segunda-feira, 15 de novembro de 2010

LUZ, CÂMERA, DEZ ANOS DE EMOÇÃO

Ellza Souza*

Filme ou vídeo não importa. O que importa é a criatividade, a imaginação, o poder de resumir em poucos minutos a grande idéia que está preenchendo seu cérebro. Ao ser expressado na tela de uma sala de cinema, para mim esse trabalho passa a ser um filme onde cada etapa tem o seu papel: Pesquisa, roteiro, captação de imagens, som, elenco, texto, produção, edição. Em 2000 apareceu em Manaus como “visage” um caboco de Anori chamado Júnior Rodrigues que trouxe das matas e do mundo por onde andou essa história de filmes de um minuto. Ao ouvir o Júnior falar na televisão de seus projetos fiquei encantada com suas idéias. Desde então fui fazendo os seus cursos ano a ano.

No final do curso ele pedia à turma roteiros para serem filmados e que participariam do concurso de um minuto. Com muita dificuldade Júnior se virava do avesso para dar conta das produções de seus pupilos. Nesses momentos minha cabeça fervilhava de idéias. Era até insuportável pois eu não tinha coragem de apresentá-las na frente da turma. Certa vez, à noite na livraria Valer levei mais de dez roteiros para a seleção e na hora falei de três. Nesse dia, depois da minha apresentação, uma dor de cabeça lancinante me fez sair correndo do local atrás de ajuda. Não queria incomodar a turma que alegremente escolhiam os melhores roteiros para serem filmados. Fui à cata de alguém que me ajudasse. Estava muito mal. Não tinha ninguém fora da sala do curso. Encontrei, enfim, um senhor e lhe pedi um copo de água com açúcar. As boas emoções também podem causar estrago. A alegria e o esforço fizeram a minha pressão arterial passar dos 20. Fui direto para o pronto socorro.

Daí em diante não parei mais. Durante quatro ou cinco anos as idéias minavam na minha cabeça na época do concurso do Júnior. O primeiro foi “Muros” que surgiu quando ao passar de ônibus na estrada da Compensa/ Santo Antonio vi um maravilhoso pôr do sol no rio Negro. E observei que muros horrorosos separam as pessoas do rio Negro, escondendo um cenário que era para estar escancarado aos que passam pelo local. Daí já demonstrava o interesse pelo documentário. Do que você cria ao que você pode realizar vai uma grande distância. Sem recursos nenhum, apesar do apoio do Júnior, o filme resultou num fiasco. Mas um dia vou fazer o “Muros II” para corrigir isso.

Entre os roteiros que escrevi resultantes das oficinas do Júnior Rodrigues estão o “Mundo Fashion” cujo nome original era “A moda que vem das ruas” que pretendia mostrar o jeito de vestir, de andar, de se enfeitar das pessoas nas ruas e no final mostrou também as pessoas que vivem abandonadas nas ruas de Manaus. O “Bela Época” denunciava o descaso com os prédios históricos do centro da cidade. Além de mostrar o nosso patrimônio abandonado coloquei “na fita” uma jovem e seu pai num diálogo onde a menina tinha mais consciência de preservar a história do que seu próprio pai.

O “Caldo de Caridade” foi baseado no livro de Chloé Loureiro, Doces Lembranças, e na hora da gravação faltou “apenas” a artista principal. E como sempre tudo foi improvisado e as falas decoradas na hora. Teve também uma tentativa de musical-documentário. Pretendia em um minuto contar a história do enterro de Eduardo Ribeiro cujo corpo foi levado ao cemitério em um bonde oficial e luxuoso. Isso com dançarinos e música. As gravações aconteceram no bondinho que estava ainda no teatro Chaminé. Aí faltou de tudo na hora. O filme era “complexo” demais. Montagem de cenários, figurinos, personagens infantis e um casal de bailarinos. Gente, nunca vi tanta improvisação. De cara faltou o casal de dançarinos. A produtora havia esquecido de avisar os “contratados”. Então no cúmulo da improvisação ela mesma “dançou”.

O Júnior chamou um amigo bailarino que fez partner com ela. O figurino das crianças, mais de quinze vestidos, foi descosturando aos poucos. Era um tal de “prega” bainha e alça sem parar. As crianças, ansiosas, começaram a “pintar no set”. Não podia dar em outra coisa. Fiasco de público e crítica. O filme tinha um bonito nome: “Um bonde chamado saudade”. Ainda estão nos meus planos de um a quatro minutos um roteiro de suspense tipo Psicose e um de humor que acho difícil mas bem feito pode dar um ótimo produto.

