Ademir Ramos (*)
A documentação etnológica da região do alto rio Negro e, em particular da bacia hidrográfica do rio Uaupés, resulta das várias observações dos viajantes, sejam naturalistas, etnólogos ou missionários que passaram por este rio nos meados do século passado, bem como nas primeiras décadas de nosso século. Trata-se de um conjunto de fontes heterogêneas, destacando-se os relatos de Alfred Russell Wallace, Ermano Stradelli, Curt Nimuendajú, Padre Antônio Giacone, Padre Alcionilio Brüzzi, Eduardo Galvão e, sobretudo, o registro etnográfico de Theodor Koch-Grünberg, como referência obrigatória para os estudos sobre a cultura dos povos indígenas desse território.
A presente Súmula expõe as leituras efetuadas no curso da pesquisa, reunindo os autores a partir do desenvolvimento de uma determinada matriz téorico/metodológica acerca das Organizações Sociais Tukano. Dessa feita, destacam-se as monografias de Irving Goldman (1963), Arthur Sorensen (1967) Jean Jachson (1983), Christine Hugh-Jones (1979), Kaj Arhem (1981), Janet Chernela (1982, 1983), Stephen Hugh-Jones (1993, 1995) e Aloisio Cabalzar Filho (1995).
É verdade, que todos estes autores encontram-se de uma forma ou de outra vinculados às diferentes escolas da Antropologia Social. Também é verdade, que o domínio desta literatura faz-se necessário, para que se possa estabelecer as diferenças metodológicas na definição de um problema de estudo, que se pretende construir. Deste modo, o corte metodológico feito nas leituras referentes, considerou relevante a temática das Organizações Sociais, o que se justifica devido à pesquisa desenvolvida na região Uaupesiana dos Tukano sobre o tema: Escolarização e Política das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro¸ Amazonas .
Outrossim, os autores enunciados, em sua maioria, pensam estas Organizações Sociais ou Estruturas Sociais amparados no princípio da descendência, tendo como referência os grupos gerados nesta base. Isto é, a partir do grupo local descrevem várias esferas abrangentes, definidas pela exogamia e pela ideologia da agnação. Nesse contexto, as discussões giram em torno da formulação de outros aspectos aditivos que podem ser incorporados, na perspectiva de dar maior resolução a estas estruturas baseadas na descendência. Veja, por exemplo, Sorensen e Jackson valorizam o aspecto lingüístico para caracterizar tais grupos exogâmicos. Contrário a esta vertente, C. Hugh-Jones chama a atenção para o caráter funcional/ideológico e a contiguidade territorial.
Nestas circunstâncias, a análise de Kaj Arhem apresenta-se de modo bem particular. Pois, identifica na aliança um outro princípio substantivo nestas Organizações Sociais, complementando ou quem sabe, concorrendo com o princípio da descendência. Ademais, desenvolveu um estudo específico sobre Organização Social, dominando as discussões teóricas mais amplas acerca do parentesco e das estruturas sociais, preocupado, sobremaneira, em compreender as sociedades amazônicas. Outras análises mais recente, como a de Janet Chernela, Aloisio Calbazar Filho e Stephen Hugh-Jones contribuíram de forma diferenciada para a discussão das Organizações Sociais do Uaupés.
Contudo, Irving Goldman, entre os anos de 1938-40, foi o primeiro a trabalhar exaustivamente a problemática das Organizações Sociais, tendo por referência os Cubeo do rio Cuduiarí, afluente do Uaupés. Em sua obra, publicada em 1963, o autor apresentou um modelo de Organização Social fundamentado na associação dos sibs em fratrias e descreveu o fundamento cosmológico desses grupos de descendência.
Sua etnografia contemplou os diversos temas, tais como, ciclo da vida, formas de rituais, a religião e sobretudo, inaugurou os estudos sobre as Organizações Sociais, destacando as análises sobre as estruturas dos grupos de descendência, bem como a relação entre coesão e autonomia, como também questões relativos à exogamia, à hierarquia em contraponto com a igualdade. Da mesma forma, desenvolveu estudos sobre a terminologia de parentesco e afinidade dos Cubeo.
Goldman construiu uma representação da estrutura dos grupos de descendência fundamentada em “três esferas” que se alargam progressivamente e respectivamente, o sib, a fratria e a tribo. Isto é, um conjunto de sibs aparentados agnaticamente e hierarqiuizados formam uma fratria, que corresponde à esfera exogâmica mais relevante. Nessa perspectiva analítica, a tribo dos Cubeo estaria composta por três fratrias que permutam os cônjuges entre si. O importante é que, todas elas são falantes da mesma língua. Portanto, a unidade da fratria é baseada na noção de descendência comum. Contrário da tribo, cuja explicitação consiste na identidade lingüística.
Nesse sentido, a fratria é um agregado social mais importante que a tribo, na medida que integra um conjunto de sibs ligados estreitamente por regras de casamento exogâmico, contiguidade territorial ao longo do mesmo rio, por uma tradição de origem e descendência comuns, por ocuparem espaços definidos na hierarquia social e nas cerimônias, momentos em que todos participam.
Em suma, para Goldman, o segmento básico da Organização Social é o sib. Este por sua vez, é nomeado, localizado, exogâmico, patrilinear, patrilocal e hierarquizado dentro da fratria. “O sib como centro da estrutura social, como foco e regulador de todas as principais atividades sociais, religiosas e econômicas. Na verdade, a identificação de uma pessoa se dá apenas pelo sib.”
Quanto à sociabilidade interna dos grupos locais, Goldman desenvolveu a noção de comunidade. Esta, sobretudo, é definida como unidade exogâmica. Pois, segundo o autor, não se casa dentro da comunidade mesmo quando se conta com pessoas disponíveis. Um outro tema trabalhado pelo autor diz respeito ao exercício da chefia, cujo objetivo, segundo Goldman é o de manter as boas relações entre os moradores de uma maloca, isto é, cuidar para que comportamentos e formas de sentimentos desfavoráveis à vida comunitária sejam controladas e resolvidas tranqüilamente. Em realidade, espera-se de todos que respeitem a boa regra da colaboração e reciprocidade.
À guisa de conclusão destaca-se a abordagem metodológica desenvolvida por Goldman. Pois, a leiturua de sua obra permite que se percebam as diferenças entre suas observações e a narrativa dos Cubeo, bem como o intrumental analítico operado, para compreender a complexidade das Organizações Sociais ordenadas por uma tradição de descendência patrilinear e pela exogamia matrimonial, interpretada pelo autor da seguinte forma:
“Em geral, a região do Uaupes é a única parte do noroeste do Amazonas da qual se pode falar sobre um conhecimento pessoal. Nesta, expressa-se um alto grau de cosmopolitismo cultural. Pois, muitos índios são poliglotas devido à freqüência de matrimônios mútuos com outros grupos lingüísticos. Da mesma forma, eles têm uma enorme afeição em viajar e promover o comércio intertribral. Isto faz com que os indígenas tenham alguns conhecimentos das línguas clássicas da região, como o espanhol e o português, bem como da língua geral, que é a língua franca da região baseada no tupi. À medida em que adotam outras línguas, adotam também novos costumes.”
Para complementar a descrição/interpretação de Goldman recorro a recente publicação do lingüista Henri Ramirez, sobre “A fala Tukano dos Ye’Pâ-Masa”, quando afirma, ser o Tukano, atualmente, a língua franca da região do Uaupés: “o número de falantes ye’pâ-masa (Tukano propriamente dito) é superior ao número dos membos desta etnia. Este fato deve-se à expansão da língua ye’pâ-masa e à sua adoção como língua franca pelos falantes de outros grupos da mesma família lingüística ou da etnia (Arawak). Com um número de falantes superior a 10.000 (somando os lados brasileiro e colombiano), o ye’pâ-masa é numericamente uma das línguas indígenas mais faladas na Amazônia” (Ramirez, 1997: 9).
A obra de Goldman contribuiu, sem dúvida, para se aperfeiçoar e até mesmo reformular categorias analíticas sobre as Organizações Sociais do Uaupés. A multiplicação das pesquisas de campo na região ocorreu aceleradamente no final dos anos sessenta e nas primeiras décadas de setenta. Destacando-se nesse ínterim os trabalhos do casal Stephen e Christine Hug-Jones (Barasana), de Jean Jackson (Bará), como também os de Kaj Arhem (Makuna). No entanto, no Brasil, os Tukano, propriamente dito, ainda não foram densamente estudados pelos etnólogos, principalmente, sobre o enfoque da temática das Organizações Sociais.
Irving Goldman, sendo o pioneiro destes estudos, criou condições para que Arthur Sorensen (1967) realizasse sua pesquisa de campo entre os vários grupos lingüísticos da região, contribuindo, desta forma, para a compreensão da temática sobre as Organizações Sociais Uaupesianas. A argumentação central de Sorensem diz respeito à conjugação da exogamia relacionada com a unidade lingüística. Esta, por sua vez, nos anos oitenta, foi incorporada por Jean Jackson (1983) na construção de seu próprio trabalho.
Sorensem, entretanto, faz restrições ao uso da noção de tribo, isto porque, segundo o autor, as delimitações feitas a partir do critério lingüístico não coincidem com aquelas realizadas através de traços culturais. Para ele, a região central do Noroeste Amazônico encontra-se determinada por uma certa homogeneidade cultural. Entenda-se de um ponto de vista externo e não numa perspectiva dos próprios índios. Feita a verificação conceitual, Sorensen termina trabalhando com a representação de tribo, mas, segundo ele, numa perspectiva interna dos próprios.
O autor, contário à Goldman, reconheceu entre os grupos Tukano o uso do critério lingüístico como instrumento analítico capaz de delimitar esferas exogâmicas. Por outro lado, é bom que se diga que não se trata de uma incompreensão de Goldman, o esclarecimento é feito pelo pesquisador Cabalzar Filho, porque “como vimos, entre os Cubeo este critério de fato não vigora.” Entretanto, para Sorensem, salvo alguns casos excepcionais, os sibs que formam uma tribo (entenda-se por grupo lingüístico), em geral, pertencem a uma única fratria, ou seja, uma tribo corresponde a uma fratria e, portanto, é exogâmica.
Na realidade, Sorensen mantém as mesmas categorias de Goldman. Isto é, a tribo é definida pelo critério lingüístico e a fratria exogâmica formada por diversos sibs, sendo que a tribo é formada por apenas uma fratria. Desta feita, trata-se de uma construção mais ampla, compreendendo as Organizações Sociais Uaupesianas.
Outra importante contribuição de Sorensen diz respeito à função do multilingüísmo, também observada por Goldman, na região. No entanto, para Sorensen esta função permite segmentações neste universo culturalmente homogêneo e, deste modo, torna-se visível as unidades exogâmicas.
Quanto à Jean Jackson sabe-se que realizou o seu trabalho de campo entre os Bará, no alto Caño Inambú, tributário do alto Papurí, e que estabeleceu um diálogo com a obra de Goldman. A autora, em seu trabalho, destacou de modo particular, o aspecto lingüístico como definidor de uma das unidades sociais mais importantes: grupo local.
Definiu por grupo local a unidade mais importante do sistema social do Uaupés. Em princípio, a autora afirmou que o grupo local coincidirá com o sib. Por outro lado, a falta de correspondência entre a estrutura e a realidade foi atribuída ao contato com os brancos ou relativo à fluidez encontrada nos grupos sociais do Uaupés. Para ela, os Tukano não reconhecem uma outra unidade cognitiva e afetivamente mais importante, que não seja o grupo local. No curso da leitura, esssa construção analítica não é tão convincente, parece deslocada do campo empírico, pois não explicita com clareza as propriedades das Organizações Sociais Uaupesianas.
A indefinição analítica dos grupos sociais, que transparece no trabalho de Jackson, de uma outra forma, pode ser notada no curso da demarcação dos grupos lingüísticos. Esta representação conceitual que, por sua vez, pretende substituir a tribo, enquanto categoria teórico/metodológica de Goldman, também é imprecisa.
Entretanto, as determinações conceituais do grupo lingüístico são definidas da seguinte maneira: a língua e o nome; um ancestral fundador e um papel distinto no ciclo do mito de origem Tukano; o direito ao poder ancestral através de cantos sagrados; direito de produzir certos instrumentos rituais; associação com certos objetos cerimoniais. A autora reconhece, que os grupos lingüisticos não ocupam um território contínuo, sendo aqueles do Pirá-paraná os que mais se aproximam de sua construção.
Finalmente, segundo Jackson, a estrutura social tradicional do Uaupés, como assim definiu as Organizações Sociais, contém quatro estratos: o mais abrangente corresponde às fratrias, que reunidas, compreendem todo o sistema. Cada fratria é formada por alguns grupos lingüísticos que, por sua vez, são constituídos por sibs e estes por um ou mais grupos locais. Como vimos, anteriormente, para Goldman uma fratria corresponde a um conjunto de sibs, ao passo que em Jackson trata-se de um conjunto de grupos lingúisticos. Entretanto, tal como Goldman, a autora define fratria como constituída por grupos lingüísticos relacionados agnaticamente e não através do parentesco uterino.
Em resumo, o trabalho de Jean Jackson, embora seja rico em dados empíricos, carece de um rigor analítico capaz de abstrair as diversas propriedades das estruturas sociais dos Bará . De outro modo, suas representações descritivas/interpretativas construídas em seu modelo permitem visualizar a constituição e dinâmica dos grupos de descendência, compreendendo a forma e o espaço das relações de afinidade.
Outra monografia, a de Christine Hugh-Jones (1979), que influenciou os estudos acerca das sociedades amazônicas, transcende, sem dúvida, a temática das Organizações Sociais. No entanto, a autora, desde o início de sua obra, deixou claro que a compreensão da estrutura social uaupesiana só faz sentido quando não é feita isoladamente, sendo necessário considerar a extensão dos conceitos de parentesco, matrimônio, o ciclo da vida, a política, a economia e a religião, integrados ideologicamente e intrinsicamente ao comportamento concreto destes grupos. Outro procedimento metodológico é o tratamento dispensado às estruturas sociais como um sistema social aberto. Isto é, constituído por diversos grupos interligados.
Quanto à endogamia, a autora apresenta as seguintes ponderações: aqui, dois fatores se cruzam e concorrem; por um lado, o caráter aberto do sistema; por outro, a vertente de que ocorra uma certa limitação deste universo social, através de uma maior incidência de casamentos próximos e formação de conjunto supra-locais restritos. Ademais, conta-se com a tendência ribeirinha destes grupos, o que conduz à delimitação territorial, de certo modo, constituindo em sub-sistema baseado no curso dos rios.
Feito esta discussão preliminar, C. Hugh-Jones propõe substituir o aspecto lingüístico pela estrutura funcional, a qual determina a posição e o papel dos vários sibs em um grupo exogâmico. Em sua construção teórico-metodológica, a autora dialogou com Goldman e Jackson, estabelecendo comparações e diferenças. De Jackson, a autora abstraiu a noção de fratria, bem como a noção de sib, como ambos autores definiram. No entanto, refutou a proposta de language aggregate (language exogamous group) e em contrapartida apresentou os conceitos de “Grupo Exogâmico Simples” e “Grupo Exogâmico Composto”.
Neste contexto, a primeira unidade da estrutura social descrita é formada pelos Grupos Exogâmicos. Difiniu-se por Grupo Exogâmico Simples um conjunto de sibs ordenados hierarquicamente. Cada um dos sibs está associado a uma função determinada, que é, do irmão mais velho para o mais novo, respectivamente a do chefe, cantor, guerreiro, xamã e servo. Dois ou mais destes conjuntos de sibs assim ordenados formariam um Grupo Exogâmico Composto.
Um grupo exogâmico seja simples ou composto ocupa um território contínuo, o que talvez, não ocorra com os diversos grupos exogâmicos que compõem uma fratria. Para Christine Hugh-Jones, mesmo as sub-divisões de um sib que se deslocou para fora do território de seu grupo tendem a voltar para sua localização de origem. Entretanto, a autora afirma, que os índios estão mais atentos a tipo de relacionamento hierárquico do que à definição de fronteiras sociais. Neste sentido, ela desenvolveu argumentação favorável a Goldman, no que diz respeito a distribuição dos sibs ao longo do rio, definindo uma espacialidade hierarquizada: baixo curso/alta hierarquia e alto curso/baixa hierarquia.
As malocas enquanto comunidades ou seja unidades produtivas, são autônomas em certo sentido. Entretanto, a autora considera inter-dependentes quanto à realização dos grandes rituais, organização política, comércio e, sobretudo, nas relações matrimoniais. Ainda sobre a descrição da maloca, C. Hugh-Jones argumentou sobre o problema da coesão/ruptura dos grupos de descendência locais de modo fundante no mito de orgiem dos Barasana, o que de certo modo compreendeu uma boa parte dos grupos Tukano do Uaupés.
A narrativa mítica, na verdade, contempla a trajetória da Anaconda Ancestral subindo o “Rio do leite”, quando os diversos povos ainda não haviam tornado gente e viviam nas entranhas da Anaconda. O fenômeno registra ainda os períodos de emergência à superfície de determinados sibs. Durante esses periodos dançavam e demonstravam as técnicas e outros bens culturais adquiridos. Todos estes pontos de aparição são lembrados nos relatos do mito de origem. Trata-se de um processo de transformação gradual que se prolonga até o momento em que estes povos tornaram-se o que são atualmente. Para a autora, esta época anterior a adoção definitiva da terra ou seja a emergência de sua aparição é chamada de pre-descent. Sendo que marco principal da passagem entre estas duas fases, segundo a autora, é a ocorrência dos matrimônios.
Em síntese, C. Hugh-Jones resgatou a narrativa mítica como fonte e extensão do conceito de estrutura social. De certa forma, recolocou a exogamia como aspecto relevante em sua abordagem analítica e, por outro lado, considerou de menor valia a unidade lingüística, enquanto categoria explicativa. Enfim, sua construção teórico-metodológica sustentou uma compreensão mais aproximada das estruturas sociais uaupesianas, tornando-se referência para os estudos das sociedades amazônicas, sem se limitar a uma análise do parentesco e nem tampouco tornou-se refém da cosmoloigia do grupo local.
