quinta-feira, 11 de novembro de 2010

BARATAS

Ivo de Aguiar (*)

O primeiro animal a ser domesticado pelo homem foi a barata, e o relato de um de amigo sugere que agora, além de nossos lares, onde vivem de nossas sobras, do que resta de nós, circulam livremente pelo ambiente de trabalho. No início do expediente, encontrou uma barata no sanduíche, dentro da geladeira do escritório. Em seguida, no copo com água de uma de suas colegas de departamento e posteriormente, boiando no garrafão de água mineral. Quando alguém lembrou que as baratas são vetores de bactérias, fungos, vermes, vírus e protozoários o pavor tomou conta do recinto e naquela manhã, ninguém mais na repartição arriscou-se a abrir a geladeira, tampouco ousaram revirar arquivos ou vasculhar gavetas em busca de documentos antigos. As baratas agradeceram e fizeram a festa.

Acostumados com a convivência humana, esses insetos proliferam nos domicílios, espalhando-se pelos lugares mais inusitados, de onde só saem para realizarem voos nojentos, gosmentos, asquerosos e assustadores. Suas assas, aparentemente frágeis e delicadas, nasceram com a vocação de aterrisagem em solas de chinelas e de sapatos. As vassouras, suas principais predadoras, atacam-nas nas paredes, no sofá, nos armários, em pleno ar, manuseadas na maioria das vezes por mulheres desprovidas de outros objetos à mão. Existem, no entanto, mulheres corajosas o suficiente para enfrenta-las sem armas, colocando maquiagem e penteado em risco, afugentando barata com gritos histéricos, trejeitos transloucados e fisionomia transfigurada.

Foi o episódio do amigo que me fez lembrar uma ocasião na qual, ao sair de casa, deparei-me com um passarinho bicando uma baratinha sobre o asfalto, em frente ao prédio vizinho. A indefesa barata, de pernas para o ar, se debatia toda, tentando se desvencilhar do inevitável destino. Seu instinto de sobrevivência, sabiamente parecia dizer que nessas horas não há diferença entre ser devorada por uma vassoura ou por um bem-te-vi. O passarinho, insensível aos alvoroços da rua - buzinas, pedestres, fumaça, pneus-, bicava, recuava, e bicava e recuava novamente. Com o mesmo bico que entoava as mais belas melodias do amanhecer, a linda criatura de penas coloridas minava as resistências daquele pobre, desafortunado e horrível inseto.

A luta desleal comoveu-me. Dei dois passos resolutos na direção do embate para apartá-lo e ajudar a infeliz baratinha, contudo, recuei tal qual o passarinho. Detive-me perplexo por alguns instantes, observando a batalha entre fortes e fracos, explorados e exploradores, pequenos e grandes, quando de repente, num movimento improvável, a baratinha virou-se e saiu voando em várias direções e para nenhuma delas, num voo tonto, descontrolado, impreciso, eufórico, o voo da liberdade e da vitória.

O passarinho perdeu a refeição, a baratinha ganhou a vida e o homem reconheceu sua condição humana, animal casca grossa, cheio de boas intenções.

(*) É administrador, Professor e Estudante de Jornalismo da UFAM

Nenhum comentário: