quarta-feira, 15 de abril de 2009

CULTURA SENTIMENTAL DO SÃO RAIMUNDO

O conceito cultura sentimental é relativamente novo, mas tem fundamento na tradição fenomenológica, que muito tem influenciado o saber antropológico no contexto das ciências sociais. Sua definição teórica está intrinsecamente ligada à memória social e suas implicações epistemológicas quanto à compreensão de comunidade. Diferentemente de memória social, que trabalha a narrativa numa perspectiva de reconstituição de experiências pessoais a partir da percepção dos fatos vivenciados pelos atores, a cultura sentimental volta-se para o significado das experiências que orientam as relações sociais dos comunitários e também para os significantes recorrentes a reminiscência dos atores sociais

Khemerson Macedo*

Entre fevereiro e março de 2009, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em parceria com a Supernova Filmes e do professor e antropólogo José Ademir Gomes Ramos, desenvolveu pesquisa etnográfica no bairro manauara de São Raimundo. A pesquisa insere-se no projeto Paisagens culturais do Rio Negro, com o intuito de inventariar determinadas comunidades ribeirinhas das margens do Rio Negro. Neste primeiro momento, o trabalho compreendeu pesquisa de campo com os moradores antigos do lugar, possibilitando interpretar a construção do espaço como valor sentimental e comunal destes comunitários, identificando as famílias tradicionais do lugar, lugares de referência e as relações afetivas e de trabalho ali estabelecidas.

Nesta perspectiva, a pesquisa etnográfica se baseou em conceitos-chaves que, articulados aos dados empíricos coletados possibilitou definir as paisagens culturais do São Raimundo e como estas paisagens influem no cotidiano destes comunitários. Tais conceitos possibilitaram refletir acerca das narrativas coletadas, objetivando definir a relação do bairro como rio e seus tributários.

Para a definição do espaço da pesquisa adotamos a perspectiva de construção social da realidade, de BERGER & LUCKMANN (1973, p. 157): “sendo produtos históricos da atividade humana, todos os universos socialmente construídos modificam-se, e a transformação é realizada pela ação concreta do homem”. A idéia de espaço neste trabalho refere-se às ações do homem em seu ambiente de moradia, justificando a apropriação do lugar a partir da ação direta do comunitário com o espaço culturalmente determinado.

Desta relação, como concebemos sua organização interna?

Ao pensarmos a relação do ribeirinho com seu ambiente, levamos em conta que esta relação ultrapassa a necessidade de subsistência, desenvolvendo uma dimensão simbólica carregada de sentimento e afetividade, manifesto no modo de vida dessas populações, que tem nos rios uma importante referência para a formação de suas práticas culturais. Tais práticas culturais transformam as paisagens naturais disponíveis em paisagens culturais, dando uma dimensão simbólica ao uso comunal da flora e fauna aquática presente nos corpos d’água configurados no imaginário coletivo na forma dos encantados.

Quanto esta relação, concebemos sua organização social do espaço a partir dos
conceitos de labor, trabalho e ação em Hannah Arendt, visto que:

[O labor] assegura não apenas a sobrevivência do individuo, mas a vida da espécie. O trabalho e seu produto (...), emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano. A ação, (...) cria a condição para a lembrança, ou seja, para a história (Arendt, 1981, p. 16).

Labor, trabalho e ação nos permitem pensar a respeito da memória social, enquanto ação humana responsável pela produção e preservação da lembrança a partir de experiências concretas. Neste sentido, recorremos às considerações de Ecléia Bosi sobre o tema:

(...) Lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, "tal como foi", e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (Bosi, 1994, p.55)


A obra de Bosi fundamenta a etnografia em questão ao privilegiar as narrativas dos personagens populares e famílias tradicionais locais. Desta forma as narrativas apresentam-se como reminiscências surgidas a partir da rememoração dos comunitários, justificando, assim, as histórias individuais a partir das experiências passadas, transmitidas pelos seus pares. Convém observar que as lembranças criam nos comunitários processos de identificação, fortalecendo a tradição comunal e expressando uma forte cultura sentimental em relação à vida em comunidade.

O conceito cultura sentimental é relativamente novo, mas tem fundamento na tradição fenomenológica, que muito tem influenciado o saber antropológico no contexto das ciências sociais. Sua definição teórica está intrinsecamente ligada à memória social e suas implicações epistemológicas quanto à compreensão de comunidade.

Diferentemente de memória social, que trabalha a narrativa numa perspectiva de reconstituição de experiências pessoais a partir da percepção dos fatos vivenciados pelos atores, a cultura sentimental volta-se para o significado das experiências que orientam as relações sociais dos comunitários e também para os significantes recorrentes a reminiscência dos atores sociais, “[fundamentando] a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração” (Benjamin, 1996, p. 211).

Ao nos debruçarmos sobre um conceito relativamente novo, temos como desafio a incompreensão imediata sobre a matéria. Contudo, salientemos que o conceito cultura sentimental encontra-se em processo de formulação e discussão no âmbito acadêmico, uma vez que os conceitos articulados aos dados empíricos coletados nos dão uma idéia mais clara sob qual caminho tomar, levando em consideração a perspectiva multidisciplinar a ser adotada sobre a temática em curso. Este artigo, portanto, assume um caráter ensaístico em relação a sua proposta inicial.

* O autor é Coordenador de Pesquisa do NCPAM

Foto: NCPAM

2 comentários:

Anônimo disse...

O antropólogo Khemerson faz uma análise importante sobre a importância da cultura sentimental. Certamente este conceito é bom para se pensar as novas e velhas formas de representação social na urbes...

Breno Rodrigo disse...

Realmente, uma bela análise do antropólogo Khemerson.