sábado, 13 de novembro de 2010

AUTORETRATO DE GILBERTO VELHO

Gilberto Velho, Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional) e Pesquisador do CNPq, com vários títulos publicados no campo da Antropologia das Sociedades Complexas, Teoria da Cultura, Indivíduo e Sociedade é entrevistado por Santuza Cambraia Naves, Sonia Giacomini, Ricardo Ismael, Valter Sinder, Anelise Gondar, Clara Lugão e Maria Isabel Mendes de Almeida.

Santuza Naves: Gostaria de saber por que razão você optou por Ciências Sociais e pela Antropologia.
Gilberto Velho: Escolhi as Ciências Sociais por várias explicações que se complementam. Havia no ambiente familiar a figura do meu pai, que era um militar, mas era várias outras coisas, tinha múltiplos papéis. Acho que ele é um bom exemplo de multiplicidade de papéis. Ele era um intelectual. Não era tão extraordinário no meio militar, que forneceu alguns intelectuais e na geração dele havia vários, como Nelson Werneck Sodré, que é um pouco mais velho, e o próprio Golbery do Couto e Silva. Você pode não gostar das ideias do Golbery, mas era um intelectual. Não era tão extraordinário você encontrar militares intelectuais, mas meu pai era um militar que tinha alguns interesses muito bem delimitados e, ao mesmo tempo, era muito aberto a várias frentes e preocupações, e tinha interesse nas Ciências Sociais e nas áreas da psicologia e da psicanálise. A biblioteca dele, que existe até hoje na casa de minha mãe, é uma biblioteca que tem uma Brasiliana preciosa. Tem algumas das primeiras edições, por exemplo, da obra de Gilberto Freyre, mais uma série de outros autores e muita coisa de Ciência Social internacional mesmo. Tem autores dos mais variados. Um autor que ele gostava (eu até me lembro de conversar anos depois com o Francisco Iglesias e ele me dizer que era um de seus autores prediletos) é o Arnold Toynbee. Havia obras de Antropologia e muita coisa de História, como os Fundadores do Império, de Otávio Tarquínio de Sousa, o Caio Prado Jr., Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré. É uma biblioteca extensa, variada e com forte ênfase na área psico-social, além de literatura variada. O meu pai, dentro do Exército, teve um período em que foi para os Estados Unidos. Fomos toda a família, porque ele foi professor na Academia Militar de West Point, que é a principal academia militar americana. Em um convênio entre o Brasil e os Estados Unidos de troca de professores, ele era professor de Português, no Departamento de Espanhol e Português, e de Cultura Brasileira. Rememorando, ele levava discos de Villa-Lobos, fotografias e filmes, além de textos. Na época não tinha muitos recursos. Falava sobre assuntos variados, que transformavam a disciplina que ele dava para os cadetes em uma disciplina de Cultura Brasileira. Havia esse interesse antropo-histórico da parte dele. Agora, como acontece comumente, nós entramos, eu e meu irmão, em um relativo confronto com meu pai. Meu pai era uma pessoa mais ligada a uma visão conservadora da política, embora ele fosse muito aberto, muito interessado em assuntos variados. Ele traduziu mais de cem livros sobre múltiplos temas. Ele traduziu Melanie Klein e muito Erich Fromm. De Ciências Sociais ele traduziu livros variados, desde o Rostow (W. W. Rostow), o Etapas do Desenvolvimento Econômico, até autores de Sociologia propriamente. O primeiro livro publicado pela editora Zahar era um manual de Sociologia do Rumney e Mayer. Isso já era a segunda metade dos anos 50. Ele era uma pessoa politicamente de orientação mais conservadora. Eu acho que é meio pobre dizer “conservadora”, porque esses rótulos são sempre muito simplificadores, como a gente cada vez mais aprende, não é? Politicamente, ele era mais próximo da UDN em contraposição ao PTB, digamos assim. Ele votou no Eduardo Gomes, no Juarez Távora e tinha certa simpatia pelo Carlos Lacerda, mas acho que mudou também. Ele vivia em uma época de tensão política, que nós vivíamos, e que se encontrava numa posição, se não oposta, muito diferente da dos filhos, que estavam justamente numa fase de afirmação de posições de esquerda, reformistas, no mínimo, e algumas vezes até revolucionários.

Ricardo Ismael: Gilberto, quando é que você começou a derivar para essa posição mais reformista, de uma reforma até mais radical? Porque nesse momento essas reformas estavam muito ligadas a mudanças estruturais no país. Quando é que você passoua ter esse distanciamento em relação ao seu pai?
G. Velho: Eu ia entrar nisso. Além da importância do meu pai, no interesse pela área de Ciências Sociais, outra variável fundamental para mim foi estudar no Colégio de Aplicação da antiga Nacional de Filosofia (até hoje dizem que é um bom colégio, mas, na época, era realmente um colégio extraordinário). Foi meu pai que escolheu o colégio, porque na minha família, fazia parte do projeto que todos fizessem, ou tentassem fazer, colégio militar, como meu irmão fez. Eu estava destinado ao Colégio Militar. Aí eu acho que eu mereci a proteção do Olimpo e no ano em que eu ia fazer exame para o Colégio Militar, o ministro da Guerra, general Lott ,suspendeu o exame. Ele achava que o colégio estava com gente demais. Aí meu pai, com suas relações nesse curso de Técnica de Ensino do Exército, em que ele foi aluno e depois professor, conheceu o professor Luiz Alves de Matos, que era justamente o diretor do Colégio de Aplicação, que poucos conheciam. O colégio funcionava em um prédio na Praça São Salvador. Eram sete turmas: quatro de Ginásio e três de Científico. Só depois surgiu o Clássico.Tinha cento e poucos alunos, e o Luiz Alves de Matos conversou com meu pai. Aí fiz exame para o Colégio de Aplicação. Eu fiz primeiro o exame do Pedro II, porque para passar para o Colégio de Aplicação você tinha que ter passado para outro colégio antes. E eu passei. Fiz exame para o Mallet Soares e para o Pedro II. Passei nos dois e fui para o Colégio de Aplicação. E o Colégio de Aplicação também era complexo, havia vários tipos de orientação. Inclusive havia um grupo bem conservador, sobretudo do pessoal ligado à Matemática. Havia uma senhora, uma espécie de catedrática local, que era ligada a essas organizações mais extremadas, mas havia um setor de professores de História e Geografia, em que predominavam pessoas de esquerda, reformistas basicamente. A professora de Canto Orfeônico era ligada ao “partidão”. Os outros não eram membros do partido, mas eram simpáticos. Houve uma forte influência do marxismo, mas não era uma doutrinação, não era manual marxista, mas era uma orientação, uma preocupação com certos termos ligados à transformação e à mudança.

R. Ismael: Isso foi nos anos 50?
G. Velho: Eu entrei no Colégio de Aplicação em 1957 e fui até 64.

Sonia Giacomini: Já tinha jornalzinho?
G. Velho: Tinha A Forja. Fui um dos editores da Forja. Tivemos números do jornal censurados. No colégio havia uma tensão muito grande entre esse grupo mais progressista, mais à esquerda, mas que não eram necessariamente todos marxistas, com o pessoal mais conservador. Além dos professores de História e Geografia, os professores de Francês, Inglês, Literatura, apresentavam um perfil mais progressista. Em geral, havia uma valorização muito grande da cultura, de uma cultura de leitura. Isso foi sempre muito estimulante e juntou-se aos estímulos que eu tinha em casa, por mais que houvesse diferença de opinião entre eu e meu pai com eventuais antagonismos. É interessante como eu resisti muito, por exemplo, a ler o Gilberto Freyre, porque ele não era levado muito a sério no ambiente de esquerda que eu frequentava. Havia outras prioridades. Não era ridicularizado e nem desvalorizado como em outros ambientes pode ter acontecido. Custei, mas finalmente, quando eu estava no final do curso Clássico, me aproximei do Casa Grande & Senzala e gostei muito. Eu tinha restrições, me causou um susto, tinha surpresas e algumas coisas me incomodaram, mas obviamente era um livro importante. A essa altura eu já estava frequentando o Caio Prado e Nelson Werneck Sodré. Eu me lembro que um livro que foi muito importante ainda, no Clássico, portanto eu estava com uns 17 anos, foi o de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. Então foi isso. O colégio foi fundamental nesse processo de politização e eu ainda pertenço a uma geração, ou um segmento geracional, pelo menos, preocupado com a sociedade brasileira como um todo, preocupado com a questão social e com as dimensões políticas. Era uma época de muita discussão, de muito debate. Nós pegamos, no tempo do colégio, o governo Juscelino, depois pegamos a renúncia do Jânio Quadros e a crise que se seguiu. Foram momentos de intensa politização e mobilização. Eu me lembro que nós nos mobilizamos fortemente na época da renúncia do Jânio. Houve greve e manifestações a favor da posse do Jango. Meu pai, por exemplo, estava em um movimento de resistência ao Jango. O meu pai, junto com um tio meu, irmão de minha mãe (a família da minha mãe sozinha já daria alguns livros), ocuparam cargos no governo Jânio. Ele ficou contra a posse do Jango, com receio do sindicalismo e das suas ameaças. Havia uma identificação muito grande com o peronismo. Eu me lembro de um livro, que depois eu vim a conhecer o autor, o Mário Martins, pai do Nilo, do Franklin e da Ana Maria, era Perón, um confronto entre a Argentina e o Brasil. O livro me impressionou muito. Um livro jornalístico, que o Mário Martins escreveu, que mostrava o risco, a ameaça do peronismo. Havia, por parte dessas pessoas mais conservadoras, uma estigmatização do populismo janguista, digamos assim, porque era considerado um populismo perigoso, ameaçador. Sobretudo, no caso dos militares, uma grande preocupação, um grande temor, em relação à quebra da hierarquia. Então, o meu pai era militar e a essas alturas já tinha passado para a reserva, porque considerava que as possibilidades dele no Exército estavam sendo obstruídas ainda no período do Lott como ministro da Guerra. Ele não se dava bem com o Lott, mas era uma pessoa de formação militar. Esse grupo sentiu-se muito ameaçado com a mobilização das patentes mais baixas, segundo o ponto de vista deles, estimulado pelo governo, aí já do João Goulart. Tínhamos uma preocupação social e política muito grande. No Colégio de Aplicação havia uma espécie de grêmio e participávamos, por exemplo, de reuniões da Associação Metropolitana de Estudantes Secundaristas, da AMES, ligada à UNE de alguma maneira. Eu me lembro que em uma reunião dessas, eu estava no primeiro Clássico, portanto em 62, na época da crise dos mísseis lá em Cuba. Foi um momento em que, talvez tenha sido a minha fase mais, com aspas ou sem aspas, à esquerda. O Anglo-Americano, o Pedro II e o Colégio de Aplicação ficaram isolados contra a intervenção americana e defendendo a posição do Brasil apoiar Cuba etc.. Dezenas de outras delegações de colégios apoiavam a posição norte-americana. Bom, então o Colégio de Aplicação e a formação em casa, com todas as contradições, todos os paradoxos, faziam com que eu tivesse um interesse pelas Ciências Sociais. Eu gostava muito de História e Geografia. Mas História, sobretudo, foi a base, foi central, o ponto de partida para que eu me interessasse mais por outras áreas de Ciências Sociais. Eu me lembro que eu tive um professor, não sei se vocês conheceram, no curso Clássico, o José Luiz Werneck da Silva. Eu fui aluno de alguns dos professores mais notáveis da época de História, como Hugo Weiss. Em Geografia, tivemos o Maurício Silva Santos, Clóvis Dottori, que deu aula muito tempo aqui na PUC. Sobretudo no Clássico, em que havia uma disciplina dupla, em que o José Luiz Werneck da Silva dava mais a parte histórica e o Maurício Silva Santos dava mais a parte de geografia. Eu me lembro que nós fizemos um trabalho sobre os Estados Unidos, que tinha boa qualidade sob qualquer critério. Eu estou dando como um exemplo. Nós estudamos seriamente a formação americana. A bibliografia era boa e eu fiz um trabalho que está guardado até hoje num armário, com os comentários do Werneck. Eu me considerava, nesta fase, marxista. No fim do curso Clássico, mais ou menos, eu tinha uma identidade com o marxismo, aquilo que se julgava e se colocava como sendo um marxismo não sectário. Nunca ingressei em nenhum partido. Tinha um interesse e uma ligação forte, sobretudo com amigos e até parentes, com o “partidão”. Eu me lembro que houve uma época em que eu tinha um interesse muito grande pelo PC do B, mas foi por um motivo, devo confessar, que tinha a ver com uma moça do PC do B, que era tão interessante. As motivações são coisas que as pessoas muitas vezes não têm coragem de falar sobre. Tinha uma moça no PC do B que era realmente encantadora. Mas aí, a essas alturas eu conheci Yvonne (Maggie) e mudou um pouco, porque os encantos da Yvonne prevaleceram. Aí já entrando na Faculdade Nacional de Filosofia.

R. Ismael: Mas só pra esclarecer esse ponto. O “partidão”, nessa época, estava na clandestinidade. Depois foi para a legalidade. Você acha que se já tivesse a legalidade você teria se incorporado ao PCB?
G. Velho: Eu não sei. Acho que tenho certas características de personalidade de não ser pessoa de partido nem de clube. Muito embora eu seja torcedor do Botafogo, eu nunca fui sócio do Botafogo. O espírito é mais ou menos esse, para o bem ou para o mal. Fui companheiro de viagem, durante algum tempo talvez, de algumas organizações de esquerda, mas eu não tinha interesse realmente em vida partidária. Não me atraía, nunca me atraiu e eu sempre valorizei muito a minha liberdade pessoal e a ideia de independência. Se isso é bom ou ruim é outro problema, mas sempre valorizei muito minha independência. Então, em uma época em que muita gente que eu respeitava muito, que eu gostava, ingressou em partidos e participava de organizações, eu não. O que não quer dizer que eu não tenha militado politicamente desde o Colégio de Aplicação através do grêmio, na Faculdade Nacional de Filosofia através de vários movimentos, mas nunca como membro de partido. Creio que um marco na minha vida (eu não me lembro se eu falei isso em outras entrevistas, mas acho que sim), foi a formatura do Colégio de Aplicação, em 64. Eu fui o orador. Foi em dezembro, depois do golpe, e eu fiz um discurso de denúncia da ditadura. Foi no auditório do Salão Nobre da antiga Nacional de Filosofia, ali na Antônio Carlos, onde hoje é o Consulado da Itália. Foi um discurso muito forte de denúncia da ditadura.

R. Ismael: Seu pai estava presente?
G.Velho: Estava presente e apoiou meu discurso. O meu pai me apoiou, empolgado com o filho, dando a maior força para o filho. Então o discurso foi no auditório e alguns alunos da Nacional de Filosofia assistiram. Eu fui ovacionado. Fui quase carregado em triunfo, porque foi de fato em dezembro de 64. Era bem distante do que ia ocorrer depois do AI-5, em 68, mas já havia uma situação de tensão. Já tinha muita gente presa, demissões, e o discurso era em nome da liberdade e da justiça social. Acontece que eu, claro, paguei o preço de saída. Havia autoridades presentes, inclusive o diretor da Nacional de Filosofia, para onde eu pretendia fazer o vestibular. Fiz e entrei. E o diretor da Nacional de Filosofia passou a me olhar sempre como uma mistura de Trotsky com não sei quem mais. Ele passou a me atribuir todas as coisas mais perigosas e subversivas do ponto de vista dele, que aconteciam na área. “Aquele rapaz é um perigo”, depois eu soube que ele dizia. E de fato não era bem o meu perfil, porque eu não era esse tipo de pessoa que vira o dia e a noite em reuniões, se organizando. Eu não era assim, um agitador. Eu queria estudar. Eu tinha essa motivação e sempre tive, particularmente no Colégio de Aplicação. Isso era um valor na minha família, não só por parte do meu pai, mas também do meu avô materno. A família da minha mãe é uma família militar tradicional. Os pais de meu pai eram imigrantes europeus.

Santuza N.: Imigrantes de onde, Gilberto?
G. Velho: Meu avô paterno era português do norte de Portugal e minha avó paterna era judia ucraniana, de Odessa. Meu pai era filho de uma judia ucraniana com um português. Depois eles se separaram nos anos 20, o que é muito interessante, e o único filho era papai. Ele não teve irmãos de nenhum lado. Bom, mas a família da minha mãe era uma família cujo pai era maranhense, fez carreira militar, casou-se com uma moça do Rio Grande do Sul, que era de uma família de militares dentro daquela tradição gaúcha: “Marcamos a fronteira com a ponta da lança”. O meu avô, que fez a carreira militar, não era de uma família de militares, embora os irmãos o tenham acompanhado na carreira, veio a ser chefe do Estado Maior do Exército e terminou como marechal. Na época da Segunda Guerra Mundial, quando Góis Monteiro, que era simpático ao Eixo, saiu do Estado Maior do Exército, quem entrou para facilitar uma aproximação com os Aliados foi meu avô. Agora, era uma família muito curiosa, porque contam (eu não sei, porque não estava presente, não tinha nascido ainda) que quando Paris cai com o avanço alemão, quando os alemães tomam Paris, os irmãos de minha mãe se dividiram. Eram sete irmãos homens e parece que cinco comemoraram a queda de Paris com champanhe e dois saíram. Na realidade eram quatro e dois. O outro ainda não tinha surgido. Enfim, mais uma vez lidando com o quê? Com contradições, com complexidades. Se eu tinha um tio que era líder da direita mais pesada do Exército Brasileiro, eu tinha um outro tio que era o único “paisano” da família, civil, que era tipicamente e agressivamente de esquerda, e um outro tio que era da Aeronáutica que teve que se afastar, teve que passar para a reserva, porque era ligado a um setor mais, digamos, progressista ou de esquerda, não sei como chamar, da Força Aérea. Outros tios tinham posições mais intermediárias. Então, eu tive que aprender no decorrer da minha vida, em todos os planos, às vezes com alguma dificuldade, a lidar com matizes e nuances. Na Nacional de Filosofia, encontramos uma situação muito difícil, porque alguns dos melhores e mais importantes professores tinham saído, porque estavam sendo pressionados. As cassações foram depois, a maior parte delas. Eles saíram ou porque se retiraram ou porque não queriam trabalhar naquelas condições instaladas no país, como o Costa Pinto. Costa Pinto não foi cassado. Ele saiu e foi para o Canadá. O Darcy (Ribeiro), esse já não dava aula há muito tempo. O Victor Nunes Leal também já tinha se afastado há muito tempo e era ministro do Supremo.Depois veio a ser cassado no AI-5. Então havia um punhado de professores, alguns sérios, outros muito fracos. Alguns não só fracos como (vou usar uma palavra que eu tenho usado pouco ultimamente,
mas que cabe e tem a ver com a época) agressivamente reacionários, possuídos de um anticomunismo furioso. Tinha uma senhora que era professora de Geografia, é claro que houve muita injustiça, muitos boatos que talvez não tenham sido verdadeiros, mas essa senhora, é praticamente certo, que foi uma das pessoas que denunciaram o Josué de Castro. Essa senhora tinha aquela coisa que infelizmente acontece às vezes na universidade, não só no Brasil, como na história do mundo, que, movidos por pequenos interesses, micro, departamentais, universitários, se aproveitam dessas situações para fazer operações políticas do mais baixo nível. Então essa senhora era a dona da cadeira de Geografia. Outro exemplo era de uma pessoa de Sociologia. Era uma coisa extraordinária, porque ela realmente se orgulhava muito de dizer que o marido dela era polonês, conde e anticomunista. E ela falava “Eu e ele, de lugares tão distantes nos encontramos para lutar contra o comunismo”. Isso em um curso de Ciências Sociais da Nacional de Filosofia. Então foi se criando um clima de grande tensão, mas é uma coisa difícil de reconstituir, principalmente para os mais jovens, porque era um ambiente de uma tensão extraordinária. Você não sabia quem estava sentado do seu lado. Podia ser um policial, um dedo-duro. Você não sabia. Outro dia teve uma homenagem ao Jether Ramalho, que foi muito bonita. E o Jether era um senhor mais velho, bem mais velho, ele deve estar agora com 87 ou 88, que era dentista, do subúrbio, bem estabelecido, protestante e resolveu fazer curso de Ciências Sociais. Era aluno da nossa turma. Aquele senhor de terno e gravata levantava as maiores suspeitas, coitado. Terno e gravata era mau indício. Ele fala sobre isso no livro dele, esse que saiu agora recentemente. Outras pessoas também despertavam suspeita, mas você não sabia muito bem quem era. Então eu conhecia três pessoas da turma. Uma era a Yvonne, que eu conheci indiretamente através de um dos irmãos dela. Já tinha tido contato e conheci a família Costa Ribeiro. Outros que eu conhecia a família também, tínhamos vários amigos comuns, eram Patrícia Lins e Silva e Eurico Figueiredo, que era nosso velho amigo, principalmente amigo do meu irmão, mas que era meu amigo também. Éramos amigos de turma. Claro que depois nos aproximamos de outras pessoas. Isso é fascinante em termos de antropologia. Você vai montando uma rede. Como é que você monta essas redes? Quais são as relações? Quais são os sinais que fazem com que você possa confiar em alguém ou se aproximar? Havia realmente um clima de suspeição. Essa senhora de Sociologia serviu para ter essa função, porque ela polarizou de tal forma a relação com a turma, que esta se organizou em movimento contra ela. Eu fui um dos deflagradores do movimento, apesar da minha pouca vontade de aumentar meu antagonismo com a direção da faculdade, porque ela resolveu patrocinar um seminário sobre as relações entre a Filosofia e as Ciências Sociais. Tinha um rapaz português, que quis fazer um seminário sobre Existencialismo e Ciências Sociais, um tema magnífico, e havia um grande silêncio. E eu disse assim: “Eu tenho a impressão que é um pouco estranho fazer um seminário sobre Filosofia e Ciências Sociais e não falar em marxismo”. Pronto, foi confirmada a ideia de que ali estava aquele perigoso comunista. E ela começou a falar “Não, naturalmente o senhor vai ter o direito de defender o seu ponto de vista filosófico marxista”. Eu disse: “Senhora, não é isso que eu estou dizendo”. Houve uma série de outros choques e conflitos e entramos em greve em 65. Foi um “Deus nos acuda”, porque criava um clima de grande potencial de conflito. É claro que fomos estimulados pelos alunos mais velhos, das turmas mais velhas, porque era um fato político fazer uma greve em 65, na Nacional de Filosofia. E tivemos o apoio de alguns professores, não para a greve, mas para nos proteger dos que queriam o nosso sangue. E aí tem uma figura central, que é a professora Marina São Paulo de Vasconcellos, que era a catedrática interina, substituta do Arthur Ramos. Ela era uma pessoa de perfil extremamente conservador, em certos aspectos, certamente correspondia a essa figura mais udenista, mas não era tão simples assim. Era uma pessoa que tinha uma leitura, não era uma grande pesquisadora, não deixou uma obra importante, fez um trabalho sob orientação do Arthur Ramos sobre Canudos, que não teve repercussão, não foi publicado, mas era uma pessoa séria e resolveu impedir que nós fôssemos massacrados,porque íamos ser reprovados, e fomos, mas ela procurou salvar a turma. E a salvação daturma se deu por meio de uma figura que está viva até hoje, que era livre-docente de Sociologia na Nacional de Filosofia e que era o catedrático de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito, mas era livre-docente de Sociologia – Evaristo de Moraes Filho. A Marina o procurou, nós o procuramos, e ele aceitou. Ele assumiu nossas turmas e, com isso, salvou-nos da guerra com Vanda Torok, que era o nome dessa senhora, que foi obrigada a se afastar. Mas as pessoas que foram envolvidas nisso pagaram um preço alto no AI-5, porque, enquanto isso, atuavam na Nacional de Filosofia não só esse antigo diretor, que era o Faria Góes, como Eremildo Viana, que era uma figura sinistra, que denunciou quase todo mundo, figura poderosíssima, que virou personagem do Elio Gaspari, ex-aluno que antes de 64 já tinha sido expulso, antes do golpe, pela ação do Eremildo. Essas pessoas como Evaristo, Marina etc., e outros nomes que eu poderia mencionar, como a Eulália Lobo e Maria Yedda Linhares, foram cassados pelo AI-5. Não só foram cassados como vieram a ser presos na famosa visita do Rockefeller ao Brasil. Bom, mas para não desviar muito do assunto, a cadeira de Antropologia, sob a direção da Marina, era muito bem organizada em contraste com as outras, que eram um caos, com Vanda Torok em Sociologia. Em Ciência Política, o Victor Nunes Leal tinha se afastado para ser Chefe da Casa Civil do Juscelino e depois ministro do Supremo. Seu substituto era um professor não muito carismático, não muito importante, mas tinha uma assistente que dava aula para nós. Essa assistente estudava Antropologia, sendo professora de Ciência Política. Era a Maria Stella Farias de Amorim. Então, com a Stella dando aula de Ciência Política e com a cadeira de Antropologia sendo uma coisa mais ou menos organizada, nós fomos nos sustentando e fazendo nosso curso de Ciências Sociais. O curso de Antropologia, no início, era terrível, aquela Antropologia Biológica, Antropologia Física e mais tradicional, que não era Genética. Tinha o Zezinho, que era um esqueleto. A gente examinava o Zezinho e tinha osteometria, mas já tinha Antropologia Cultural. Outra pessoa importante, que também tinha estudado no Museu Nacional antes do mestrado era Hortênsia. Tanto a Stella quanto a Hortênsia Caminha, que era assistente de Antropologia, tinham feito cursos no Museu Nacional com o Roberto Cardoso de Oliveira. Isso em uma época em que estava começando o curso de especialização. Tinham feito trabalho de campo, pesquisa. Então a Hortênsia, que era subordinada à Marina, e a Stella, que estava mais ou menos solta, porque esse senhor da Ciência Política não atrapalhava, nos deram acesso a algumas questões interessantes de bibliografia. Agora, para mim era muito claro que o curso da Nacional de Filosofia como um todo, que eu estava fazendo, era muito inferior ao curso que eu tinha feito no Colégio de Aplicação. Eu sabia que ia acontecer isso.

Sonia G.: O Colégio de Aplicação já existia há quanto tempo?
G. Velho: Desde 1948. A finalidade do Colégio de Aplicação era o exercício da Licenciatura, formar os alunos mestres da Nacional de Filosofia que iam dar aula. Os licenciandos davam aula sob a orientação dos professores do Colégio. Então era a Nacional de Filosofia, só que os professores da Aplicação eram excelentes, na média. É por isso que era um curso tão privilegiado. O que eu aprendi de História, de Geografia e de Ciências Sociais no Colégio de Aplicação era algo que me provocava uma reação detédio na Nacional de Filosofia, no mínimo, com exceção de um aqui e outro lá. Em Sociologia tivemos uma professora, depois dessa fase heróica de combate à Torok e da intervenção do Evaristo, uma pessoa que foi interessante, também fazia parte das pessoas que contribuíam de um modo mais positivo. Mais tarde ela se tornou até mais conhecida, Moema Toscano, que eu conhecia por relações pessoais. Ela era amiga de amigas minhas. Tinha uma professora de Economia, que depois se tornou mais conhecida também, a Rosélia Perissé, que depois foi professora da Faculdade Nacional de Economia. Enfim, se, na média, apresentava uma queda em relação ao Colégio de Aplicação, encontramos algumas figuras interessantes. E aí eu tive uma oportunidade importante na minha vida, por meio da Stella, que foi minha professora no primeiro ano, de Ciência Política e que trabalhava no antigo Instituto de Ciências Sociais. É preciso explicar isso: tinha o curso de Ciências Sociais na Nacional de Filosofia. Além do curso, que funcionava na Avenida Antônio Carlos, havia um instituto isolado da Universidade, que era um instituto de pesquisa. O Instituto de Ciências Sociais, nessa época, era dirigido pelo Evaristo de Moraes Filho, na Marquês de Olinda, 64. Era um órgão da Universidade (havia outros institutos isolados), que depois, com a reforma universitária, foi fundido com o curso. Aí criou-se o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Juntaram o antigo Instituto com os cursos de Ciências Sociais, História e Filosofia. E aí fomos todos para a Marquês de Olinda. A Faculdade Nacional de Filosofia foi desmembrada. Bom, mas o que eu queria dizer é que quando eu estava fazendo o curso com a Stella, ela me convidou para, como aluno, trabalhar como auxiliar de pesquisa no Instituto de Ciências Sociais. Foi meu primeiro trabalho. Fui trabalhar, então, no segundo ano do curso em uma pesquisa coordenada, em que ela trabalhava também, pelo Maurício Vinhas de Queiroz. O Maurício era uma figura singularíssima. Era uma pessoa que tinha uns problemas psicológicos complicados, mas era um sujeito extremamente competente, escrevia muito bem, a pesquisa dele era sobre Estrutura e Função dos Grupos Econômicos no Brasil e se desdobrava numa série de outras pesquisas, sobre burocracia, sobre decisões estratégicas para o desenvolvimento, em que o Luciano Martins trabalhava, por exemplo. E o Maurício, entre outras coisas que fez, não fez tanto quanto poderia realmente, tem um livro que é importantíssimo, que é pouco lido e pouco conhecido, Messianismo e Conflito Social, que é sobre o Contestado. É famoso, mas infelizmente, é pouco lido. Saíram duas edições do livro, magistralmente bem escrito. O Maurício era jornalista, tinha a virtude da clareza e valorizava muito isso. Acho que uma das coisas que ele passou muito para mim foi la clarté. Ele falava dos professores franceses com que ele tinha estudado. E eu comecei a trabalhar em Ciências Sociais e lidava com elites e setores superiores de camadas médias nessas pesquisas. Meu interesse por camadas médias e camadas superiores foi sendo estimulado, porque aquilo também era um objeto interessante. E Wright Mills. Evidentemente, a leitura de Wright Mills foi importantíssima, e outros autores, como Pareto, Mauss, Weber, além do que acontecia na Faculdade de Filosofia. Paralelamente, eu não posso deixar de registrar, porque isso é muito importante, o meu irmão tinha feito Sociologia e Política. Quando me formei no Colégio de Aplicação, ele estava se formando na PUC, em 64. E havia um grupo extremamente interessante com quem eu tinha contato permanente e que foi muito estimulante, que incluía o Moacir Palmeira, meu colega hoje; o Sérgio Lemos, que morreu há vários anos, que era uma figura central, era mais velho, de uma cultura e de uma erudição extraordinárias; oLuiz Antonio Machado da Silva; e outros, como a Rosa Ribeiro da Silva, enfim, outras pessoas que nós podemos citar desse grupo, que se reunia em grupos de estudos nas casas das pessoas. Isso já começou quando eu estava no Colégio de Aplicação, em 64, e prosseguiu durante algum tempo enquanto eu estava na faculdade. Assim, citei a Nacional de Filosofia, o Instituto de Ciências Sociais e esse grupo de estudos, que tinham orientações e perspectivas variadas. Bom, então esse interesse pelos setores médios fortaleceu-se quando a Stella passou a dirigir uma pesquisa sobre burocracia. Fui trabalhar na pesquisa e lidei com material sobre burocracia e burocratas. Uma das partes que eu mais trabalhei foi burocracia militar, por razões óbvias, pelas minhas histórias, relações e interesses. Tem um trabalho que sumiu, que se perdeu no mundo, que eu fiz algum tempo depois no Texas, sobre a Vila Militar. Não acho esse trabalho. Enfim, só para dizer que esse interesse por tipos diferentes de estamentos, grupos de status, estratos sociais e camadas médias de diferentes tipos foi se avolumando. E tem um fenômeno que parece uma invenção ou fabricação de mito, mas em 64, nos dias do golpe, eu estava na UNE. A situação estava mais ou menos deflagrada e era curiosíssima, porque eu e meu irmão chegávamos em casa e meu pai dizia “Vocês vão perder. Cuidado!”. E ele ia para o lado dele, a favor do movimento contra o governo Jango, e nós para o nosso lado, da resistência em defesa do governo Jango. Então nós tínhamos até algumas informações e tentávamos transmitir “O Kruel, comandante do II Exército, está aderindo ao golpe”. “Não, não é verdade. Não pode ser”. O próprio Nelson Werneck Sodré dizia na UNE “O Exército, as Forças Armadas, vão se aliar às classes trabalhadoras, não vão ser cúmplices disso”. Não era verdade. A questão da hierarquia foi fundamental para que Exército, Marinha e Aeronáutica se posicionassem contra o governo. Mas eu estava na UNE e fomos formando um pelotão e nos deslocamos para a Cinelândia, e aí vimos que a coisa realmente estava muito grave, que havia o que não chegava a ser uma multidão impressionante, mas uma quantidade razoável de pessoas em frente ao Clube Militar, na Cinelândia. Gritando “Abaixo o golpe”, “Vivas ao Jango”, saíram de lá (e isso eu nunca vi escrito em nenhum lugar), três ou quatro pessoas em traje civil, possivelmente oficiais, pelo tipo e pela idade, que puxaram as suas armas de fogo e atiraram em nossa direção e morreram três ou quatro pessoas na hora. Eu estava do lado de um sujeito que tinha um buraco na testa, um tiro. Aí, não foi uma retirada gloriosa, debandamos. Houve a notícia “Estão chegando os tanques da Vila Militar que vêm nos socorrer contra a tropa do Lacerda”, que era o governador e tornou-se um dos líderes, um dos principais articuladores do movimento contra o Jango, uma das principais lideranças conservadoras, e tinha na mão a tropa da Polícia Militar. Ainda se acreditava que o Exército fosse defender o Jango. Então houve uma conversa de que estavam chegando os tanques. Eles não falavam com precisão, não é tanque, é carro de combate, mas para o senso comum é tanque. Então os tanques iam expulsá-los, o Exército ia nos defender. E aí então tem essa cena einsensteiniana. Os tanques começam a chegar pela Avenida Rio Branco. Alguns carros de combate giram as armas, canhões e metralhadoras em direção à multidão. Naquele momento ficou absolutamente claro que eles não estavam ali para nos socorrer, mas, pelo contrário, estavam ali para proteger o Clube Militar e para apoiar o golpe. Debandamos. O mito é o seguinte. Meus pais moravam em Copacabana e eu voltei a pé, porque não tinha jeito, teve um momento em que até pegamos uma carona com alguém, e quando eu entro em Copacabana, encontro uma grande festa comemorando a queda do governo João Goulart. As pessoas cantando, comemorando, dando vivas. Evidentemente, havia pessoas em Copacabana que estavam trancadas em casa, com medo ou derrotadas, mas a comemoração, a grande festa, de um tipo de classe média, foi, para mim, uma das principais motivações para que eu pensasse que temos que entender quais são as motivações dessas pessoas.

Sonia G.: Tipo TFP [Tradição, Família e Propriedade], você diz?
G.Velho: Não só TFP. Era muito mais amplo. Era todo mundo que tinha medo do socialismo, de reforma agrária, de sindicalismo. Era um universo amplo, e claro que havia algumas pessoas ou grupos de classe média que não estavam nisso, mas era muito impressionante a adesão.

Santuza N.: Em Minas foi muito forte. Eu estava lá. Houve a Marcha com Deus e a Família pela Liberdade.
G. Velho: Essas marchas todas precederam o golpe. O movimento não foi militar simplesmente. A história do mito é essa. Isso foi uma das principais motivações que eu tive, portanto foi uma motivação que tem uma dimensão política também, de tentar entender que pessoas são essas, qual é a visão de mundo que elas têm, o que é que elas querem, quais são seus projetos? Temos que conhecer, porque não conhecemos essas pessoas. Em uma época em que as pessoas se preocupavam, quase que exclusivamente, durante um tempo que perdurou, em estudar classe trabalhadora e campesinato, muito pouca atenção era dada às camadas médias.

R. Ismael: Eu queria tocar em um ponto que eu acho importante, dentro da pergunta que a Santuza fez anteriormente, que era sobre a sua opção pela Antropologia. Eu queria que você falasse mais da sua experiência na USP e da sua proximidade com a Escola de Chicago.
G. Velho: Você está queimando muitas etapas. Antes disso eu fiz Museu Nacional, o mestrado.

Sonia G.: Aliás, foram dois anos só. Eu fiquei admirada.
G. Velho: Foi um ano e meio. Eu entrei em meados de 69, foi um ano e meio do mestrado no PPGAS [Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social] do Departamento de Antropologia do Museu Nacional. Entrei na terceira turma. A minha foi a terceira dissertação de mestrado do PPGAS. A do meu irmão foi a primeira, a segunda foi do Paulo Marques Amorim, mas eles eram da primeira turma e eu era posterior, mais jovem, e defendi em 70. Era o início do PPGAS, onde tivemos o privilégio de estudar num programa pioneiro e de altíssimo nível, comparável aos melhores do mundo. Eu fui aluno de Castro Faria, Roberto Cardoso de Oliveira, Anthony Leeds, Richard Adams, Shelton Davis, Jorge Graciarena, Francisca Keller e Neuma Aguiar. Eram áreas diversificadas, que visavam uma formação ampla com o objetivo de preparar profissionais capazes, por sua vez, de formar novas gerações. Essa passagem pelo Museu, juntando com a minha experiência do Instituto de Ciências Sociais, com o Maurício Vinhas de Queiroz, o Luciano Martins, com Stella, com esse grupo de estudos, eu tinha estudado muito mais e aberto muito mais possibilidades do que o modesto curso, precário até, da Nacional de Filosofia, tinha a me oferecer. Terminado o mestrado no Museu Nacional, fui para os Estados Unidos, para a Universidade do Texas, em Austin. Na época, estava-se planejando o doutorado no Museu Nacional e isso seria uma espécie de antecipação, de bolsa sanduíche, que não existia na época. Há razões para eu ter ido para a Universidade do Texas, havia relações fortes com o Departamento de Antropologia. O Anthony Leeds e o Richard Adams, ambos da Universidade do Texas, tinham dado aula para nós aqui no Rio, no Programa de Pós-Graduação. Então o que aconteceu com esse interesse por camadas médias, a experiência no Instituto e o interesse por Antropologia me levaram a querer compreender os setores médios de uma outra maneira que não fosse só aplicação de questionários edados estatísticos. Não que eu fosse contra essas coisas, mas eu achava que tinha que fazer alguma coisa parecida com o que eu estava lendo em Antropologia já na graduação, mas, sobretudo, na pós-graduação. Lendo Malinowski, lendo Evans-Pritchard, lendo Leach, modestamente, o que eu queria era entender a cultura, a visão de mundo de um setor da sociedade brasileira. Então eu tinha o gancho de Copacabana. Eu tinha essa questão. O que é isto? Eu tinha essa motivação do que eu tinha visto e vivido e sentido, e a minha vivência toda ali naquele bairro. Casei-me no quarto ano da faculdade. Tínhamos bolsa de iniciação científica, que sempre atrasava, mas os meus pais (privilégios, não é?) me deram de presente um pequeno apartamento na Rua Bolívar, um conjugado em um prédio grande daqueles com muitos apartamentos. Foi meu campo inicial. O meu campo foi incrível, porque ficava a duas quadras de onde eu tinha morado durante anos, em um apartamento de outro tipo, de um setor social diferente, eu fui parar nesse prédio de conjugados e foi irresistível. Foi na hora. “É aqui que eu vou fazer minha pesquisa, sabe! Se eu não fizer, isso é um crime... Eu tenho uma oportunidade extraordinária!” e assim foi. Aí deu origem à minha dissertação de mestrado “A Utopia Urbana”. Então, quando eu fui para o Texas, eu já tinha sido aluno aqui (é importante registrar isso) do Anthony Leeds, que me deu um espaço. Ele foi a primeira pessoa a ministrar a cadeira de Antropologia Urbana. Depois fui eu. E ele estava interessado em habitação, favela, cortiço. Eu disse “Eu tenho um outro caso. Tenho prédios de conjugados. Aí eu fiz um trabalho sobre o Barata Ribeiro, 200, que é o famoso prédio que hoje em dia até virou 194 para descaracterizar. Deu origem a uma peça, Um Edifício chamado 2001. O Leeds, que era professor de Antropologia Urbana e estava muito interessado na questão da habitação, começava pelo (Friedrich) Engels e depois vinha uma série de outros autores preocupados com a questão da habitação e, portanto, me deu força. Mas o Leeds voltou para os Estados Unidos. Então, na hora de encaminhar a defesa da dissertação, eu disse “Quem é que vai me orientar?”. Era um problema, porque não tinha ninguém mais que fosse interessado nessa área. Os professores ali estudavam campesinato, índio. Curiosamente, tinha um jovem Ph.D americano, recém-Ph.D de
Harvard, que tinha feito pesquisa na Guatemala, com campesinato, mas estava morando em Copacabana, e quando soube o que eu estava fazendo ficou animadíssimo. Eu fui falar com o Roberto Cardoso: “Roberto, por que é que o Shelton Davis (morreu há pouco, inclusive) não pode ser meu orientador?”. Shelton Davis, conhecido como Sandy, foi um interlocutor precioso.