Por um outro ângulo, Kaj Arhem (1981) deslocou o olhar para uma questão mais abrangente, pretendendo compreender as relações entre os grupos de descendência e a aliança, descartando o argumento lingüiístico, no caso dos Makuna, para se demarcar os ambientes exogâmicos.
O autor, na verdade, se propõe a elaborar um estudo da Organização Social Makuna, como estrutura variante dentro do sistema social do Uaupés. Ademais, assumiu uma perspectiva comparativa entre outras sociedades amazônicas.
Metodologicamente, Kaj Arhem considerou que os autores anteriores não problematizaram devidamente as representações conceituais embasadas na descendência, desqualificando de certa maneira, as formas reais de agrupamento social e espacial dos Tukano. Segundo ele, os autores em privilegiar o sistema de classificação social dos grupos locais construíram apenas uma abstração, um modelo idealizado, como é o caso de Christine Hugh-Jones (1979). Da mesma forma, para ele, outros autores, não foram tão evidentes em diferençar entre o ideal e o comportamento real, é o caso de Goldman e Jackson.
Feito isto, Arhem compreendeu que a noção de estrutura social deve ser extendida no sentido de acomodar tanto a descendência patrilinear quanto a aliança prescritiva simétrica como princípio organizador. Arhem estabeleceu quatro pontos fundamentais para o desenvolvimento de sua análise: a) a relação entre categorias sociais e agrupamentos sociais concretos, seguindo a conhecida distinção entre o êmico e o ético. b) A relação entre terminologia de parentesco e instituições sociais. c) A interação entre aliança simétrica e os grupos de descendência. E finalmente, trabalhou diretamente com tipologias e comparações entre sistemas sociais, numa perspectiva estruturalista.
Assim definiu que, um conjunto de sibs aproximados e exogâmicos, não permitindo as relações matrimoniais entre si, constituia um “segmento frático”, que pode ser ou não nominado, possuidor de um ancestral mítico reconhecido. A esfera exogâmica mais ampliada mereceu a qualificação de categoria frátrica que, segundo o autor, é uma categoria agnática vagamente definida. Em realidade, Arhem optou por esta definição para diferenciá-la do modelo de Jackson. Ele entendeu que para os Makuna, a unidade lingüística não determinava as esferas exogâmicas, bem como a análise construída por Christine Hugh-Jones, por não estar convencido de que a noção de Grupo Exogâmcio Simples dependa da organização dos sibs. Entretanto, o próprio autor reconheceu o quanto é complexa a questão da inexistência da exogamia lingüística entre os Makuna, tanto assim, que nem sequer aprofundou a temática, deixando em aberto a questão.
Quanto à descendência também não é tão esclarecedor. Ele retorma o trabalho com a estrutura do sistema, as noções de segmento e a categoria frátrica. Para Arhem existem pequenos conjuntos de sibs - cita um que congrega três sibs e um outro mais dois - , correspondendo aos segmentos frátricos. Provavelmente, segundo suas afirmações, cada um destes conjuntos originaram-se da divisão de um único sib. Enfim, segmentos frátricos desta natureza, juntamente com outros destas espécies ou com sibs isolados, não necessariamente Makuna, formando o que ele chamou de uma categoria frátrica por explicitar as relações exogâmicas, o que transcende as fronteiras lingüísticas.
Os Makunas, neste sentido, estão divididos entre duas categorias fráticas, mas a soma destas duas categorias fráticas inteiras constitui um universo social muito maior que os Makuna, já que cada categoria frátrica compreende sibs deste grupo lingüístico e sibs de outros grupos de descendência.
Não satisfeito com os esclarecimentos apresentados no corpo do trabalho formulei algumas considerações acerca da análise de Kaj Arhem: a) em sua análise, o autor não apresentou nenhuma mediação conceitual, que diferenciasse o universo dos sibs Makuna no interior de cada categoria frátrica. A ausência deste instrumento pode parecer que, para o autor a língua é algo completamente acidental nas estruturas sociais Uaupesianas, o que não condiz com a realidade da região; b) imprecisão quanto à extensão dos conceitos, pois, quantitativamente um segmento frátrico pode compreender um só sib com até vinte pessoas ou um grupo lingüístico formado por mais de quinhentas pessoas; c) não formalizou nenhuma diferença entre fratria baseada na relação agnática e aquela referente à ligação entre filhos de mãe; d) o reducionismo conceitual propugnado pelo autor conciste em defender a simplificação do sistema triádico enquanto classificação social - irmãos, filhos de mãe e afins - a uma divisão dual da realidade social.
Esta compreensão um tanto reducionista justificou o campo de análise do autor, no qual destacou a estrutura social Makuna assentada nos princípios da descendência e, sobretudo, na aliança simétrica.
Com sua obra, Kaj Arhem distanciou-se dos autores anteriores que trabalharam com os grupos Tukano Orientais. A especificidade de seu trabalha, na verdade, está em qualificar a aliança como estratégia de organização social Makuna, bem como fundamento para que se compreendam as relações inter-grupais. Para tanto, inicialmente, influenciado pela análise de Christine Hugh-Jones, demonstrou que os Makuna, em grande parte, casam-se com afins próximos, construindo com eles relações de permanente solidariedade.
Quanto à formação de nexos endogâmicos, compostos por grupos residenciais espacialmente próximos e que se relacionam economicamente, polticamente, celebrando ritos e matrimônios entre si, são favorecidos pelo ideal de casamento com primos cruzados bilaterais reais e pela preferência de fato em realizá-lo na mesma linha dos pais. Em outras palavras, Kaj Arhem seguiu as orientações de Kaplan (1975) sobre a aliança diacrônica, quando argumentou favorável a tendência dos grupos sociais estenderem seus laços de afinidade por várias gerações, resultando da ênfase do casamento com afins próximos genealogicamente.
Nesse contexto, faz-se necessário descrever a distinção feita por Arhem sobre duas categorias de grupo: residencial e local. O residencial corresponde a uma moradia, seja a maloca ou casa menor, sendo constituído, quase sempre, por um segmento mínimo de um sib. Refere-se, sobretudo, a uma estrutura agnática tipicamente superficial. Esta estrutura tende a passar por um ciclo de desenvolvimento caractererizado, inicialmente, pela família nuclear - o casal e seus filhos -, em seguida estes crescem, se casam, seu pai morre e a estrutura fraternal tende a se fissionar, especialmente por causa da ausência da figura paterna. Os grupos locais são consideraos pelo autor como um nexo formado por alguns grupos residenciais (três a nove grupos residenciais). Esta unidade não diz respeito ao sistema nativo. No entanto, para Arhem o mais importante é a rede de alianças matrimoniais que consolida esta organização.
Dessa feita, pode-se dizer que o arcabouço teórico proposto por Kaj Arhem compreendeu o princípio de descendência, enquanto estruturador dos grupos residenciais, fora isto, na esfera das relações inter-comunitárias operaram as redes de aliança. Em síntese, tanto o princípio da descendência quanto o da aliança funcionaram, mas em esferas distintas das relações. Outra importante contribuição do autor são os dados quantitativos - estatísticas, genealogias, mapas detalhados - apresentados no corpo de sua pesquisa, permitindo ao leitor atento acompanhar o curso de sua construção teórico/metodológica e, inclusive, criticá-lo.
Janet Chernela (1982,1983), vista de um outro ângulo, situa-se nesta súmula, alertando para o valor do sib. Para ela, cada sib possui um conjunto particular de nomes pessoais, que são herdados dos ascendentes, sendo por isso, repensados. Nesse sentido, a designação de cada sib indica a posição do indivíduo na hierarquia do sib. O sib, na realidade, é a unidade fundamental da sociedade. Ademais, afirma a autora, quando ele se segmenta é negado uma identidade ao grupo dissidente. Descarta com isto, o princípio da “irmandade”, sendo substituído pela repetição dos nomes dos ancestrais. Para ela, cada sib possui um conjunto particular de nomes pessoais, que são herdados dos quais estão associados a posição hierárquica tal como observou Goldman.
Outra influência percebida em sua obra é a de Christine Hug-Jones, quando Chernela afirma que os segmentos de sibs que abandonam a residência de seus parentes tendem a voltar posteriormente para a área de seu grupo exogâmico, ato que implica na segmentação e dispersão do sib. Faz-se notar também a influência de padre Alcionílio Brüzzi (1977), quando trata das “classes de geração”. Pois, segundo a autora, os vinte e cinco sibs Uanano estão classificados como irmãos, tios e avós, seguindo a lógica do sib de mais alto nível hierárquico. Os primeiros são dos “chefes” e os últimos representam a “criadagem”. Entre o primeiro e os últimos, a relação é de exploração e dominação. Com efeito, os grupos de chefes/criados, como de hábito, vivem juntos, colaborando entre si e com os outros, ao longo do mesmo rio. Nesta relação obedecem a regra de que quanto mais alto a posição hierárquica mais abaixo encontram-se localizados no curso do rio.
A hierarquização é de tal modo percebida em todos os níveis das relações sociais, em particular, nas relações de alianças matrimoniais. A autora observou que o casamento só pode ocorrrer entre sibs da mesma “classe de geração”, bem como entre grupos lingüísticos diferentes. Ela justifica tal compreensão , valendo-se do argumento de que os outros grupos pesquisados vivam em regiões de cabeceiras de rio.
