo da tropa no território ocupado e por fim o relatório apresenta uma Legenda Descritiva para se entender o cenário da operação.

Sintetizando o processo de implantação da (In)feliz Lusitânia o historiador José Valente, na sua coluna "Hoje na vida do Pará", nos relata o seguinte:

"1740. O livro "Brasil, Colômbia e Guianas", de Ferdinand Denis, enumera os mais sanguinários governadores, capitães mores e capitães que passaram pela capitania do Grão Pará. Foram os seguintes: capitão-mor Francisco Caldeira Castelo Branco – tinha o mórbido prazer de passar o fio da espada pela goela de inermes índios, principalmente de mulheres e crianças; capitão-mor Bento Maciel Parente – seus "olhos brilhavam de estranho prazer quando o índio esperneava na ponta de uma corda"; capitão-mor Jerônimo Fragoso de Albuquerque – fidalgo da casa real (imagine se não fosse) extinguiu as tabas aborígines, de modo impiedoso, dos índios Iguapé, Guanapu e Caripi, nos arredores de Belém. Mandava fazer enormes montes de lenha e os sobreviventes eram queimados vivos. Fragoso de Albuquerque "sentia enorme prazer em aspirar o cheiro acre da carne queimada"; os capitães Pedro Maciel Parente e Vital Maciel Parente, sobrinhos do capitão Bento Maciel Parente, "gostavam de ouvir o som cavo da borduna, na cabeça do pobre índio"; capitão-mor Manoel de Sousa de Eça matava o aborígine com um fino fio de cobre, fazendo torniquete em seu pescoço; capitão-mor Luiz do Rego Barros os eviscerava. Esses foram os que mais se destacaram no extermínio de um povo: não que os demais capitães não os matassem, mas o faziam rapidamente ("humanamente", segundo eles)". (Cf. VALENTE, José. Hoje na vida do Pará. O Liberal. Cartaz, Belém, p. 7, 28 mar. 1999).

Mas ao mesmo tempo em que combatiam os índios que se opunham à dominação tinham que fazer alianças políticas e econômicas para povoar e construir as cidades que ao nível interno asseguravam o exclusivismo colonial e ao nível externo, juridicamente nas relações internacionais, asseguravam a posse desses territórios para o Estado português.

É nesse contexto contraditório de necessidades políticas e econômicas que o Estado português desenvolve uma ação uniformizadora de todas as nações indígenas impondo uma nova língua, inicialmente o nhengatu e posteriormente o português, uma nova religião, o catolicismo, enfim uma nova cultura, uma nova condição humana: súditos-escravos, vestindo-se, morando e alimentando-se segundo um caricato modelo europeu.

Quanto a qualidade de vida dos índios antes do contato com os portugueses é muito significativo o testemunho do general Pedro Teixeira na sua “Relacion del Pedro Tejera deel Rio delas Amazonas para el S.or Presidente” após sua célebre viagem de 1637. Afirma o General: “És todo este gran rio mui saludable, porque no tiene calor rigoroso ni frio que obligue â pujar por ropa, prueba de sano, no hallar, un enfermo en todo la máquina de Pueblos que âi”.(cf. in: CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores. Instituto Rio Branco. [1965], p. 426).

Deve-se enfatizar que o general Pedro Teixeira foi de Belém até Iquitos no Peru e que sua afirmação é em relação a toda a Amazônia. Muito diferente é a situação atual denunciada pelo CIMI:

A expectativa média de vida dos índios brasileiros é inferior à maioria da população brasileira. Os dados são de uma pesquisa recente realizada pelo Instituto de Medicina Tropical de Manaus (IMTM). A média de vida do indígena brasileiro registrada no ano passado (1995) foi de 45,6 anos. O brasileiro sobrevive em média 66,7 anos. O índice mais baixo de vida entre os índios do Brasil foi verificado no estado do Mato Grosso do Sul (37,7anos), onde vivem os guatós, cadiveus, cambas, ofaiés, xavantes, guaranis caiovás e terenas. Entre os guaranis-caiovás, cujo índice de suicídio em 95 foi o maior dos últimos dez anos, muitos não vivem mais que 38 anos. Depois do Mato Grosso do Sul estão na lista os estados de Roraima, Pará e Amazonas. Em 1993 foi registrado entre os índios um índice de vida média de 48,3 anos, caindo para 45 anos em 1994.A pesquisa faz referência também a um relatório da Funai no período compreendido entre janeiro/93 a outubro/94 que registra 2.591 óbitos em índios de todo o país. A principal causa de morte é a desassistência médica (22,3%) com predomínio da mortalidade infantil por doenças preveníveis e curáveis. (Fonte: Conselho Indigenista Missionário (CIMI). (cf. Expectativa de vida de índios brasileiros é baixa. Ciência e Cultura. Jornal da Editora SER. Brasília, jun. 1996, p. 7).