Sonia: Ele pôde então te orientar?
G. Velho: Pôde, mas isso porque nós tínhamos flexibilidade. Devo isso muito ao Roberto Cardoso. Os programas de Pós-Graduação eram muito mais flexíveis. Hoje, se por um lado você melhorou muito em termos de recursos, informações, apoio do Governo Federal, em compensação é uma máquina pesada, burocratizada. Mas aí eu fiz a minha dissertação, Sandy foi meu orientador e eu fui para os Estados Unidos, para o Texas, onde voltei a encontrar o Leeds, o Adams e outros. Eu passei a ter contato mais sistemático com a Escola de Chicago, que não era a área com a qual o Tony Leeds estivesse mais ligado, nem o Shelton Davis. Foi no Texas que eu passei a ter mais contato com a Escola de Chicago, sobretudo por meio de um curso, que foi um dos que mais marcou a minha formação, chamado Etnografia dos Hospitais Psiquiátricos e Prisões, ministrado por Ira Buchler.

Santuza N.: E [Erving] Goffman?
G. Velho: Também. Goffman era um autor importante. E descobri, tomei conhecimento, da obra do Howard Becker. Então, a partir daí, com a obra de Becker e Goffman e os professores deles, que me aproximavam da Escola de Chicago. ,

Sonia: No Museu Nacional ninguém lia esses autores?
G. Velho: O Goffman sim, alguma coisa. O [Roberto Da] Matta, que tinha chegado dos Estados Unidos, tinha lido Goffman. Becker ninguém sabia quem era. Então foi o meu caminho para a Escola de Chicago, através do Becker e do Goffman.

Sonia: Simmel [Georg Simmel] também?
G. Velho: Não. Já tinha alguma coisa do Simmel, como A Díade, que o Fernando Henrique [Cardoso] e o Octávio Ianni publicaram na coletânea Homem e Sociedade. E quem tinha interesse em Simmel era o Evaristo de Moraes Filho. Ele organizou a primeira coletânea do Simmel no Brasil. Então eu fui tendo contato com Simmel pela coletânea do Evaristo. Lá no Texas eu passei a ter mais contato tanto com a área mais ecológica, quanto com o interacionismo. A Escola de Chicago são muitas coisas, muitas correntes.

R. Ismael: Eu li os trabalhos da mesa em que participou na ANPOCS, coordenada pela Licia Valladares, sobre a influência da Escola de Chicago nos estudos sobre antropologia urbana no Brasil. Quer dizer, na medida em que a Escola de Chicago passou a acompanhar a formação da cidade onde estava localizada, com a questão urbana em destaque, despertou interesse entre pesquisadores brasileiros que estudavam a evolução de algumas das nossas atuais metrópoles. É a partir da sua incursão no Texas que teve contato com este prestigiado centro de pesquisa?
G. Velho: Antes disso já havia algum contato.

Sonia: O próprio estudo sobre Copacabana já era um.
G. Velho: Aí já vamos abrir um outro capítulo. Tem a ver, por exemplo, com o Jorge Zahar, da editora, que abriu espaço para que um grupo de jovens organizasse uma coleção de textos básicos das Ciências Sociais. Eu era estudante de Ciências Sociais e organizei a coletânea de Sociologia da Arte, que foi um relativo sucesso, com quatro volumes. O meu irmão organizou O Fenômeno Urbano, no qual tinha textos, por exemplo, do (Robert Ezra) Park, do (Louis) Wirth e do (Georg) Simmel. Já tínhamos algum contato. O Texas não foi a primeira vez. Eu fui me aprofundando em uma área da Escola de Chicago. A questão da cidade como fenômeno, isso eu já tinha algum contato. A questão do interacionismo, das trajetórias, a problemática do indivíduo e sociedade, a questão das instituições totais, isso foi principalmente no Texas. Mas com esses contatos eu comecei a estudar mais a Escola de Chicago em geral, em seus aspectos e suas divisões. E não só o Park; fui me aprofundando em boa parte da inspiração da Escola de Chicago, que é o Simmel, e outros autores como George Herbert Mead, que é outro autor importantíssimo, o nosso estimado Herbert Blummer também, que são pessoas preocupadas com cidade, mas com diferentes aspectos dentro do urbano. E um livro que não era tipicamente da Escola de Chicago, mas é fundamental, porque ele defendeu a tese em Chicago, embora tenha escrito o livro independentemente, que é o Sociedade de Esquina, do William Foote Whyte. É um livro-chave, que eu tive o prazer e a felicidade de conseguir publicar no Brasil, agora, recentemente, depois de tantos anos, na coleção que dirijo na Zahar. A aproximação com a Escola de Chicago se dá em múltiplos planos e em múltiplas áreas. Aí, quando eu volto para o Brasil, não sai o doutorado do Museu Nacional; por problemas políticos e administrativos do Museu o Roberto Cardoso não consegue implantar o doutorado. Isso é 72. Eu passei um ano nos Estados Unidos, mas nesse ano eu fiz seis cursos e pesquisa com uma população de origem portuguesa na Nova Inglaterra no verão, por três meses. Era um exercício. Quer dizer, eu fiz os cursos no Texas e fiz a pesquisa na Nova Inglaterra, na área de Boston, com os açorianos, basicamente. Bom, mas aí eu volto e não tem doutorado. O Roberto, então, me encaminha para a concunhada dele, a Ruth Cardoso. Ela dava aula na USP e eu fui seu primeiro orientando de doutorado. Eu estava meio em dúvida sobre a direção em que ia caminhar, estava meio tímido de falar que queria estudar um outro setor de camadas médias. Mas o desvio, claramente, já tinha aparecido em A Utopia Urbana. Com a ida para o Texas, especialmente com esse curso do Ira Buchler, com o contato com a obra do Howard Becker e do Goffman, tinha ficado cada vez mais importante pra mim, mais interessante, mais instigante. O estudo de casos-limite, de acusações, fui juntando com a bibliografia de Antropologia Social Britânica, como os trabalhos da Mary Douglas sobre acusações de feitiçaria. Então propus à Ruth um trabalho com o setor de camadas médias, aí já, digamos, superiores, que tinha como uma de suas características o uso regular de certas drogas. E a Ruth foi uma orientadora que não me cobrou nada. Eu tive muita sorte com meus orientadores. Eu tinha oito cursos no Museu e seis cursos no Texas, quatorze cursos. Já tinha um bom início de currículo. O que a Ruth me pediu foi que, além de entregar o projeto que eu estava escrevendo, que eu fosse, de vez em quando, no curso que ela dava e ela me convidaria para falar sobre o trabalho que eu estava fazendo. Um privilégio. E ela, depois, como primeira dama fez várias declarações a favor da descriminalização da maconha e eu me lembrava dessa fase. Defendi a tese de doutorado.

R. Ismael: Você chegou a morar em São Paulo?
G. Velho: Não. Fui só algumas vezes, por tudo que disse. Não era necessário. Ruth foi uma interlocutora privilegiada, porque mesmo que não fosse um assunto que ela tivesse pesquisado diretamente, ela tinha uma sabedoria e uma sutileza, uma qualidade de pergunta e de percepção realmente extraordinárias. Ela me ajudou muito e abriu portas, porque tinha que ter uma certa autoridade e respeito para que esse tema pudesse transitar como transitou. Tive uma banca muito boa, com o Juarez Brandão Lopes,um dos poucos brasileiros que já tinha passado por Chicago, o jovem Peter Fry, o Mario Bick, que era um professor americano visitante em Campinas na época, e a Eunice Durham. Eu tive esse privilégio de ser arguido por uma banca desse nível.

Sonia G.: Você já era professor do Museu?
G. Velho: Eu já era professor do Museu desde 72. Só que eu não podia, oficialmente, dar cursos sozinho. Então sempre aparecia o meu nome junto com o de outro professor, porque eu ainda não tinha o doutorado. Eu não podia orientar oficialmente, então fui co-orientador de algumas dissertações. No final de 75 eu defendi a tese em São Paulo. Então voltei para os Estados Unidos. A essas alturas já tinha acontecido uma história, que vocês já devem ter ouvido ou lido, de como é que foi o meu contato inicial com o Becker. Quando fui aos Estados Unidos, em 1971, eu conheci a obra do Becker, mas não o conheci pessoalmente. Eu estava no Texas e em Boston. Ele estava em Chicago e São Francisco. Quando volto para os Estados Unidos, em 1976, além de ter publicado em 73 A Utopia Urbana, um dos primeiros cursos que eu dou no Museu é sobre desvio, aproveitando essa bibliografia que tinha conhecido e aqui ninguém praticamente conhecia. Esse curso rendeu trabalhos excepcionais, interessantíssimos, de alunos. Então tive a ideia de organizar uma coletânea sobre Desvio e Divergência, dois textos meus, um texto que era mais teórico, outro que tinha relação com a pesquisa de Copacabana e esses textos dos alunos. Eu tinha um relativo prestígio já junto ao Zahar, porque as coisas que eu tinha publicado e organizado tinham sido mais ou menos bem- sucedidas. O livro foi publicado e foi, evidentemente para a dimensão da época, um sucesso muito grande e passou a ser adotado por grande parte das universidades brasileiras em vários cursos. Bom, a história do Becker é uma história que tem um lado muito curioso saiu no Desvio e Divergência e tem essa relação com a Fundação Ford. A Fundação Ford apoiava o Programa, assim como apoiava o IUPERJ e o CEBRAP. Em um daqueles coquetéis, que geralmente são chatíssimos, estava lá um funcionário da Fundação Ford, um dos seus dirigentes no Brasil. Achei-o muito simpático. Não só tinha gostado muito do livro,
como era amigo pessoal do Howard Becker. Mandou o livro para ele. Howard Becker respondeu, lia em espanhol, fez um esforço, ficou interessadíssimo e passamos a nos corresponder. Eu não tinha defendido ainda a tese de doutorado. Ele me convidou para ir para Chicago em janeiro de 76. Eu defendi a tese em dezembro de 75 e em janeiro de 76 fui para Evanston, Illinois, que é um subúrbio de Chicago, onde fiquei como Visiting Scholar na Northwestern University, no Departamento de Sociologia do Becker e de outros. E aí fiquei no que chamariam hoje de pós-doc, não sei, por quase dois meses, voltado para a leitura; dando palestras, seminários, mas inteiramente voltado para o que se chama de Escola de Chicago. Por isso, inclusive, que tenho uma certa reserva em relação a esse nome, porque você tem que explicar muito o que é que se entende por Escola de Chicago. Enfim, conheci melhor essas obras que eu mencionei antes, não só do Goffman e do Becker, como dos colegas e professores deles, o Hughes [Everett C.], o Blumer [Herbert Blumer], o próprio Park [Robert Ezra Park], o Louis Wirth, e não só a leitura, como o conhecimento das histórias. As histórias, as alianças, as tensões, os conflitos, como foram aquelas ideias do Foote Whyte, que ele conta no Sociedade de Esquina, na ultima edição, conta uma parte pelo menos. É como se eu estivesse mergulhando nesse movimento intelectual, ligado originalmente ao departamento que primeiro foi de Antropologia e Sociologia, e depois se dividiu. Ele foi de Sociologia e Antropologia até 1929. Então um autor, por exemplo, chave, importante, das origens, é William Thomas. Além do Robert Park, tem o William Thomas. Eu mal o conhecia, tinha ouvido falar e aí li algumas coisas dele. Então fui vendo essas várias facetas da Escola de Chicago, essas várias direções e histórias e depois a dispersão da Escola de Chicago. O departamento muda, vai se tornando mais estatístico, vai perdendo mais a ênfase qualitativa. A tradição qualitativa vai para outros departamentos, outros lugares, como a Northwestern, na área de Chicago, e outros lugares dos Estados Unidos. Quando eu volto ao Brasil depois desse período, aí já com a tese defendida, começam os convites para publicá-la. A essa altura o Becker já leu a tese, não só o Desvio e Divergência, mas leu Nobres e Anjos. Eu publico alguns artigos nos Estados Unidos ligados a pesquisas que eu já tinha feito ou estava fazendo no Brasil. Aí surgem esses convites para publicar a tese, mas eu achava uma loucura publicar a tese, porque na época não dava para publicar, porque um dos assuntos era drogas. Embora as pessoas estivessem protegidas por mudanças de nome, não eram tão dificilmente identificáveis e eu próprio tinha que me proteger. Então essa tese foi publicada em 1998. Mas é claro que ela foi xerocada e usada, bem usada, em alguns casos, e vários trabalhos que eu escrevi depois tinham referência à tese. Então não é que ela tenha se perdido completamente nesse período, mas a publicação da tese, quando ela sai, em 98, tem uma dimensão histórica, porque é uma tese defendida 22 anos antes.