Anteriormente, Berta Ribeiro (1980) já havia formulado relevante consideração acerca da mesma questão. Pois, segundo ela, a hierarquização começa dentro do grupo doméstico, em que se dintingue sempre o irmão mais velho do mais novo do ego, cabendo àquele a sucessão da chefia do grupo local, como a localização espacial ao longo do rio. Berta observou também que, neste contexto hierarquizado, os Tukano, eram superiores aos Desana e por conta exerciam o privilegio de pescar, na época da piracema, enquanto os Desana iam pegar maniuara (saúva) para trocar com os Tukano.
Destaca-se, portanto, o parâmetro espacial na definição da hierarquia. Esta tradição ordena a diversidade de ambiente, bem como os padrões de povoamento, a coleta de alimentos, a senhorialidade, o acesso aos recursos naturais e o mais importante para o tema em questão, a redistribuição em função de determinados laços sociais.
Stephen Hugh-Jones (1993, 1995) de forma densa compilou em seus artigos importante contribuição sobre a organização social dos Tukano. Inicalmente estabeleceu um diálogo com Arhem sobre a pertinência das relações de afinidade na organização social Tukano. Para ele, a noção de descendência abriga vários questionamentos e não explicita de certo modo o modelo nativo. Entretanto, toma para si, um dos argumentos de Arhem, no qual considera o ambiente local da maloca, como lugar, onde se verifica a exogamia e o agnatismo. Sendo que, na esfera regional, onde se abriga várias malocas vizinhas, reina a endogamia e a aliança.
Desse modo, segundo o autor, a organização social dos grupos Tukano fundamenta-se em princípios antagônicos formulados nas cerimônias do dabacuri e no rito de iniciação masculina. O dabacuri configura-se pela relação/associação regional de casas aliadas, solidárias e próximas geograficamente. Neste rito, os visitantes relacionam-se oferecendo frutas, caça ou peixe aos anfitriões. Estes, por sua vez, oferecem grande quantidade de caxiri. a todos. Da análise do dabacuri, o autor estabeleceu uma conrrespondência entre a relação convidados/anfitriões com os gêneros na vida cotidiana. Isto é, os convidados, que vêm de fora, oferecem alimentos, os quais quase sempre resultam do trabalho dos homens - caça e pesca . Em contrapartida, os anfitriões oferecem produtos que se originam do trabalho feminino, tais como o caxiri, beiju. A cerimônio do dabacuri, desta forma, representa as relações entre os gêneros mediado pelo trabalho num ambiente de intimidade e comensalidade com os afins.
Referente à iniciação masculina, Stephen Hugh-Jones relevou de suas formas as relaçõos de descendência, da hierarquia entre os parentes agnáticos, sendo suas expressões bem diferentes das cerimônias do dabacuri. Para ele, nestas cerimônias da iniciação participam todos os homens do sib e é uma afirmação de sua autonomia. O evento em si segue verticalmente as orientações do ancestral do grupo num contexto rígido e restrito, sendo contrário ao dabacuri.
A matriz interpretativa do autor é ampliada, justificando-se na noção de “casa” de Lévi-Strauss. Pois, segundo Carsten e S.Hugh-Jones, a “casa” como instrumento conceitual, possibilita compreender o desempenho de outros elementos formadores dos grupos sociais, como a riqueza, o poder e o status. Desta maneira, estas sociedades localizam-se entre as estruturas elementares e as sociedades complexas, momento em que a linguagem do parentesco incorpora outros valores, tais como o econômico e o político.
Tratando-se dos grupos Tukano, no entender de S. Hugh-Jones, esta riqueza traduz marcas de identidade, bem como a própria origem ascestral de um determinado grupo, permitindo compreender a descendência não mais isoladamente, mas numa estreita relação com a aliança. Desatando o antagonismo conceitual havido anteriormente entre os dois princípios, fortalecendo, desta forma, o horizonte apontado por Arhem. A contribuição considerou, tanto a descendência quanto a afinidade como princípio de organização social igualmente importante. Entretanto, a análise carece de uma definição, que represente com clareza os limites do que se chamou de “teritórios endogâmicos”, implicando a diferenciação da endogamia/exogamia.
Aloisio Cabalzar Filho (1995) pretendeu resgatar a singularidade da estrutura social do Uaupés no contexto das terras baixas, considerando os princípios da descendência e da aliança como catalisador de toda a sua análise, tendo por referência o estudo da realidade Tuyuka.
O projeto teórico do autor compreendeu, segundo ele, dois enfoques principais: O primeiro diz respeito à análise da formação, constituição e macanismo de manutenção de determinados grupos locais. Isto é, compreendeu a sociabilidade interna do grupo local. O segundo tem por fim uma proposição sobre a estrutura dos sistemas regionais, construído a partir dos dados sobre formas objetiva de casamento - redes de aliança -, concepções a respeito da diferenciação entre sub-grupos (sibs) de um mesmo grupo de descendência, padrões de assentamento e história de deslocamentos.
Para Cabalzar Filho, o aporte lingüístico funciona como identificador de um grupo de descendência amplo, delimitando um conjunto importante de relações, entre pessoas e grupos “aparentados” agnaticamente. Um outro fator que se destaca no campo da descendência é a hierarquia. Esta, por sua vez, é a base de diferenciação entre sub-grupos (sibs) que formam um mesmo grupo de descendência. Esta diferenciação é marcada espacialmente.
No entanto, embasado em sua observações, o autor afirma que, esta demarcação espacial, algumas vezes não é tão explícita como pode parecer, observa-se uma sobreposição de dois ou mais grupos de descendência exogâmica, com as intensas trocas matrimoniais, bem como o intercâmbio comercial e ritual, juntamente com afinidades culturais, tornando-se difícil encontrar critérios para definir cada um destes ambientes.
Ademais Cabalzar Filho destacou traços comuns que caracterizam os vários grupos Tukano da Bacia do Uaupés: a) mitologia, especialmente a relativa à origem e trajetória comum da Cobra Ancestral, que concebeu todos estes povos; b) os rituais de oferecimento (dabacuri) e cerimônias com os “cantos dos velhos”, cantos que são bastante assemelhados em toda área do Uaupés; c) o enfoque ribeirinho; d) uma subsistência baseada na pesca e na agricultura da mandioca brava; e) a maloca como moradia comum e modelo de concepção de vida social e do cosmos.
No que diz respeito à organizção social, o autor observou que a estrutura de cada grupo de descendência exogâmico é baseada em um conjunto de sibs nomeados, localizados ou com uma viva idéia de um passado unido pela co-residência, e hierarquizados entre si. Outros pontos que caracterizam todos estes grupos Tukano Orientais são: a língua como referência muito comum na definição do grupo de descendência exogâmico. Isto é, uma forte tendência à exogamia local e à virilocalidade.O autor arremata sua conclusão da seguinte forma: “de fato, embora a língua seja um parâmetro muito valorizado na categorização do universo social, a unidade lingüística não conincide necessariamente com as fronteiras de um grupo de descendência exogâmico”.
Para ele, portanto, percorrendo o horizonte de Arhem, os princiípios da descendência e da afinidade são instrumentos fundamentais na definição de grupos sociais na região do Uaupés e, do ponto de vista sociológico, são estruturais à organização social.
Assim sendo, Calbazar Filho compreendeu a estrutura social do Uaupés como um complexo formado por múltiplos grupos sociais abertos ao exterior, na medida em que consideram a regra do casamento exogâmico e contam com um sistema classificatório que preserva uma certa autonomia em relação à geografia. No caso dos Tuyuka, que estudou mais de perto, o autor afirma que eles dividem seu campo social em três categorias teminológicas: “os parentes, os afins e os co-afins”. Enfim, “parentes” são os que falam a mesma língua; os “afins’ são sempre pessoas de outros grupos lingüísticos com os quais os Tuyuka se casam. Assim, em todas as esferas espaciais , desde o âmbito local até as fronteiras da região uaupesiana, estão presentes “parentes”, “afins” e “filhos de mãe”.
Nos termos de sua conclusão, Cabalzar Filho estabeleceu a seguinte ponderação: o próprio modelo proposto baseado na diferenciação entre grupos centrais e periféricos, embora possua um núcleo agnático, revela, a partir desta esfera, a presença de agnatas e de afins. Isto mostra uma certa dificuldade no emprego do gradiente próximo/distante como mecanismo suficiente para determinar categorias sociais, em particular, entre os Tuiuka. Isto porque, entre eles, o agnatismo é que atua de maneira mais determinante.
Como resultado dessas notas, mergulhados nos temas geradores, formulei as questões problemas abaixo, na perspectiva de compreender a problemátoca dos Internatos religiosos - educacão escolar - na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, considerando:
*Como as estruturas sociais Tukano operam no processo de organização das associações políticas da região?;
*Como articular no campo da política indígena as alianças, descendência e afinidades?;
*Como analisar as relações de poder a partir das Associações, bem como da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) numa estrutua de hierarquia;
*No campo ideológico, como examinar as influências dos internatos religiosos/escola relativo à cosmologia Tukano;
*Como compreender os tipos de poder operante, suas formas de legitimidade e suas representações culturais?
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(*) É antropólogo, professor e coordenador do NCPAM/UFAM. A Súmula são notas dispersas sobre a revisão literária do campo a partir da problemática em foco.