Para Júnior Rodrigues, no cinema amazonense “faltam bons projetos e apoio financeiro”. A formação, para ele, precisa ser intensificada no setor. “O Estado e o Município não possuem uma política cultural adequada para o cinema”. Mas existem avanços e o Festival Internacional de Cinema pode ajudar nesse contexto que
almejamos. E conclui: “Precisamos das secretarias de cultura mas não dependemos delas para fazer o nosso cinema”. Esse movimento de curtíssimos projetos para o cinema vai longe. Hoje o Curta 4 já é uma realidade. E o intenso trabalho do Júnior na área se espalha pelo interior amazonense onde mobiliza muitos talentos nessa empreitada de completa dedicação do seu criador. Incompreendido, mal falado às vezes mas incansável, não desiste e segue em frente mesmo tendo que caminhar como vi no set do “SE” em Parintins, com um par de sandália japonesa de modelos diferentes.

Achar que é cineasta pelo simples fato de ter feito um filme, ou vídeo como queiram, de um minuto, de quatro ou de cem, é burrice. E estudar, ler, aprender com os mais experientes, ser humilde como os competentes de verdade, não custa nada. O ego nesse meio é exacerbado e alguns se isolam como se fossem castas e donos de um conhecimento especial e glamouroso. Presunção dos medíocres que impede que o cinema como sétima arte progrida em nossa cidade. E por falar em experiente e competente me deparei no teatro Amazonas durante o 7º. Festival de Cinema com o grande Carlos Manga, esse sim com histórias para contar e ensinar. Quando os medíocres chegarem lá, aí sim peço o meu autógrafo.

Os meus aplausos a todos que se esforçam para o engrandecimento do cinema amazonense. Observo o empenho também do Chicão, do Jean Robert e do Luiz Carlos Martins. O Sérgio Cardoso tenta formar um público apreciador de filmes clássicos e de qualidade exibindo na Casa Ivete Ibiapina grandes obras do cinema mundial. O Márcio Souza, o Joaquim Marinho, o Luiz de Miranda Corrêa, o José Gaspar e outros não podem jamais ser esquecidos. Claro que tem também uma grande massa de anônimos que quer de verdade aprender e fazer algo de bom no setor em Manaus. Sem estrelismos mas galgando passo a passo para construir um ambiente favorável a essa prática. Unindo forças e experiências pode ser que um dia o cinema na Amazônia chegue em grande estilo às telas mundiais. Ouvi o governador do Amazonas falar no encerramento do Festival que vai haver curso de cinema na UEA. Pronto é só estudar e tirar o chapeuzinho para a imaginação e a humildade serem componentes de suas realizações cinematográficas.

Fazer como o Júnior é um bom caminho. Faz e pronto sem se importar com a fama. Imagino que seu objetivo seja tornar popular e real a idéia do cinema no Amazonas. Não fica ninguém de fora do seu público alvo pois cegos e surdos já fazem parte de sua constelação. Como alguém que entende do riscado falou “cinema é mostrar o homem ao homem”, ele está certo ao abrir as idéias de todos que encontra pelos caminhos de nossa extensa Amazônia.

Não posso deixar de mencionar nesse texto o documentário que assisti na Livraria Valer chamado “Quando cantavam as cigarras”, uma idéia do professor Manuel Callado e produção de Hamilton Salgado. Do tipo que eu gosto, o filme é um resgate de histórias, de fotos, de vidas. Como o “entendido” disse na frase lá em cima, foi mostrado nesse trabalho experiências importantes de nossa história que estavam sendo esquecidas. Preservar os acervos e saber contar as histórias com verdade é muito importante para a dignidade de um povo e o crescimento de uma nação. Que venha outros documentários como esse. Acho até que já deveria ter em Manaus um centro especializado na realização desse tipo de produção. Dos pequenos aos grandes projetos o que não falta é cenário e motivação, afinal vivemos em plena Amazônia. Povo, água, floresta, fauna, flora, lendas tudo pode ser transformado em filmes sem prejuízo para o meio ambiente.

Júnior, por essas e outras que o seu trabalho é importante. Continua assim que nós estaremos sempre ao seu lado. Parabéns a todos que respiram cinema no tão enjeitado norte do Brasil.

(*) É escritora, jornalista e colaboradora do NCPAM/UFAM.

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