Aquiles Pinheiro (*)
As línguas indígenas brasileiras têm grande importância cultural e científica. Quando falamos da língua de um povo, estamos também falando da sua cultura, história, percurso geográfico e cosmovisão, entre outros aspectos da totalidade social. Portanto, o estudo sobre as línguas indígenas brasileiras possibilita a construção de conhecimento a respeito dos universos culturais desses povos.
No Brasil por volta de 1500 estima-se que entre os povos indígenas se falasse 1300 línguas, hoje, reduzidas aproximadamente a 180 línguas, a maioria ainda falada na Amazônia brasileira. Nesta região, uma das áreas de maior diversidade linguística do Brasil é o médio e alto rio Negro, no estado do Amazonas, em razão do enclave de grupos étnicos distintos cooptados pelos colonizadores para servir de mão de obra semi-escrava no período da busca pelas especiarias e, posteriormente da extração do Látex. Ainda nesse período, houve a migração nordestina que intensificou a disseminação do uso da língua portuguesa entre os grupos indígenas locais.
A concentração de etnias distintas e de relacionamentos interétnicos, entre outros, são fatores condicionantes de um complexo etnolinguístico de grande densidade entnocultural. A manutenção desse complexo se deve à persistência da exogamia linguística à residência patrilocal. Ou seja, os homens se casam com mulheres que falam uma língua diferente da sua. Entretanto, a língua que identifica a pessoa, a aldeia ou o grupo étnico é, principalmente, a língua do pai. Como consequência, encontram-se falantes que dominam três ou mais línguas indígenas além da língua nacional – o Português.
Nesse contexto multilíngue e também de diversidade étnica, a par de outras línguas indígenas e do português, o Nheengatu também conhecida como a Língua Geral Amazônica, nunca deixou de ser falada, sendo mesmo hegemônica durante todo o período colonial, apesar das proibições do Diretório Pombalino.
Foi a partir de tais considerações que resolvi pesquisar os usos sociais e políticos do Nheengatu na região do médio rio Negro, mais precisamente, na comunidade indígena do Cartucho, na ilha de Uábada, na Terra Indígena Médio Rio Negro II. O foco da pesquisa orientou-se para a compreensão do papel que o Nheengatu ocupa nas culturas indígenas locais, ou seja, sua representação como instrumento simbólico de invenção cultural e construção da identidade étnica.
A hipótese que orientou a pesquisa é, ao longo dos séculos, de uso de diferentes etnias, o Nheengatu adquiriu um valor operativo e funcional que possibilitou e a interação e reorganização sociocultural e política dos grupos indígenas dessa região e, em alguns casos, também foi adotado como a língua tradicional de grupos indígenas que perderam a sua língua materna, como é o caso, por exemplo, dos Baré.
Os resultados da pesquisa de campo demonstram um ethos pautado na assunção de uma “indianidade” evidenciada na mobilização simbólica de elementos culturais com o fim de reforçar o sentido de pertença a uma comunidade, ainda que composta por pessoas de origens étnicas e matrizes culturais diferentes, como é o caso da comunidade do Cartucho, onde estou pesquisando. Falas como “Nós somos o Nheengatu, essa é a nossa gíria” ou ainda “A gente fala Nheengatu para mostrar aos Kariwa (não-índio) que nós somos índios mesmo”, demonstram que o discurso da “posse da língua” está sendo mobilizado com o fim de reforçar a identidade étnico-cultural.
As análises feitas até o momento nos permitem concluir que, no médio rio Negro, o Nheengatu constitui-se num dos elementos mais importantes, mobilizados pelos indígenas locais para construir e interpretar as suas representações de “identidades”, bem como as representações que fazem sobre os outros. Constitui-se ainda, como o veículo promotor de interação sociocultural entre indígenas de origens étnicas distintas, mas que escolheram viver juntos e compartilhar costumes e modos de vida particulares.
Não obstante a existência de línguas concorrentes e até mesmo a resistência por parte de alguns indivíduos em relação ao seu uso, o Nheengatu tem se afirmado como o elemento que propicia o engajamento nas ações sociais afirmativas dentro do próprio grupo, com o fim de preservar e legitimar os sistemas de significação das culturas locais, afirmando uma identidade supra-étnica, significando uma “indianidade” étnica, antes de tudo.
(*) É mestrando de Antropologia e pesquisador do NCPAM/UFAM.