Santuza N.: É o primeiro trabalho na área acadêmica sobre drogas?
G. Velho: No Brasil, que eu saiba, foi. Na nossa área, foi. Evidentemente, na área psiquiátrica e na médica existiam outros trabalhos.

Santuza N.: Mas na área de Ciências Sociais foi você que inaugurou o tema.
G. Velho: Eu acho que, de um lado, puxando um pouco a brasa para a minha sardinha, o estudo de camadas médias e superiores. Assim como eu já tinha estudado as camadas mais modestas, de Copacabana, meio white color, aí eu estudei um modo de vida, um estilo de vida, uma visão de mundo de setores de camadas médias nas fronteiras com as elites econômicas e políticas. Às vezes até a distinção não era tão clara assim. Nobres e Anjos, com todos os problemas que certamente o meu trabalho tem, tinha esses dois lados. De um lado, um certo pioneirismo ao estudar uma problemática de desvio, transgressão, especificamente uma coisa proibida, uma coisa que era ilegal, podendo até ser caracterizada como um crime, que era o uso e a circulação de drogas. Por outro lado, estudava uma visão de mundo, um modo de vida que está ligado a esse setor, que tinha fortemente, como uma de suas marcas, a ligação com a cultura psi, porque a psicanálise era muito importante. Não que todos fizessem análise, mas muitos faziam, e a cultura psi era uma coisa presente o tempo todo. Isso depois teve desdobramentos em trabalhos meus e de alunos e colegas.

Sonia G.: Mas esse trabalho também tem um vínculo forte com a questão do urbano, pois não só é um tema proibido, como também se refere a fenômenos que acontecemna cidade.
G. Velho: O tempo todo. Eu estou estudando essas camadas médias superiores da metrópole. As pesquisas todas são na metrópole, se passam em diferentes situações na metrópole. São diferentes alternativas de estilos de vida e modos de construção da realidade. E é claro que se chama a atenção para a metrópole, que tem características singulares, próprias, que permitem ou estimulam o desenvolvimento desses diferentes modos de ver o mundo, desenvolver adaptações ou práticas ou modos de ser.

Sonia G.: A ideia de se tomar a cidade como laboratório começou com a Escola de Chicago, não é mesmo?
G. Velho: Sim, sem dúvida, mas eu não estava tão preocupado com isso. Minha preocupação principal era fazer pesquisas com grupos sociais e categorias sociais que vivem na cidade. Eu não estava discutindo uma teoria da urbanologia, certamente não era isso. Mas eu estava preocupado, sim, com as características da metrópole, da grande cidade, que estimulam, facilitam ou abrem possibilidades para a constituição de diferentes modos e estilos de vida, percepções da realidade. Então, é claro, a metrópole é fundamental. Nessas etnografias, tanto Utopia Urbana, como Nobres e Anjos, e depois, em outros trabalhos, destaca-se o fato de existirem certas peculiaridades da vida metropolitana como uma coisa que eu desenvolvo, que é a questão do anonimato relativo, que aparece inicialmente em um artigo que escrevi a quatro mãos com o Machado [Luiz Antonio Machado da Silva], eu acho que em 76, no Anuário Antropológico. Chama-se Organização Social do Meio Urbano. A questão do anonimato relativo é clara e tipicamente um texto ligado à problemática urbana propriamente dita. Quer dizer, as características da metrópole fazem com que as pessoas possam transitar por mundos diferentes, e essa ideia do anonimato relativo, porque você pode, a todo momento, cruzar com pessoas do outro mundo que você já conhece. Então, essa tensão entre o conhecido e o desconhecido é absolutamente fundamental e para isso é muito importante a literatura. Romances e poesias que falam da cidade, falam de modos de percorrer a cidade, as trilhas urbanas. Um autor que também se tornou importante para mim foi o Walter Benjamin. Não só a Escola de Chicago. Mencionei a Antropologia Social britânica, com tantos trabalhos interessantes, Clyde Mitchell, que trabalha com as cidades africanas, mas depois também os trabalhos da Elizabeth Bott, do Raymond Firth, com outros, que desenvolvem pesquisas importantes em Londres. Então, tem isso, o tipo de relação que se estabelece com a cidade, os tipos possíveis. O que é que chama mais a atenção? A heterogeneidade.

Valter Sinder: É nessa época que você publica com o Sérvulo [Sérvulo Augusto Figueira] sobre psicanálise também?
G. Velho: É. Já começa no final dos anos 70. Aí tem os trabalhos de diálogo com a área psi, e é um diálogo importante. O Sérvulo Figueira, que foi professor da PUC, foi meu aluno. Eu fui da banca de mestrado dele e organizamos textos, coletâneas, juntos, duas ou três, como a Família, Psicologia e Sociedade. Na questão da cultura na psicanálise, obviamente, o Sérvulo é um dos autores mais importantes. Nessa área, então, foi uma troca que a gente teve muito boa. Depois ele se dedicou integralmente à atividade psicanalítica e se afastou um pouco dessa linha acadêmica.

Santuza N.: Ao enveredar pela problemática relativa a indivíduo e sociedade, você passou a estabelecer um diálogo profícuo com a psicanálise, não é mesmo?
G. Velho: Pois é. Eu fui muitas vezes convidado e chamado para mesas e seminários da área psíquica, às vezes por pessoas que eram muito conservadoras, inclusive, era curioso. Tem até um diálogo possível, mas só isso vale uma reflexão sobre os diálogos possíveis e os limites do diálogo. Esse encontro ainda existe, há algumas pessoas ligadas direta ou indiretamente a mim caminhando nessa direção, dando um certo destaque ao Luiz Fernando [Dias Duarte], que montou uma linha própria, inclusive. Aí também tem essa discussão fundamental, que começou, na realidade, desde o A Utopia Urbana, que é sobre essa problemática (com todas as aspas que quiser) de indivíduo e sociedade.

R. Ismael: Sobre essas influências da psicanálise, você falou muito do seu pai, que tinha muita influência da Melanie Klein e do Erich Fromm. E as suas? Quais são as suas influências mais importantes?
G. Velho: Eu não me considero particularmente influenciado pela psicanálise. É Freud. Algumas coisas do Freud. Eu não me considero um expert em psicanálise, não. Mas houve muito interesse por parte de psicanalistas e psiquiatras sobre a temática antropológica, sobre a perspectiva antropológica. Então, na realidade eu era um visitante, que conhecia alguns textos do Freud, mas nunca tive a pretensão, ou mesmo o projeto, de me tornar uma autoridade em psicanálise. O Freud foi importante, o Erich Fromm certamente foi importante. O Fromm era muito ligado ao grupo de antropólogos de Columbia, a chamada Escola de Personalidade e Cultura, então ele teve também uma certa importância na minha formação. Melanie Klein não. Meu pai traduziu, mas não era exatamente uma área com a qual eu tivesse familiaridade. A ideia era indivíduo e sociedade, principalmente isso, em outros termos. Daí a problemática fundamental da retomada do Simmel, que era um autor tão conhecido e a importância da difusão da obra do [Louis] Dumont. Eu acho que isso tem a ver com o Matta [Roberto DaMatta]; assim como o Goffman, o Matta foi a primeira pessoa que eu me lembro que trouxe o Goffman, também o Dumont. Depois vem um aluno de Dumont para o Brasil, um brasileiro, Tarley de Aragão, e eu e o Luiz Fernando. Eu fui orientador do Luiz Fernando. Ele foi o meu primeiro orientando de doutorado. A minha primeira orientanda de mestrado foi para Londres, foi trabalhar com Elizabeth
Bott, e virou psicanalista, Rosine Perelberg.

Valter S.: Tem um texto dela no Desvio e Divergência?
G. Velho: Não, no Desvio e Divergência não. Tem Zilda Kacelnik. Rosine tem textos publicados, mas hoje em dia ela é uma psicanalista de muito peso. A dissertação de mestrado dela, que foi essa primeira que eu orientei, chama-se Fronteiras do Silêncio, é um trabalho sobre instituições psiquiátricas. É engraçado que estou com uma aluna agora, 30 anos depois, mais até, que está fazendo um estudo comparativo das instituições psiquiátricas do Rio, uma em Niterói e outra no Rio, e uma das referências fundamentais para ela está sendo a dissertação da Rosine, que para ela foi uma descoberta. É de 1978.