É interessante ressaltar aqui aquilo que as nações indígenas tem de melhor no seu relacionamento com a natureza:

“Por exemplo, os índios amazônicos têm liberado, através dos séculos, apenas diminutas quantidades de CO2 para a atmosfera por meio das queimadas de suas roças, em comparação com as sociedades estatais modernas, responsáveis pelo deflorestamento dos trópicos, a eutrofização dos estuários, a chuva ácida e conseqüente morte das florestas, os depósitos de resíduos tóxicos e outras ameaças evidentes à integridade dos ecossistemas naturais. Em outras palavras, se o aquecimento global está realmente acontecendo por causa das crescentes emissões de CO2 e outros gases-estufa, os índios amazônicos e demais povos que não desenvolveram civilizações industriais têm dado uma contribuição ínfima a este processo, a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera passou de 315 ppm (partes por milhão) para 340 ppm apenas durante a última geração (NRC, 1983:1); (Cf. BALLÉE, William. Biodiversidade e os índios amazônicos. In: CASTRO, Eduardo Viveiros de. et CUNHA, Manuela Carneiro da. (organizadores). Amazônia: etnologia e história indígena. São Paulo, Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP/FAPESP, 1993, p. 385-393).

Esta foi a Amazônia indígena que deu lugar a Amazônia lusitana. Não resta dúvida que a Amazônia lusitana só poderia ser construída com a destruição da Amazônia indígena. Os índios e as índias foram manipulados ao sabor das conveniências conjunturais dos portugueses. Em momentos das ameaças dos concorrentes ingleses, franceses e holandeses são sub-súditos transformados em soldados. Quando aliados aos concorrentes são inimigos, infiéis; quando se negam ao trabalho forçado são gentios indolentes. Enfim, são esses e outros atributos menosprezíveis que irão marcar os índios e as índias ao serem integrados na Amazônia lusobrasileira e que sobrevivem até aos nossos dias de Amazônia contemporânea ou dos incentivos fiscais.

De qualquer forma é impossível apagar os traços indígenas da Amazônia qualquer que seja a sua manifestação. Ainda que estropiados os índios não se dão por vencidos, marcam presença em todas as versões de Amazônia, inclusive hoje quando a Amazônia dos incentivos fiscais não consegue se desvencilhar da herança indígena primitiva. As hidrelétricas, as estradas, os garimpos, as madereiras, as grandes fazendas, enfim todos os projetos do Estado e da sociedade brasileira sempre se deparam com as nações indígenas resistentes que não são tratadas como nações, mas como sub-pessoas negando-se a autonomia política para tratar de seus interesses abolindo-se a soberania sobre seus próprios territórios, negando-se plenamente a sua autodeterminação.

Ao nível da retórica, o Estado brasileiro, na constituição de 1988 afirma no Capítulo VIII, do Art. 231. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” mas na prática as leis ordinárias dificultam quando não impedem que as nações indígenas exerçam a soberania sobre suas terras e recursos.