A documentação etnológica da região do alto rio Negro e, em particular da bacia hidrográfica do rio Uaupés, resulta das várias observações dos viajantes, sejam naturalistas, etnólogos ou missionários que passaram por este rio nos meados do século passado, bem como nas primeiras décadas de nosso século. Trata-se de um conjunto de fontes heterogêneas, destacando-se os relatos de Alfred Russell Wallace, Ermano Stradelli, Curt Nimuendajú, Padre Antônio Giacone, Padre Alcionilio Brüzzi, Eduardo Galvão e, sobretudo, o registro etnográfico de Theodor Koch-Grünberg, como referência obrigatória para os estudos sobre a cultura dos povos indígenas desse território.
A presente Súmula expõe as leituras efetuadas no curso da pesquisa, reunindo os autores a partir do desenvolvimento de uma determinada matriz téorico/metodológica acerca das Organizações Sociais Tukano. Dessa feita, destacam-se as monografias de Irving Goldman (1963), Arthur Sorensen (1967) Jean Jachson (1983), Christine Hugh-Jones (1979), Kaj Arhem (1981), Janet Chernela (1982, 1983), Stephen Hugh-Jones (1993, 1995) e Aloisio Cabalzar Filho (1995).
É verdade, que todos estes autores encontram-se de uma forma ou de outra vinculados às diferentes escolas da Antropologia Social. Também é verdade, que o domínio desta literatura faz-se necessário, para que se possa estabelecer as diferenças metodológicas na definição de um problema de estudo, que se pretende construir. Deste modo, o corte metodológico feito nas leituras referentes, considerou relevante a temática das Organizações Sociais, o que se justifica devido à pesquisa desenvolvida na região Uaupesiana dos Tukano sobre o tema: Escolarização e Política das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro¸ Amazonas .
Outrossim, os autores enunciados, em sua maioria, pensam estas Organizações Sociais ou Estruturas Sociais amparados no princípio da descendência, tendo como referência os grupos gerados nesta base. Isto é, a partir do grupo local descrevem várias esferas abrangentes, definidas pela exogamia e pela ideologia da agnação. Nesse contexto, as discussões giram em torno da formulação de outros aspectos aditivos que podem ser incorporados, na perspectiva de dar maior resolução a estas estruturas baseadas na descendência. Veja, por exemplo, Sorensen e Jackson valorizam o aspecto lingüístico para caracterizar tais grupos exogâmicos. Contrário a esta vertente, C. Hugh-Jones chama a atenção para o caráter funcional/ideológico e a contiguidade territorial.
Nestas circunstâncias, a análise de Kaj Arhem apresenta-se de modo bem particular. Pois, identifica na aliança um outro princípio substantivo nestas Organizações Sociais, complementando ou quem sabe, concorrendo com o princípio da descendência. Ademais, desenvolveu um estudo específico sobre Organização Social, dominando as discussões teóricas mais amplas acerca do parentesco e das estruturas sociais, preocupado, sobremaneira, em compreender as sociedades amazônicas. Outras análises mais recente, como a de Janet Chernela, Aloisio Calbazar Filho e Stephen Hugh-Jones contribuíram de forma diferenciada para a discussão das Organizações Sociais do Uaupés.
Contudo, Irving Goldman, entre os anos de 1938-40, foi o primeiro a trabalhar exaustivamente a problemática das Organizações Sociais, tendo por referência os Cubeo do rio Cuduiarí, afluente do Uaupés. Em sua obra, publicada em 1963, o autor apresentou um modelo de Organização Social fundamentado na associação dos sibs em fratrias e descreveu o fundamento cosmológico desses grupos de descendência.
Sua etnografia contemplou os diversos temas, tais como, ciclo da vida, formas de rituais, a religião e sobretudo, inaugurou os estudos sobre as Organizações Sociais, destacando as análises sobre as estruturas dos grupos de descendência, bem como a relação entre coesão e autonomia, como também questões relativos à exogamia, à hierarquia em contraponto com a igualdade. Da mesma forma, desenvolveu estudos sobre a terminologia de parentesco e afinidade dos Cubeo.
Goldman construiu uma representação da estrutura dos grupos de descendência fundamentada em “três esferas” que se alargam progressivamente e respectivamente, o sib, a fratria e a tribo. Isto é, um conjunto de sibs aparentados agnaticamente e hierarqiuizados formam uma fratria, que corresponde à esfera exogâmica mais relevante. Nessa perspectiva analítica, a tribo dos Cubeo estaria composta por três fratrias que permutam os cônjuges entre si. O importante é que, todas elas são falantes da mesma língua. Portanto, a unidade da fratria é baseada na noção de descendência comum. Contrário da tribo, cuja explicitação consiste na identidade lingüística.
Nesse sentido, a fratria é um agregado social mais importante que a tribo, na medida que integra um conjunto de sibs ligados estreitamente por regras de casamento exogâmico, contiguidade territorial ao longo do mesmo rio, por uma tradição de origem e descendência comuns, por ocuparem espaços definidos na hierarquia social e nas cerimônias, momentos em que todos participam.
Em suma, para Goldman, o segmento básico da Organização Social é o sib. Este por sua vez, é nomeado, localizado, exogâmico, patrilinear, patrilocal e hierarquizado dentro da fratria. “O sib como centro da estrutura social, como foco e regulador de todas as principais atividades sociais, religiosas e econômicas. Na verdade, a identificação de uma pessoa se dá apenas pelo sib.”
Quanto à sociabilidade interna dos grupos locais, Goldman desenvolveu a noção de comunidade. Esta, sobretudo, é definida como unidade exogâmica. Pois, segundo o autor, não se casa dentro da comunidade mesmo quando se conta com pessoas disponíveis. Um outro tema trabalhado pelo autor diz respeito ao exercício da chefia, cujo objetivo, segundo Goldman é o de manter as boas relações entre os moradores de uma maloca, isto é, cuidar para que comportamentos e formas de sentimentos desfavoráveis à vida comunitária sejam controladas e resolvidas tranqüilamente. Em realidade, espera-se de todos que respeitem a boa regra da colaboração e reciprocidade.
À guisa de conclusão destaca-se a abordagem metodológica desenvolvida por Goldman. Pois, a leiturua de sua obra permite que se percebam as diferenças entre suas observações e a narrativa dos Cubeo, bem como o intrumental analítico operado, para compreender a complexidade das Organizações Sociais ordenadas por uma tradição de descendência patrilinear e pela exogamia matrimonial, interpretada pelo autor da seguinte forma:
“Em geral, a região do Uaupes é a única parte do noroeste do Amazonas da qual se pode falar sobre um conhecimento pessoal. Nesta, expressa-se um alto grau de cosmopolitismo cultural. Pois, muitos índios são poliglotas devido à freqüência de matrimônios mútuos com outros grupos lingüísticos. Da mesma forma, eles têm uma enorme afeição em viajar e promover o comércio intertribral. Isto faz com que os indígenas tenham alguns conhecimentos das línguas clássicas da região, como o espanhol e o português, bem como da língua geral, que é a língua franca da região baseada no tupi. À medida em que adotam outras línguas, adotam também novos costumes.”
Para complementar a descrição/interpretação de Goldman recorro a recente publicação do lingüista Henri Ramirez, sobre “A fala Tukano dos Ye’Pâ-Masa”, quando afirma, ser o Tukano, atualmente, a língua franca da região do Uaupés: “o número de falantes ye’pâ-masa (Tukano propriamente dito) é superior ao número dos membos desta etnia. Este fato deve-se à expansão da língua ye’pâ-masa e à sua adoção como língua franca pelos falantes de outros grupos da mesma família lingüística ou da etnia (Arawak). Com um número de falantes superior a 10.000 (somando os lados brasileiro e colombiano), o ye’pâ-masa é numericamente uma das línguas indígenas mais faladas na Amazônia” (Ramirez, 1997: 9).
A obra de Goldman contribuiu, sem dúvida, para se aperfeiçoar e até mesmo reformular categorias analíticas sobre as Organizações Sociais do Uaupés. A multiplicação das pesquisas de campo na região ocorreu aceleradamente no final dos anos sessenta e nas primeiras décadas de setenta. Destacando-se nesse ínterim os trabalhos do casal Stephen e Christine Hug-Jones (Barasana), de Jean Jackson (Bará), como também os de Kaj Arhem (Makuna). No entanto, no Brasil, os Tukano, propriamente dito, ainda não foram densamente estudados pelos etnólogos, principalmente, sobre o enfoque da temática das Organizações Sociais.
Irving Goldman, sendo o pioneiro destes estudos, criou condições para que Arthur Sorensen (1967) realizasse sua pesquisa de campo entre os vários grupos lingüísticos da região, contribuindo, desta forma, para a compreensão da temática sobre as Organizações Sociais Uaupesianas. A argumentação central de Sorensem diz respeito à conjugação da exogamia relacionada com a unidade lingüística. Esta, por sua vez, nos anos oitenta, foi incorporada por Jean Jackson (1983) na construção de seu próprio trabalho.