Santuza N.: Mas voltando aos seus trabalhos de Antropologia Urbana, Gilberto, ultimamente eu tenho visto vários trabalhos de pessoas que estão trabalhando com o Rio de Janeiro e noto a influência que você exerce em um número razoável de pesquisadores que estudam a relação centro e periferia através do trabalho em que você toma como objeto o fenômeno da mediação cultural. Medição cultural se tornou uma palavra mágica para quem quer entender o Rio de Janeiro e para pensar essa relação centro e periferia.
G. Velho: Creio que foi uma tentativa de trazer contribuições de uma antropologia mais clássica, voltada para as sociedades tribais e tradicionais, com a noção de mediação, para grandes metrópoles. É fundamental a ideia da relação entre múltiplas categorias sociais e múltiplos contextos, essa ideia de que as pessoas transitam entre vários mundos e vários setores da vida. Não só você identifica grupos diferentes, mas uma mesma pessoa que participa de vários mundos diferentes e essa ideia é importante para você pensar a mediação. Quem são os indivíduos e papéis sociais que ajudam, estimulam e facilitam a mediação? Quem pode ser identificado como mediador, como alguém que faz, possibilita, produz um trânsito entre pessoas, grupos e situações? E a ideia de que a sociedade se dá em múltiplos planos, é complexa, são múltiplos níveis, diferentes províncias de significados. Então são as pessoas que lidam com vários mundos. É a ideia de que você vive em uma metrópole, porque a sociedade é cada vez mais urbanizada. Tem que tomar muito cuidado, porque me preocupa muito, e cada vez mais, o risco de reificar a questão do urbano. O urbano é quase tudo, a partir de um determinado momento. Isso o Lefebvre, quase quarenta anos atrás, já chamava a atenção. Então, você tem o fenômeno da cultura urbana e o fenômeno material, geográfico e social da cidade, da metrópole. Agora tem os meios de comunicação de outra natureza. Tem a Internet, tem a televisão etc., que fazem com que diferenças que pareciam muito significativas há 30 ou 40 anos talvez não sejam tão significativas, ou mudam, pelo menos, de características. Há novas interpretações.

Sonia G.: Então você acha, por exemplo, que o Simmel não daria conta dos fenômenos urbanos de hoje?
G. Velho: Não, eu acho o Simmel fundamental, porque ele está falando em interação e em sociabilidade. Agora, é claro que todos os autores são datados. O meu trabalho está datado. No caso de Simmel, além da A Metrópole e a Vida Mental, tem também os outros trabalhos, como Group expansion and the development of individuality, The Stranger e uma série de outros trabalhos que dão um panorama, um quadro, abrem perspectivas para uma discussão sobre a sociedade moderno-contemporânea, que tem na metrópole a sua expressão mais aguda e mais dramática das relações entre centro e periferia, entre os bairros, das identidades múltiplas, a questão da fragmentação. Uma das coisas que eu acho mais interessantes, por exemplo, na relação entre Antropologia brasileira e Antropologia portuguesa é o estudo de bairros, é essa identidade da localidade. Então você tem, de um lado, o cosmopolitismo, pessoas que atravessam fronteiras, e de outro lado, você tem as raízes, as pessoas que estão ligadas, mais presas, mais fincadas no seu canto, no seu pedaço. Entre esses dois casos existem várias situações. Então, é essa multiplicidade. É uma questão que há na metrópole, e por isso eu acho que o Simmel continua atualíssimo. Não que eu tenha problemas em eventualmente fazer críticas aos grandes mestres, mas é a questão da escolha. Isso é uma questão fundamental para mim desde o inicio do meu trabalho. Sem o sentido social, como é que você delimita o campo de possibilidades e a margem de escolha que as pessoas podem ter dentro de um campo de possibilidades em que existem instâncias poderosas econômicas, políticas e de todas as ordens culturais que circunscrevem, até certo ponto, qual é a margem de manobra? Então não é só o indivíduo sendo objeto da sociedade, o resultado da ação das forças sociais, da história, da sociedade, mas o indivíduo como sendo um agente, não um agente que é produtor simplesmente, mas um agente inventor. Então, o que nós lidamos é com uma reinvenção da sociedade e da sociabilidade. O interessante não é só que a metrópole é uma soma, um agregado de diferentes que se encontram. É que ela produz a diferença. Ela está criando diferenças e é também, como ponto de partida, uma agregação de pessoas que vêm de diferentes lugares do mundo, do país, de regiões, pessoas de classes sociais diferentes. Então, é importante o fato de a metrópole ter um tipo de interação em que as pessoas vão produzindo novas situações, novos papéis, novas identidades.

Valter S.: Então, Gilberto, como é que você chega à noção de projeto?
G. Velho: Projeto, claro, tem a ver muito diretamente com a obra do Alfred Schutz, que foi uma influência muito grande, e com a minha ligação discreta, porém não insignificante, com o existencialismo. Eu falei do marxismo um pouco, mas eu sou um homem da minha geração. Eu também tive muita exposição e muito interesse, especialmente sartreano, heideggeriano menos, mas também. Então a junção entre uma vertente do interacionismo e uma vertente da fenomenologia nos leva à noção de projeto. Certamente o Schutz é fundamental, mas tem a ver também com o Sartre. É uma inspiração, eu acho. Isso aí lidando o tempo todo com uma problemática da subjetividade. É uma coisa que é um absurdo para um certo tipo de Ciência Social que se fez por muito tempo e se faz, pois continua se fazendo, pensar que o cientista social fosse lidar com subjetividade. É o que muitos de nós hoje em dia fazemos. Quando você tem histórias de vida e entrevistas mais densas você está lidando com a subjetividade das pessoas. Eu tenho um livro chamado Subjetividade e Sociedade, que é um desdobramento de Nobres e Anjos, onde você tem depoimentos muito detalhados, muito pessoais, autoanálises. Estão abrindo mão das Ciências Sociais? Não, de jeito nenhum. Estão fazendo pontes, juntando, ultrapassando fronteiras. Eu acho que isso talvez venha a retomar uma das melhores características da Ciência Social. O que era o Simmel? Um antropólogo, sociólogo, filósofo, pensador? Eu não sou contra quem é de uma certa especialização, e nem sou onipotente a ponto de achar que eu possa abarcar tudo. Eu posso abarcar muito pouco, mas certamente no trabalho que nós fazemos cada um de nós está fazendo os seus cruzamentos próprios, suas sínteses próprias. Um trabalha mais com literatura, o outro trabalha mais com música, e assim a gente vai fazendo essas junções e combinações com mais liberdade, porque isso não era assim, não tinha espaço. Não havia espaço há 30 anos para isso. Era muito pouco.

Santuza N.: Maria Isabel [Mendes de Almeida] enviou por e-mail uma pergunta sobre juventude e gerações, que é a seguinte: “A geração dos Anjos, discutida por você em Nobres e Anjos, cresceu em um cenário familiar profundamente afetado pelo entorno da contracultura, o que possibilitou toda uma reflexão sobre conflito e geração. Como você pensa e percebe, nos dias de hoje, a economia interna de uma geração de jovens dos setores médios, que teria hoje a idade aproximada dos Anjos e para a qual a relação entre conflito e geração parece ter perdido a sua razão de ser?”
G. Velho: A melhor pessoa para responder isso é a Maria Isabel. Sabe o que eu acho? Parece que eu estou fugindo da raia, mas esse universo jovem, assim como era muito no meu tempo, é muito heterogêneo. Eu estudei um segmento. No Nobres e Anjos eu digo isso claramente. Foi um setor. Eu não estava generalizando. O universo jovem, eu conheço através de vários caminhos, de vários jovens pesquisadores, desde os mais modernos até os emos, o pessoal da Internet, da lan house, tem também o pessoal mais convencional possível que está pensando em trabalho e casamento, de modo que não é muito diferente de gerações anteriores. Eu acho que há muita continuidade também. Eu acho que muda, sim, mas o que mudou muito foi o fato de ter acabado a ditadura. Parece que eu estou fazendo comício. Não é que não tenhamos problemas muito sérios no Brasil, mas acabou a ditadura. As pessoas subestimam o que foi o regime militar. Falamos um pouco sobre isso no início. Então, isso dá um outro clima. Não é que não exista arbítrio. O problema maior que a gente vive hoje no cotidiano das cidades e das metrópoles é a violência. Isso aí daria mais uma hora de entrevista que, infelizmente, não podemos ter. Então eu acho que, tentando dialogar com a Maria Isabel, ela sabe melhor do que eu, não tem o mesmo tipo de conflito que existia nos anos 60 e 70. Não quer dizer que não haja conflitos, mas não é o mesmo tipo. Eu acho que tem que pensar também a questão dos pais e dos filhos e juntar com a escola. A escola é uma instituição relativamente pouco estudada. Precisa ser melhor estudada, porque nesse encontro, qual o papel da escola como mediadora? Então se você vê os filhos, as famílias, os pais e a escola, você pode traçar um quadro um pouco mais rico dessa situação desses setores jovens. Eu acho que a gente tem várias opções e alternativas e existe a possibilidade, às vezes, surpreendentemente clara, de você perceber a invenção de modos de vida. Eu tenho alunos que pesquisam a Baixada Fluminense. É impressionante como surgem movimentos, formas artísticas, tipos de sociabilidade, que são próprios, característicos, distintos. Então são híbridos, mas assumem suas características próprias, sua singularidade. Na própria Zona Sul você tem variações muito grandes. Eu acho que é um mundo mais rico em termos de opções, menos oprimido, menos sufocante, mas arriscado. Sejam os riscos da violência, sejam os riscos das pessoas que se envolvem, nas suas opções, nesse território, de certa maneira, mais livre. Mas você pode discutir outras tiranias, a tirania da mídia, da comunicação de massa. Aí você pode contrabalançar. O que significa a revolução da informática? Que espaços a informática levanta, abre em termos de alternativa, de relacionamento, de sociabilidade? Eu acho que é isso.