Por sua vez a Igreja Católica através do CIMI reformulou seus princípios de atuação de evangelização indígena:

A Igreja católica unificou a ação missionária junto aos indígenas do Brasil através do Conselho Indigenista Missionário. O Diretório Indígena de ação junto ao índio, adotado pelos missionários é o seguinte: 1) Aculturação lenta, paulatina, sem precipitação na história, sem qualquer pressão, sem ruptura com o passado, realizada através de longos períodos e por métodos persuasivos e sem interferência violenta na vida, nas crenças e nos costumes. 2) Conhecimento e respeito às culturas indígenas, o que leva o agente aculturativo a ter uma atitude de que prestigia o índio e o promove para aculturação social, econômica, política, material e religiosa e sem etnocentrismo. Cabe ao índio selecionar os traços culturais que convêm. (Cf. SCHLESINGER, Hugo et PORTO, Humberto. Indígenas do Brasil. In: ____. Dicionário Enciclopédico das religiões. Petrópolis, RJ, Vozes, 1995, p. 1372).

O que caracteriza a ação colonizadora portuguesa é a sua legitimação através dos teólogos cristãos e católicos. Aqui, diferentemente dos outros colonizadores “a missão civilizadora dos europeus” de que falava Vidal de La Blache é sacralizada, e a dominação portuguesa não é só o predomínio da racionalidade profana européia sobre a barbárie indígena, mas também e principalmente a erradicação do paganismo dos índios, considerados gentios e a imposição violenta da moral e dos dogmas cristãos. “Ao comentar a afirmação de Walter Benjamim: “Não há um único documento de cultura que não seja também um documento de barbárie” Marilena Chauí escreve oportunamente:
Disponível em: http://portalimprensa.uol.com.br/portal/ponto_de_vista/2008/10/08/imprensa23220.shtml

A violência cometida contra as nações indígenas está implícita na lógica do capitalismo concorrencial e financeiro. O Estado monárquico português não poderia se estabelecer na Amazônia sem o afastamento dos concorrentes europeus, ingleses, holandeses e franceses, os inimigos externos e sem a destruição dos inimigos internos, as nações indígenas resistentes à dominação. Atualmente não é diferente. Assim, uma vez estabelecidos em Belém os portugueses iniciam a matança dos índios.

“Mas foi sobretudo depois da fundação de Belém, em 1616, que começaram os martírios. O cronista Berredo relata como Pedro Teixeira agia, qual um Cortez no México, matando e incendiando a região entre São Luís e Belém à procura de uma ligação terrestre estável entre ambas as vilas, o que se tornara imperioso - do ponto de vista dos invasores - diante da possibilidade de um bloqueio marítimo dos portos de Belém e São Luís por nação inimiga. Este Pedro Teixeira, que ao lado de Bento Maciel, Jerônimo de Albuquerque e Antônio de Albuquerque era um dos grandes exterminadores do povo Tupinambá, andava acompanhado de criminosos portugueses chamados na época “degredados”, ou seja, emigrantes forçados e que ele arregimentava sob o nome de soldados, e de índios chamados “tapuia”, inimigos dos Tupinambá. Diante da violência da tropa de Teixeira os índios se revoltaram em Cumã, Caju, Mortiguara, Iguape, Guamá, mas estas revoltas serviram apenas de pretexto para novas incursões e novos massacres. Em 1619 o líder Tupinambá Cabelo de Velha atacou a cidade de Belém, o que foi motivo para um “castigo” exemplar: Pedro Teixeira foi autorizado a sair com quatro embarcações, muitas canoas, cem soldados e grande número de índios “domésticos” para fazer guerra ofensiva nos lugares onde viviam os indígenas: “E suas aldeias reduzidas a cinzas serviram também para os aparatos de vitória”. (Cf. HOONAERT, Eduardo. A Amazônia e a cobiça dos europeus. O extermínio dos indígenas. In: ____. História da Igreja na Amazônia. Petrópolis, RJ, Vozes, 1992, cap. II, p. 54).

Na verdade por volta de 1635 os tupinambá estavam praticamente exterminados. Em 1629, Pedro da Costa Favela e seu xará Pedro Teixeira após expulsarem os ingleses do forte Torrego ou Taurege, edificado na foz do Rio Mazagão, hoje Santana, chacinaram os nhengaíbas sob a acusação de colaboração com os ingleses.