Sorensem, entretanto, faz restrições ao uso da noção de tribo, isto porque, segundo o autor, as delimitações feitas a partir do critério lingüístico não coincidem com aquelas realizadas através de traços culturais. Para ele, a região central do Noroeste Amazônico encontra-se determinada por uma certa homogeneidade cultural. Entenda-se de um ponto de vista externo e não numa perspectiva dos próprios índios. Feita a verificação conceitual, Sorensen termina trabalhando com a representação de tribo, mas, segundo ele, numa perspectiva interna dos próprios.
O autor, contário à Goldman, reconheceu entre os grupos Tukano o uso do critério lingüístico como instrumento analítico capaz de delimitar esferas exogâmicas. Por outro lado, é bom que se diga que não se trata de uma incompreensão de Goldman, o esclarecimento é feito pelo pesquisador Cabalzar Filho, porque “como vimos, entre os Cubeo este critério de fato não vigora.” Entretanto, para Sorensem, salvo alguns casos excepcionais, os sibs que formam uma tribo (entenda-se por grupo lingüístico), em geral, pertencem a uma única fratria, ou seja, uma tribo corresponde a uma fratria e, portanto, é exogâmica.
Na realidade, Sorensen mantém as mesmas categorias de Goldman. Isto é, a tribo é definida pelo critério lingüístico e a fratria exogâmica formada por diversos sibs, sendo que a tribo é formada por apenas uma fratria. Desta feita, trata-se de uma construção mais ampla, compreendendo as Organizações Sociais Uaupesianas.
Outra importante contribuição de Sorensen diz respeito à função do multilingüísmo, também observada por Goldman, na região. No entanto, para Sorensen esta função permite segmentações neste universo culturalmente homogêneo e, deste modo, torna-se visível as unidades exogâmicas.
Quanto à Jean Jackson sabe-se que realizou o seu trabalho de campo entre os Bará, no alto Caño Inambú, tributário do alto Papurí, e que estabeleceu um diálogo com a obra de Goldman. A autora, em seu trabalho, destacou de modo particular, o aspecto lingüístico como definidor de uma das unidades sociais mais importantes: grupo local.
Definiu por grupo local a unidade mais importante do sistema social do Uaupés. Em princípio, a autora afirmou que o grupo local coincidirá com o sib. Por outro lado, a falta de correspondência entre a estrutura e a realidade foi atribuída ao contato com os brancos ou relativo à fluidez encontrada nos grupos sociais do Uaupés. Para ela, os Tukano não reconhecem uma outra unidade cognitiva e afetivamente mais importante, que não seja o grupo local. No curso da leitura, esssa construção analítica não é tão convincente, parece deslocada do campo empírico, pois não explicita com clareza as propriedades das Organizações Sociais Uaupesianas.
A indefinição analítica dos grupos sociais, que transparece no trabalho de Jackson, de uma outra forma, pode ser notada no curso da demarcação dos grupos lingüísticos. Esta representação conceitual que, por sua vez, pretende substituir a tribo, enquanto categoria teórico/metodológica de Goldman, também é imprecisa.
Entretanto, as determinações conceituais do grupo lingüístico são definidas da seguinte maneira: a língua e o nome; um ancestral fundador e um papel distinto no ciclo do mito de origem Tukano; o direito ao poder ancestral através de cantos sagrados; direito de produzir certos instrumentos rituais; associação com certos objetos cerimoniais. A autora reconhece, que os grupos lingüisticos não ocupam um território contínuo, sendo aqueles do Pirá-paraná os que mais se aproximam de sua construção.
Finalmente, segundo Jackson, a estrutura social tradicional do Uaupés, como assim definiu as Organizações Sociais, contém quatro estratos: o mais abrangente corresponde às fratrias, que reunidas, compreendem todo o sistema. Cada fratria é formada por alguns grupos lingüísticos que, por sua vez, são constituídos por sibs e estes por um ou mais grupos locais. Como vimos, anteriormente, para Goldman uma fratria corresponde a um conjunto de sibs, ao passo que em Jackson trata-se de um conjunto de grupos lingúisticos. Entretanto, tal como Goldman, a autora define fratria como constituída por grupos lingüísticos relacionados agnaticamente e não através do parentesco uterino.
Em resumo, o trabalho de Jean Jackson, embora seja rico em dados empíricos, carece de um rigor analítico capaz de abstrair as diversas propriedades das estruturas sociais dos Bará . De outro modo, suas representações descritivas/interpretativas construídas em seu modelo permitem visualizar a constituição e dinâmica dos grupos de descendência, compreendendo a forma e o espaço das relações de afinidade.
Outra monografia, a de Christine Hugh-Jones (1979), que influenciou os estudos acerca das sociedades amazônicas, transcende, sem dúvida, a temática das Organizações Sociais. No entanto, a autora, desde o início de sua obra, deixou claro que a compreensão da estrutura social uaupesiana só faz sentido quando não é feita isoladamente, sendo necessário considerar a extensão dos conceitos de parentesco, matrimônio, o ciclo da vida, a política, a economia e a religião, integrados ideologicamente e intrinsicamente ao comportamento concreto destes grupos. Outro procedimento metodológico é o tratamento dispensado às estruturas sociais como um sistema social aberto. Isto é, constituído por diversos grupos interligados.
Quanto à endogamia, a autora apresenta as seguintes ponderações: aqui, dois fatores se cruzam e concorrem; por um lado, o caráter aberto do sistema; por outro, a vertente de que ocorra uma certa limitação deste universo social, através de uma maior incidência de casamentos próximos e formação de conjunto supra-locais restritos. Ademais, conta-se com a tendência ribeirinha destes grupos, o que conduz à delimitação territorial, de certo modo, constituindo em sub-sistema baseado no curso dos rios.
Feito esta discussão preliminar, C. Hugh-Jones propõe substituir o aspecto lingüístico pela estrutura funcional, a qual determina a posição e o papel dos vários sibs em um grupo exogâmico. Em sua construção teórico-metodológica, a autora dialogou com Goldman e Jackson, estabelecendo comparações e diferenças. De Jackson, a autora abstraiu a noção de fratria, bem como a noção de sib, como ambos autores definiram. No entanto, refutou a proposta de language aggregate (language exogamous group) e em contrapartida apresentou os conceitos de “Grupo Exogâmico Simples” e “Grupo Exogâmico Composto”.
Neste contexto, a primeira unidade da estrutura social descrita é formada pelos Grupos Exogâmicos. Difiniu-se por Grupo Exogâmico Simples um conjunto de sibs ordenados hierarquicamente. Cada um dos sibs está associado a uma função determinada, que é, do irmão mais velho para o mais novo, respectivamente a do chefe, cantor, guerreiro, xamã e servo. Dois ou mais destes conjuntos de sibs assim ordenados formariam um Grupo Exogâmico Composto.
Um grupo exogâmico seja simples ou composto ocupa um território contínuo, o que talvez, não ocorra com os diversos grupos exogâmicos que compõem uma fratria. Para Christine Hugh-Jones, mesmo as sub-divisões de um sib que se deslocou para fora do território de seu grupo tendem a voltar para sua localização de origem. Entretanto, a autora afirma, que os índios estão mais atentos a tipo de relacionamento hierárquico do que à definição de fronteiras sociais. Neste sentido, ela desenvolveu argumentação favorável a Goldman, no que diz respeito a distribuição dos sibs ao longo do rio, definindo uma espacialidade hierarquizada: baixo curso/alta hierarquia e alto curso/baixa hierarquia.
As malocas enquanto comunidades ou seja unidades produtivas, são autônomas em certo sentido. Entretanto, a autora considera inter-dependentes quanto à realização dos grandes rituais, organização política, comércio e, sobretudo, nas relações matrimoniais. Ainda sobre a descrição da maloca, C. Hugh-Jones argumentou sobre o problema da coesão/ruptura dos grupos de descendência locais de modo fundante no mito de orgiem dos Barasana, o que de certo modo compreendeu uma boa parte dos grupos Tukano do Uaupés.
A narrativa mítica, na verdade, contempla a trajetória da Anaconda Ancestral subindo o “Rio do leite”, quando os diversos povos ainda não haviam tornado gente e viviam nas entranhas da Anaconda. O fenômeno registra ainda os períodos de emergência à superfície de determinados sibs. Durante esses periodos dançavam e demonstravam as técnicas e outros bens culturais adquiridos. Todos estes pontos de aparição são lembrados nos relatos do mito de origem. Trata-se de um processo de transformação gradual que se prolonga até o momento em que estes povos tornaram-se o que são atualmente. Para a autora, esta época anterior a adoção definitiva da terra ou seja a emergência de sua aparição é chamada de pre-descent. Sendo que marco principal da passagem entre estas duas fases, segundo a autora, é a ocorrência dos matrimônios.
Em síntese, C. Hugh-Jones resgatou a narrativa mítica como fonte e extensão do conceito de estrutura social. De certa forma, recolocou a exogamia como aspecto relevante em sua abordagem analítica e, por outro lado, considerou de menor valia a unidade lingüística, enquanto categoria explicativa. Enfim, sua construção teórico-metodológica sustentou uma compreensão mais aproximada das estruturas sociais uaupesianas, tornando-se referência para os estudos das sociedades amazônicas, sem se limitar a uma análise do parentesco e nem tampouco tornou-se refém da cosmoloigia do grupo local.
Por um outro ângulo, Kaj Arhem (1981) deslocou o olhar para uma questão mais abrangente, pretendendo compreender as relações entre os grupos de descendência e a aliança, descartando o argumento lingüiístico, no caso dos Makuna, para se demarcar os ambientes exogâmicos.