R. Ismael: Aproveitando a pergunta, como é que você analisa essa mudança da inserção da juventude em termos políticos? Certamente, a sua geração, por tudo o que você já contou aqui, seja em um grêmio estudantil ou no Colégio de Aplicação, ou na greve na universidade, com todo o desdobramento depois da luta pela liberdade política, é uma geração que se envolveu, que estava engajada, às vezes até pagando com o preço da vida ou com algum desconforto da perseguição política. Como é que você analisa a juventude e a participação política hoje na sociedade brasileira?
G. Velho: É muito diferente. Eu acho que existem questões que talvez nem sejam definidas como políticas, como por exemplo, eu conheço e vejo, nas pesquisas que eu faço e nos contatos que eu tenho, alguns interesses fortes, como ecologia. Isso eu encontro repetidamente e não deixa de ser um tipo de política, não é? Outra coisa que é interessante de ver é a relação dos jovens com a religião e com o esporte, que são formas de sociabilidade e de construção de si mesmo, de modos de ver a realidade. Uma coisa que também achei muito interessante é que tive a oportunidade de ter contato — e tenho até hoje — com jovens de classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro, de formação originalmente católica, que passaram a ser frequentadores regulares, e não apenas visitantes eventuais, de terreiros de umbanda e de candomblé. Isso é político? Isso é uma valorização da cultura popular, é um movimento, uma ideia de quebrar fronteiras, às vezes muito ingenuamente, mas às vezes muito conscientemente. É uma tentativa de descobrir o mundo. Outro dia teve uma jovem que disse “Eu fui a uma feijoada em São João de Meriti”. Ela mora no Leblon. “É muito feio lá, mas foi tão bom. Eles são tão legais. Foi uma feijoada ótima”. Uma moça de 24 anos.

Santuza N.: Você está dizendo uma coisa muito interessante, porque eu ia fazer uma pergunta exatamente por aí, porque tomando o seu pressuposto de que existe uma multiplicidade de visões de mundo e de estilos de vida em uma grande metrópole, a partir disso, você acredita em uma “cidade partida”? Você acha que o Rio de Janeiro é uma “cidade partida”?
G. Velho: Não. Certamente não é partida em dois. Você pode até discutir a ideia de fragmentação, de multiplicidade, de diversidade, mas partida eu não acho. Eu acho que a cidade é toda misturada, para o bem ou para o mal. Há contatos múltiplos. Ainda falando de trabalhos que eu oriento, tem uma pessoa que orientei recentemente, que fez estudos de caso de moças de quinze, dezesseis e vinte e poucos anos que passaram a frequentar bailes funk nas favelas, e não só isso, como algumas delas passaram a namorar e, eventualmente, até viver algumas temporadas não só com funkeiros, como também com traficantes, que são os homens fortes presentes. Eles são os admirados, jovens também. Então tem esse lado de inversão, reinvenção, novos contatos, perigos, porque é perigoso, há um risco sempre. Uma dessas jovens descreveu, de maneira absolutamente impressionante, como o namorado dela mandou, na frente dela, torturarem um sujeito, e ao mesmo tempo em que ela ficou absolutamente impressionada, ela aceitava como um tipo de realidade que estava conhecendo. Uma coisa muito impressionante. Então, fragmentação, multiplicidade, não exclui, não é necessariamente uma grande festa. Pode ser uma coisa tensa, conflituosa, pesada, para a identidade das pessoas. Por mais que a gente possa discutir identidade, ou tentar fugir de visões rígidas de identidade, pensar mais em circulação, multiplicidade, existem (o termo às vezes é um pouco pesado) algumas âncoras de identidades. Eu sempre digo que âncora de identidade pode parecer a âncora de um encouraçado em uma base naval. Tem que tomar um pouco de cuidado com isso. Existem algumas referências de identidades que são importantes. Eu acho que, às vezes, nesse movimento de ir e vir, nesse trânsito incessante, essas referências de identidade podem se tornar perigosamente ameaçadoras e fragilizadoras, em termos de consistência e projeto pessoal. Houve uma época em que tínhamos modelos muito rígidos do que é que deveriam ser as pessoas, de como deveria ser o comportamento das pessoas, disciplina, obrigações, determinado tipo de sucesso e isso continua existindo em certos setores. Em outros setores abriu tanto, que não se criam expectativas, não se tem mais como defender expectativas. Isso passa muito pela escola também. O que é que as escolas passam junto com as famílias? Que projetos são possíveis? Sem dúvida, vivemos em uma sociedade capitalista, que está crescendo, cada vez mais rica, em que o projeto do tipo ficar cada vez mais rico, consumir mais, é muito forte e está muito presente. Talvez no nosso meio imediato não esteja muito presente, mas no vizinho, em pessoas próximas, talvez muitas vezes na mesma família. Eu acho que a rejeição a esse tipo de coisa – porque existem setores que não querem isso, é político, é uma política do cotidiano. Não é isso que eu quero. Eu não quero simplesmente ganhar dinheiro, comprar coisas. Eu quero fazer alguma coisa para o mundo, criar alguma coisa. É a ideia de criar, e não simplesmente acumular. Eu acho que mudam um pouco as referências.

Sonia G.: Eu acho que tem um aspecto da sua trajetória, da sua inserção, que a gente não mencionou, mas seria importante, que é toda a inserção que você teve e tem na política científica, quer dizer, você é uma pessoa que nunca se furtou a estar presente, como presidente da ABA, da ANPOCS, vice-presidente da SBPC, membro do conselho consultivo do IPHAN, onde inclusive foi relator do tombamento do Terreiro Casa Branca, em Salvador, uma questão muito importante, relevante e pouco resolvida. Você também é membro titular da Academia Brasileira de Ciência, vários prêmios. Talvez você pudesse falar um pouco disso.
Santuza N.: Eu gostaria também de levantar uma outra questão, relativa à sua atuação como intelectual na vida pública, como formador de opinião. Você tem uma presença muito forte na vida pública. Você emite opiniões e sempre em uma situação de crise no Rio de Janeiro você é chamado a falar.
G. Velho: Em primeiro lugar eu queria dizer que hoje em dia emito bem menos opiniões do que emitia antes, mas eu fiz e faço, já fiz mais, política científica cultural, sem dúvida nenhuma. Uma das coisas que eu quis fazer, a que me entreguei, lutei e batalhei por várias causas, foi através das sociedades científicas, muito mais do que dentro da Universidade. A minha participação na Associação Brasileira de Antropologia durante muito tempo foi muito intensa. Hoje em dia é bem menor. Foi importante na SBPC, na ANPOCS. Eu acho que essas sociedades têm diferenças, cada qual tem suas peculiaridades, tiveram um papel muito importante (e têm ainda, eu acho que têm que se adaptar, isso é uma outra questão) no desenvolvimento da sociedade brasileira em termos de aberturas de espaços e de contribuição para a melhoria de condições da sociedade em geral, a partir de uma preocupação específica com um lado, com essa situação da ciência, a qualidade da ciência, mas uma ciência pensada sempre não de um modo isolado, mas em termos de suas relações com a sociedade. Eu não acho que todo cientista tenha que sair para participar de organizações e reuniões, mas as sociedades científicas têm como uma de suas tarefas garantir a qualidade da produção científica, lutar pela qualidade. Às vezes não têm feito isso bem. Ao mesmo tempo, tem que estabelecer pontes com a sociedade maior. Eu acho que uma coisa que a gente conseguiu foi ampliar a presença das Ciências Sociais, seja através da SBPC, seja depois com a Academia Brasileira de Ciências. A ANPOCS foi uma grande conquista. A ABA era um núcleo muito restrito, muito pequeno. Em 74 e 76 eram pouquíssimas pessoas. Então, acho que foi e é importante na minha vida esse tipo de participação, mas uma das coisas de que nós não falamos e está ligada a isso, que eu não posso deixar de falar sem abandonar as questões que vocês fizeram, é o meu trabalho de orientador.

Valter S.: Gilberto, eu me lembro que quando eu entrei no Museu, você estava falando assim “Meu quinquagésimo orientando está defendendo hoje”, e eu fiquei muito impressionado.
G. Velho: Pois é, agora são 90. Eu orientei 90 teses e dissertações. Então, eu acho que isso também faz parte da atividade intelectual. Isso é uma das coisas das quais eu mais me orgulho e valorizo. É a formação de pessoas, não só de pessoal científico, mas de pessoas, intelectuais, mais ou menos engajados na vida social. Nas sociedades científicas eu acho que a gente defendeu temas específicos, questões ligadas mais diretamente às atividades científicas, de pesquisa, condições de trabalho, recursos, luta contra a censura e em determinados momentos contra o regime militar. No caso da ABA sempre era a questão das minorias, não só a questão indígena, como a questão das mulheres, do movimento gay. Nós sempre estivemos muito empenhados nisso. Na ANPOCS, talvez de maneira não tão nítida quanto na ABA em relação a esses temas, também, e em relação à organização do campo, à consolidação. E, sobretudo, a ideia de promover a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade. Eu acho que isso era muito importante na ANPOCS e continua sendo. Juntar pessoas de diferentes formações e orientações permitindo o diálogo. Quando participei das sociedades científicas, quando fui presidente, vice-presidente, membro dos conselhos, isso foi sempre uma preocupação minha. Promover as relações com as outras disciplinas, não só Ciências Sociais, mas com outras áreas de conhecimento, foi isso que nos levou, de certa maneira, a entrar para a Academia de Ciências, como a questão da formação de quadros. São coisas que se juntam. Isso é fascinante porque te dá a oportunidade de ter como modo de vida o diálogo. Você está sempre dialogando. Você pode ser um orientador mais ou menos autoritário, mas mesmo que você seja muito autoritário, que eu acho que não é o meu caso, você tem a possibilidade de um diálogo, de conversar, de trocar ideias. A essas alturas do campeonato, certamente eu não sou o mesmo que era há 30 anos e não oriento da mesma maneira que orientava 30 anos atrás. Eu oriento pessoas muito diferentes e os temas mais diversos. Orientei, nos primeiros anos, pessoas de algum tipo de elite, pelo menos intelectual, de famílias mais ou menos sólidas, bem estabelecidas. Mais recentemente, já orientei pessoas, que não são poucas, de camadas populares. Eu orientei uma moça há alguns anos, sem cota, que dizia que na casa da família dela não tinha um livro. Essa moça fez mestrado, doutorado, foi para os Estados Unidos e não é um caso isolado. Houve uma mudança. Uma outra que veio me procurar um dia e disse “Professor, eu gosto das suas aulas. O senhor poderia me ajudar e fazer uma lista de livros de literatura para que eu lesse também, além das coisas de antropologia?”. Eu fiquei pensando o que sugerir e coloquei lá Machado de Assis, Dickens, Tolstoi, etc..

Valter S.: Você acha que houve uma mudança no perfil dos alunos?
G. Velho: Houve. Era muito mais elitizado. Eu dava aulas para turmas que praticamente só tinha gente que morava na Zona Sul. Hoje em dia eu posso dar aula para uma turma em que a minoria é de Zona Sul. Mudou. Eram predominantemente pessoas de classe média para cima. Agora não, várias pessoas de classes médias mais modestas ou mesmo de classe trabalhadora. Isso no Museu Nacional, lugar visto como a elite das elites.

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