“Em 1639 chegou a vez dos Tapajós serem martirizados. Em 1626 Pedro Teixeira esteve com eles, mas como eles se mantinham amistosos em relação aos portugueses não houve maiores represálias. Acontece que eles não queriam deixar suas terras e por isso Bento Maciel Parente lhes declarou guerra em 1639. Colocados entre a morte ou a dominação, os Tapajós escolheram a segunda opção, foram desarmados, encurralados e obrigados a fornecer mil escravos aos portugueses, entre filhos e aliados. Para evitar a escravidão, os tapajós passaram a colaborar na escravização de outros grupos, a fim de atingir o número de mil índios “de corda”. O martírio deste povo terminou nos 1820-1840, quando foram completamente extintos”. (cf. HOORNAERT, Eduardo. Op. cit. p. 55). No ano de 1663, por ordem do governador Vaz de Siqueira, o Capitão Pedro da Costa Favela comandando quatrocentos soldados e quinhentos índios em uma frota de trinta e quatro canoas subiu o Rio Urubu exterminando as tribos dos guanavenas, caboquenas e dos bararurus que haviam se rebelado contra uma tropa de resgate. Este foi um dos mais cruéis e sangrentos episódios da colonização portuguesa na Amazônia ocidental.

Elencamos apenas os mais conhecidos massacres cometidos pelos portugueses contra os índios para que pelo menos estes nos sirvam para um resgate completo das dívidas humanitárias que toda a civilização ocidental tem para com estas nações.

Mas, é preciso dizer que a matança dos índios tinha um limite, pois que os portugueses necessitavam de mão-de-obra para a construção das cidades e de moradores que assegurassem a posse dessas terras e suas riquezas para o reino de Portugal.

Corroborando todas essas medidas consideramos que é a criação do Estado do Grão-Pará e do Maranhão (31 de julho de 1751) ligado diretamente à Lisboa e separado das outras regiões brasileiras que aguça mais ainda esse sentimento de identidade com a a Amazônia e de alteridade em relação as outras regiões do país buscando a afirmação da Amazônia como região específica no quadro geral do Brasil e das colônias ultramarinas.

Assim constituída a Amazônia lusitana diretamente vinculada ao poder metropolitano, imune às influências revolucionárias internas das outras províncias e dos vizinhos fronteiriços, com seu vasto espaço territorial faria as ligações físicas necessárias com o interior do Brasil e asseguraria uma saída estratégica para o oceano através de Belém.

Concluindo afirmamos que é necessário resgatar e destacar na formação territorial do Estado brasileiro, herança do Estado português o papel primordial e fundamental das nações indígenas. Foram eles que contraditoriamente apontaram os caminhos da conquista.

Remaram, pescaram, caçaram para alimentar seus conquistadores portugueses. Foram eles que com sua robustez física enfrentaram o calor equatorial e com o suor de seu trabalho construíram capelas, catedrais, colégios, fortes, portos e etc., e asseguraram a posse da Amazônia para o Estado português e para o Estado Brasileiro.

É preciso fazer justiça aos índios e índias, pois que esta compreensão foi também a dos portugueses conforme Joaquim Nabuco ilustra quando relata o episódio em que o General Gomes Freire de Andrade, em Lisboa, em 1695 dando parecer ao Conselho Ultramarino sobre o relatório do Capitão Antônio de Miranda sugerindo pacto de amizade com os índios afirma “os índios amigos dos portugueses são as muralhas do sertão”. (Cf. Nabuco, Joaquim. O direito do Brasil. 1903, p. 96). A questão indígena não é uma questão de polícia. A questão indígena é uma questão de justiça histórica e social.

(*) É Professor e analista de Ciência e Tecnologia do INPA.

* O autor remete a: Manoel Domingues, «El alma de la raza», e Enrique Gandia, «História crítica de los mitos de la conquista americana», Madri, 1909.

** Um aprofundamento sobre este tema encontra-se em : MACHADO, Lia Osório. A conquista como empresa mercantil. El Dorado. In: ____. Mitos e realidades da Amazônia brasileira no contexto geopolítico internacional (1540-1912). Tese doutoral dirigida pelo Dr. Horácio Capel. Universidade de Barcelona, 1989, V. 1, p. 3-12.

Um comentário:

Guizo Vermelho disse...

Brilhante exposição. Quem não conhece a história não entende o presente e não tem ideia precisa do que se deve fazer para evitar que o futuro seja a farsa da tragédia do passado.