O autor, na verdade, se propõe a elaborar um estudo da Organização Social Makuna, como estrutura variante dentro do sistema social do Uaupés. Ademais, assumiu uma perspectiva comparativa entre outras sociedades amazônicas.
Metodologicamente, Kaj Arhem considerou que os autores anteriores não problematizaram devidamente as representações conceituais embasadas na descendência, desqualificando de certa maneira, as formas reais de agrupamento social e espacial dos Tukano. Segundo ele, os autores em privilegiar o sistema de classificação social dos grupos locais construíram apenas uma abstração, um modelo idealizado, como é o caso de Christine Hugh-Jones (1979). Da mesma forma, para ele, outros autores, não foram tão evidentes em diferençar entre o ideal e o comportamento real, é o caso de Goldman e Jackson.
Feito isto, Arhem compreendeu que a noção de estrutura social deve ser extendida no sentido de acomodar tanto a descendência patrilinear quanto a aliança prescritiva simétrica como princípio organizador. Arhem estabeleceu quatro pontos fundamentais para o desenvolvimento de sua análise: a) a relação entre categorias sociais e agrupamentos sociais concretos, seguindo a conhecida distinção entre o êmico e o ético. b) A relação entre terminologia de parentesco e instituições sociais. c) A interação entre aliança simétrica e os grupos de descendência. E finalmente, trabalhou diretamente com tipologias e comparações entre sistemas sociais, numa perspectiva estruturalista.
Assim definiu que, um conjunto de sibs aproximados e exogâmicos, não permitindo as relações matrimoniais entre si, constituia um “segmento frático”, que pode ser ou não nominado, possuidor de um ancestral mítico reconhecido. A esfera exogâmica mais ampliada mereceu a qualificação de categoria frátrica que, segundo o autor, é uma categoria agnática vagamente definida. Em realidade, Arhem optou por esta definição para diferenciá-la do modelo de Jackson. Ele entendeu que para os Makuna, a unidade lingüística não determinava as esferas exogâmicas, bem como a análise construída por Christine Hugh-Jones, por não estar convencido de que a noção de Grupo Exogâmcio Simples dependa da organização dos sibs. Entretanto, o próprio autor reconheceu o quanto é complexa a questão da inexistência da exogamia lingüística entre os Makuna, tanto assim, que nem sequer aprofundou a temática, deixando em aberto a questão.
Quanto à descendência também não é tão esclarecedor. Ele retorma o trabalho com a estrutura do sistema, as noções de segmento e a categoria frátrica. Para Arhem existem pequenos conjuntos de sibs - cita um que congrega três sibs e um outro mais dois - , correspondendo aos segmentos frátricos. Provavelmente, segundo suas afirmações, cada um destes conjuntos originaram-se da divisão de um único sib. Enfim, segmentos frátricos desta natureza, juntamente com outros destas espécies ou com sibs isolados, não necessariamente Makuna, formando o que ele chamou de uma categoria frátrica por explicitar as relações exogâmicas, o que transcende as fronteiras lingüísticas.
Os Makunas, neste sentido, estão divididos entre duas categorias fráticas, mas a soma destas duas categorias fráticas inteiras constitui um universo social muito maior que os Makuna, já que cada categoria frátrica compreende sibs deste grupo lingüístico e sibs de outros grupos de descendência.
Não satisfeito com os esclarecimentos apresentados no corpo do trabalho formulei algumas considerações acerca da análise de Kaj Arhem: a) em sua análise, o autor não apresentou nenhuma mediação conceitual, que diferenciasse o universo dos sibs Makuna no interior de cada categoria frátrica. A ausência deste instrumento pode parecer que, para o autor a língua é algo completamente acidental nas estruturas sociais Uaupesianas, o que não condiz com a realidade da região; b) imprecisão quanto à extensão dos conceitos, pois, quantitativamente um segmento frátrico pode compreender um só sib com até vinte pessoas ou um grupo lingüístico formado por mais de quinhentas pessoas; c) não formalizou nenhuma diferença entre fratria baseada na relação agnática e aquela referente à ligação entre filhos de mãe; d) o reducionismo conceitual propugnado pelo autor conciste em defender a simplificação do sistema triádico enquanto classificação social - irmãos, filhos de mãe e afins - a uma divisão dual da realidade social.
Esta compreensão um tanto reducionista justificou o campo de análise do autor, no qual destacou a estrutura social Makuna assentada nos princípios da descendência e, sobretudo, na aliança simétrica.
Com sua obra, Kaj Arhem distanciou-se dos autores anteriores que trabalharam com os grupos Tukano Orientais. A especificidade de seu trabalha, na verdade, está em qualificar a aliança como estratégia de organização social Makuna, bem como fundamento para que se compreendam as relações inter-grupais. Para tanto, inicialmente, influenciado pela análise de Christine Hugh-Jones, demonstrou que os Makuna, em grande parte, casam-se com afins próximos, construindo com eles relações de permanente solidariedade.
Quanto à formação de nexos endogâmicos, compostos por grupos residenciais espacialmente próximos e que se relacionam economicamente, polticamente, celebrando ritos e matrimônios entre si, são favorecidos pelo ideal de casamento com primos cruzados bilaterais reais e pela preferência de fato em realizá-lo na mesma linha dos pais. Em outras palavras, Kaj Arhem seguiu as orientações de Kaplan (1975) sobre a aliança diacrônica, quando argumentou favorável a tendência dos grupos sociais estenderem seus laços de afinidade por várias gerações, resultando da ênfase do casamento com afins próximos genealogicamente.
Nesse contexto, faz-se necessário descrever a distinção feita por Arhem sobre duas categorias de grupo: residencial e local. O residencial corresponde a uma moradia, seja a maloca ou casa menor, sendo constituído, quase sempre, por um segmento mínimo de um sib. Refere-se, sobretudo, a uma estrutura agnática tipicamente superficial. Esta estrutura tende a passar por um ciclo de desenvolvimento caractererizado, inicialmente, pela família nuclear - o casal e seus filhos -, em seguida estes crescem, se casam, seu pai morre e a estrutura fraternal tende a se fissionar, especialmente por causa da ausência da figura paterna. Os grupos locais são consideraos pelo autor como um nexo formado por alguns grupos residenciais (três a nove grupos residenciais). Esta unidade não diz respeito ao sistema nativo. No entanto, para Arhem o mais importante é a rede de alianças matrimoniais que consolida esta organização.
Dessa feita, pode-se dizer que o arcabouço teórico proposto por Kaj Arhem compreendeu o princípio de descendência, enquanto estruturador dos grupos residenciais, fora isto, na esfera das relações inter-comunitárias operaram as redes de aliança. Em síntese, tanto o princípio da descendência quanto o da aliança funcionaram, mas em esferas distintas das relações. Outra importante contribuição do autor são os dados quantitativos - estatísticas, genealogias, mapas detalhados - apresentados no corpo de sua pesquisa, permitindo ao leitor atento acompanhar o curso de sua construção teórico/metodológica e, inclusive, criticá-lo.
Janet Chernela (1982,1983), vista de um outro ângulo, situa-se nesta súmula, alertando para o valor do sib. Para ela, cada sib possui um conjunto particular de nomes pessoais, que são herdados dos ascendentes, sendo por isso, repensados. Nesse sentido, a designação de cada sib indica a posição do indivíduo na hierarquia do sib. O sib, na realidade, é a unidade fundamental da sociedade. Ademais, afirma a autora, quando ele se segmenta é negado uma identidade ao grupo dissidente. Descarta com isto, o princípio da “irmandade”, sendo substituído pela repetição dos nomes dos ancestrais. Para ela, cada sib possui um conjunto particular de nomes pessoais, que são herdados dos quais estão associados a posição hierárquica tal como observou Goldman.
Outra influência percebida em sua obra é a de Christine Hug-Jones, quando Chernela afirma que os segmentos de sibs que abandonam a residência de seus parentes tendem a voltar posteriormente para a área de seu grupo exogâmico, ato que implica na segmentação e dispersão do sib. Faz-se notar também a influência de padre Alcionílio Brüzzi (1977), quando trata das “classes de geração”. Pois, segundo a autora, os vinte e cinco sibs Uanano estão classificados como irmãos, tios e avós, seguindo a lógica do sib de mais alto nível hierárquico. Os primeiros são dos “chefes” e os últimos representam a “criadagem”. Entre o primeiro e os últimos, a relação é de exploração e dominação. Com efeito, os grupos de chefes/criados, como de hábito, vivem juntos, colaborando entre si e com os outros, ao longo do mesmo rio. Nesta relação obedecem a regra de que quanto mais alto a posição hierárquica mais abaixo encontram-se localizados no curso do rio.
A hierarquização é de tal modo percebida em todos os níveis das relações sociais, em particular, nas relações de alianças matrimoniais. A autora observou que o casamento só pode ocorrrer entre sibs da mesma “classe de geração”, bem como entre grupos lingüísticos diferentes. Ela justifica tal compreensão , valendo-se do argumento de que os outros grupos pesquisados vivam em regiões de cabeceiras de rio.