As línguas indígenas brasileiras têm grande importância cultural e científica. Quando falamos da língua de um povo, estamos também falando da sua cultura, história, percurso geográfico e cosmovisão, entre outros aspectos da totalidade social. Portanto, o estudo sobre as línguas indígenas brasileiras possibilita a construção de conhecimento a respeito dos universos culturais desses povos.
No Brasil por volta de 1500 estima-se que entre os povos indígenas se falasse 1300 línguas, hoje, reduzidas aproximadamente a 180 línguas, a maioria ainda falada na Amazônia brasileira. Nesta região, uma das áreas de maior diversidade linguística do Brasil é o médio e alto rio Negro, no estado do Amazonas, em razão do enclave de grupos étnicos distintos cooptados pelos colonizadores para servir de mão de obra semi-escrava no período da busca pelas especiarias e, posteriormente da extração do Látex. Ainda nesse período, houve a migração nordestina que intensificou a disseminação do uso da língua portuguesa entre os grupos indígenas locais.
A concentração de etnias distintas e de relacionamentos interétnicos, entre outros, são fatores condicionantes de um complexo etnolinguístico de grande densidade entnocultural. A manutenção desse complexo se deve à persistência da exogamia linguística à residência patrilocal. Ou seja, os homens se casam com mulheres que falam uma língua diferente da sua. Entretanto, a língua que identifica a pessoa, a aldeia ou o grupo étnico é, principalmente, a língua do pai. Como consequência, encontram-se falantes que dominam três ou mais línguas indígenas além da língua nacional – o Português.
Nesse contexto multilíngue e também de diversidade étnica, a par de outras línguas indígenas e do português, o Nheengatu também conhecida como a Língua Geral Amazônica, nunca deixou de ser falada, sendo mesmo hegemônica durante todo o período colonial, apesar das proibições do Diretório Pombalino.
Foi a partir de tais considerações que resolvi pesquisar os usos sociais e políticos do Nheengatu na região do médio rio Negro, mais precisamente, na comunidade indígena do Cartucho, na ilha de Uábada, na Terra Indígena Médio Rio Negro II. O foco da pesquisa orientou-se para a compreensão do papel que o Nheengatu ocupa nas culturas indígenas locais, ou seja, sua representação como instrumento simbólico de invenção cultural e construção da identidade étnica.
A hipótese que orientou a pesquisa é, ao longo dos séculos, de uso de diferentes etnias, o Nheengatu adquiriu um valor operativo e funcional que possibilitou e a interação e reorganização sociocultural e política dos grupos indígenas dessa região e, em alguns casos, também foi adotado como a língua tradicional de grupos indígenas que perderam a sua língua materna, como é o caso, por exemplo, dos Baré.
Os resultados da pesquisa de campo demonstram um ethos pautado na assunção de uma “indianidade” evidenciada na mobilização simbólica de elementos culturais com o fim de reforçar o sentido de pertença a uma comunidade, ainda que composta por pessoas de origens étnicas e matrizes culturais diferentes, como é o caso da comunidade do Cartucho, onde estou pesquisando. Falas como “Nós somos o Nheengatu, essa é a nossa gíria” ou ainda “A gente fala Nheengatu para mostrar aos Kariwa (não-índio) que nós somos índios mesmo”, demonstram que o discurso da “posse da língua” está sendo mobilizado com o fim de reforçar a identidade étnico-cultural.
As análises feitas até o momento nos permitem concluir que, no médio rio Negro, o Nheengatu constitui-se num dos elementos mais importantes, mobilizados pelos indígenas locais para construir e interpretar as suas representações de “identidades”, bem como as representações que fazem sobre os outros. Constitui-se ainda, como o veículo promotor de interação sociocultural entre indígenas de origens étnicas distintas, mas que escolheram viver juntos e compartilhar costumes e modos de vida particulares.
Não obstante a existência de línguas concorrentes e até mesmo a resistência por parte de alguns indivíduos em relação ao seu uso, o Nheengatu tem se afirmado como o elemento que propicia o engajamento nas ações sociais afirmativas dentro do próprio grupo, com o fim de preservar e legitimar os sistemas de significação das culturas locais, afirmando uma identidade supra-étnica, significando uma “indianidade” étnica, antes de tudo.
(*) É mestrando de Antropologia e pesquisador do NCPAM/UFAM.
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