Anteriormente, Berta Ribeiro (1980) já havia formulado relevante consideração acerca da mesma questão. Pois, segundo ela, a hierarquização começa dentro do grupo doméstico, em que se dintingue sempre o irmão mais velho do mais novo do ego, cabendo àquele a sucessão da chefia do grupo local, como a localização espacial ao longo do rio. Berta observou também que, neste contexto hierarquizado, os Tukano, eram superiores aos Desana e por conta exerciam o privilegio de pescar, na época da piracema, enquanto os Desana iam pegar maniuara (saúva) para trocar com os Tukano.
Destaca-se, portanto, o parâmetro espacial na definição da hierarquia. Esta tradição ordena a diversidade de ambiente, bem como os padrões de povoamento, a coleta de alimentos, a senhorialidade, o acesso aos recursos naturais e o mais importante para o tema em questão, a redistribuição em função de determinados laços sociais.
Stephen Hugh-Jones (1993, 1995) de forma densa compilou em seus artigos importante contribuição sobre a organização social dos Tukano. Inicalmente estabeleceu um diálogo com Arhem sobre a pertinência das relações de afinidade na organização social Tukano. Para ele, a noção de descendência abriga vários questionamentos e não explicita de certo modo o modelo nativo. Entretanto, toma para si, um dos argumentos de Arhem, no qual considera o ambiente local da maloca, como lugar, onde se verifica a exogamia e o agnatismo. Sendo que, na esfera regional, onde se abriga várias malocas vizinhas, reina a endogamia e a aliança.
Desse modo, segundo o autor, a organização social dos grupos Tukano fundamenta-se em princípios antagônicos formulados nas cerimônias do dabacuri e no rito de iniciação masculina. O dabacuri configura-se pela relação/associação regional de casas aliadas, solidárias e próximas geograficamente. Neste rito, os visitantes relacionam-se oferecendo frutas, caça ou peixe aos anfitriões. Estes, por sua vez, oferecem grande quantidade de caxiri. a todos. Da análise do dabacuri, o autor estabeleceu uma conrrespondência entre a relação convidados/anfitriões com os gêneros na vida cotidiana. Isto é, os convidados, que vêm de fora, oferecem alimentos, os quais quase sempre resultam do trabalho dos homens - caça e pesca . Em contrapartida, os anfitriões oferecem produtos que se originam do trabalho feminino, tais como o caxiri, beiju. A cerimônio do dabacuri, desta forma, representa as relações entre os gêneros mediado pelo trabalho num ambiente de intimidade e comensalidade com os afins.
Referente à iniciação masculina, Stephen Hugh-Jones relevou de suas formas as relaçõos de descendência, da hierarquia entre os parentes agnáticos, sendo suas expressões bem diferentes das cerimônias do dabacuri. Para ele, nestas cerimônias da iniciação participam todos os homens do sib e é uma afirmação de sua autonomia. O evento em si segue verticalmente as orientações do ancestral do grupo num contexto rígido e restrito, sendo contrário ao dabacuri.
A matriz interpretativa do autor é ampliada, justificando-se na noção de “casa” de Lévi-Strauss. Pois, segundo Carsten e S.Hugh-Jones, a “casa” como instrumento conceitual, possibilita compreender o desempenho de outros elementos formadores dos grupos sociais, como a riqueza, o poder e o status. Desta maneira, estas sociedades localizam-se entre as estruturas elementares e as sociedades complexas, momento em que a linguagem do parentesco incorpora outros valores, tais como o econômico e o político.
Tratando-se dos grupos Tukano, no entender de S. Hugh-Jones, esta riqueza traduz marcas de identidade, bem como a própria origem ascestral de um determinado grupo, permitindo compreender a descendência não mais isoladamente, mas numa estreita relação com a aliança. Desatando o antagonismo conceitual havido anteriormente entre os dois princípios, fortalecendo, desta forma, o horizonte apontado por Arhem. A contribuição considerou, tanto a descendência quanto a afinidade como princípio de organização social igualmente importante. Entretanto, a análise carece de uma definição, que represente com clareza os limites do que se chamou de “teritórios endogâmicos”, implicando a diferenciação da endogamia/exogamia.
Aloisio Cabalzar Filho (1995) pretendeu resgatar a singularidade da estrutura social do Uaupés no contexto das terras baixas, considerando os princípios da descendência e da aliança como catalisador de toda a sua análise, tendo por referência o estudo da realidade Tuyuka.
O projeto teórico do autor compreendeu, segundo ele, dois enfoques principais: O primeiro diz respeito à análise da formação, constituição e macanismo de manutenção de determinados grupos locais. Isto é, compreendeu a sociabilidade interna do grupo local. O segundo tem por fim uma proposição sobre a estrutura dos sistemas regionais, construído a partir dos dados sobre formas objetiva de casamento - redes de aliança -, concepções a respeito da diferenciação entre sub-grupos (sibs) de um mesmo grupo de descendência, padrões de assentamento e história de deslocamentos.
Para Cabalzar Filho, o aporte lingüístico funciona como identificador de um grupo de descendência amplo, delimitando um conjunto importante de relações, entre pessoas e grupos “aparentados” agnaticamente. Um outro fator que se destaca no campo da descendência é a hierarquia. Esta, por sua vez, é a base de diferenciação entre sub-grupos (sibs) que formam um mesmo grupo de descendência. Esta diferenciação é marcada espacialmente.
No entanto, embasado em sua observações, o autor afirma que, esta demarcação espacial, algumas vezes não é tão explícita como pode parecer, observa-se uma sobreposição de dois ou mais grupos de descendência exogâmica, com as intensas trocas matrimoniais, bem como o intercâmbio comercial e ritual, juntamente com afinidades culturais, tornando-se difícil encontrar critérios para definir cada um destes ambientes.
Ademais Cabalzar Filho destacou traços comuns que caracterizam os vários grupos Tukano da Bacia do Uaupés: a) mitologia, especialmente a relativa à origem e trajetória comum da Cobra Ancestral, que concebeu todos estes povos; b) os rituais de oferecimento (dabacuri) e cerimônias com os “cantos dos velhos”, cantos que são bastante assemelhados em toda área do Uaupés; c) o enfoque ribeirinho; d) uma subsistência baseada na pesca e na agricultura da mandioca brava; e) a maloca como moradia comum e modelo de concepção de vida social e do cosmos.
No que diz respeito à organizção social, o autor observou que a estrutura de cada grupo de descendência exogâmico é baseada em um conjunto de sibs nomeados, localizados ou com uma viva idéia de um passado unido pela co-residência, e hierarquizados entre si. Outros pontos que caracterizam todos estes grupos Tukano Orientais são: a língua como referência muito comum na definição do grupo de descendência exogâmico. Isto é, uma forte tendência à exogamia local e à virilocalidade.O autor arremata sua conclusão da seguinte forma: “de fato, embora a língua seja um parâmetro muito valorizado na categorização do universo social, a unidade lingüística não conincide necessariamente com as fronteiras de um grupo de descendência exogâmico”.
Para ele, portanto, percorrendo o horizonte de Arhem, os princiípios da descendência e da afinidade são instrumentos fundamentais na definição de grupos sociais na região do Uaupés e, do ponto de vista sociológico, são estruturais à organização social.
Assim sendo, Calbazar Filho compreendeu a estrutura social do Uaupés como um complexo formado por múltiplos grupos sociais abertos ao exterior, na medida em que consideram a regra do casamento exogâmico e contam com um sistema classificatório que preserva uma certa autonomia em relação à geografia. No caso dos Tuyuka, que estudou mais de perto, o autor afirma que eles dividem seu campo social em três categorias teminológicas: “os parentes, os afins e os co-afins”. Enfim, “parentes” são os que falam a mesma língua; os “afins’ são sempre pessoas de outros grupos lingüísticos com os quais os Tuyuka se casam. Assim, em todas as esferas espaciais , desde o âmbito local até as fronteiras da região uaupesiana, estão presentes “parentes”, “afins” e “filhos de mãe”.
Nos termos de sua conclusão, Cabalzar Filho estabeleceu a seguinte ponderação: o próprio modelo proposto baseado na diferenciação entre grupos centrais e periféricos, embora possua um núcleo agnático, revela, a partir desta esfera, a presença de agnatas e de afins. Isto mostra uma certa dificuldade no emprego do gradiente próximo/distante como mecanismo suficiente para determinar categorias sociais, em particular, entre os Tuiuka. Isto porque, entre eles, o agnatismo é que atua de maneira mais determinante.
Como resultado dessas notas, mergulhados nos temas geradores, formulei as questões problemas abaixo, na perspectiva de compreender a problemátoca dos Internatos religiosos - educacão escolar - na região do Alto Rio Negro, no Amazonas, considerando:
*Como as estruturas sociais Tukano operam no processo de organização das associações políticas da região?;
*Como articular no campo da política indígena as alianças, descendência e afinidades?;
*Como analisar as relações de poder a partir das Associações, bem como da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) numa estrutua de hierarquia;
*No campo ideológico, como examinar as influências dos internatos religiosos/escola relativo à cosmologia Tukano;
*Como compreender os tipos de poder operante, suas formas de legitimidade e suas representações culturais?
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(*) É antropólogo, professor e coordenador do NCPAM/UFAM. A Súmula são notas dispersas sobre a revisão literária do campo a partir da problemática em foco.
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