terça-feira, 29 de setembro de 2009

MEMÓRIA DA DITADURA: "Passamos 47 dias no DOI, conhecido por quantos passaram por lá, com torturas das mais violentas..."


Trinta anos se passaram após a decretação da Lei de Anistia, assinada em 28 de agosto de 1979. Contudo, as marcas da repressão e suas conseqüências estão presentes e continua a embalar os sonhos dos libertários na luta pela Democracia, promovendo ainda hoje, amplas discussões, seja nas universidades, nos meios de comunicação, nos tribunais, nos centros culturais, na periferia da cidade, a transformar as demandas populares em bandeiras de luta do movimento social tal como se fez no passado em favor dos povos indígenas e em defesa da nossa Amazônia e seu Patrimônio cultural. A luta continua contra os canalhas e aventureiros que travestido de político, governante e empresário reduzem a Amazônia em moeda de troca para beneficiar de imediato corporações, promovendo o desmatamento, a poluição e o desencanto de nossa gente quanto ao futuro do planeta.

A punição aos torturadores e dos predadores ambientais hoje, bem como as reparações aos anistiados políticos e ao meio ambiente estão no centro dos debates, o que representa um diálogo importante entre passado e presente. Por isso, em homenagem aos brasileiros, homens e mulheres que lutaram pela Democratização do País, postamos em nossa página, a história do estudante de ciências sociais, o poeta Oswald Barroso, autor de “Poemas do Cárcere e da Liberdade”, para que nunca, jamais nos esqueçamos do valor desses companheiros na construção da liberdade como fundamento da Justiça Social e Distributiva.

Minha primeira prisão foi no dia do trabalhador, em 1969. Passei o mês de maio numa cela do quartel da Polícia Militar, aqui em Fortaleza. Apesar de ter sido absolvido no processo aberto na Justiça Militar, tive meus direitos estudantis cassados pelo decreto 477. A partir de então, nunca mais conseguiria continuar meu curso de Ciências Sociais. Também contra mim, passaram a se voltar as perseguições dos chamados órgãos de segurança.

Obrigado a abandonar a casa paterna, fui habitar em bairros suburbanos de Fortaleza, onde conheci de perto as agruras da vida das camadas pobres do nosso povo. Meu trabalho poético, por essa época, está resumido a alguns poemas circulantes em pequenas publicações mimeografadas, embora eu já escrevesse desde a adolescência.

No início de 1972, a prisão de alguns estudantes amigos, minha permanência em Fortaleza tornou-se insustentável. Mudei-me para Recife, onde passei a habitar em bairros de periferia, sob condições das mais difíceis. Para sobreviver vendia confecção de porta em porta e trabalhava em artesanato. Mesmo assim, encontrava tempo para desenhar e escrever poesias. São dessa época os poemas: “Canção camponesa de ninar” e “Sol”, esse último dedicado a uma jovem paraguaia fuzilada no Recife, em janeiro de 1973.

No final de abril de 1974, fui seqüestrado pelo DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações e o Centro de Operações de Defesa Interna) de Pernambuco, juntamente com Arthur Geraldo Bonfim de Paula. Nós habitávamos, com a família dele, no bairro do Jordão. Nossa residência foi invadida, saqueada e ocupada por agentes de segurança. Liége, esposa de Arthur, e sua filha de um mês, Helenira, escaparam do seqüestro por terem viajado na manhã anterior. Junto comigo, foi-se, nas mãos dos policiais, quase toda a minha produção poética. Escapou apenas a cópia de alguns poemas nas mão de amigos, que não me foram possível até hoje localizar, e uns três ou quatro poemas guardados de cor.

Passamos 47 dias nos porões do DOI, sob o tratamento já conhecido por quantos passaram por lá: toda espécie de tortura, das mais violentas, as mais requintadas. Saídos dali, mais mortos do que vivo, fomos jogados em celas do Corpo de Bombeiros do Recife. Foi mais de três meses de incomunicabilidade e “desaparecimento”, antes de nos ser permitido ter acesso a um advogado. Marcado física e mentalmente, submeti-me a um tratamento psicológico intensivo. Até quase um ano após a passagem pelo DOI, só conseguia dormir serenamente à base de tranqüilizantes.

Saímos da cela apenas para ligeiros banhos sol e éramos constantemente assediados por elementos da polícia política, o que nos mantinha sob tensão constante. Repartindo a cela dos Bombeiros, estiveram conosco, por breve tempo, o Fonsêca e um camponês da zona da mata, acusado do quê, ele mesmo não sabia.

Apesar de tudo, o tempo foi de grande criatividade. Eu pintava muito, escrevia outro tanto e trabalhávamos em artesanato. Líamos tudo que nos chegava às mãos. Acompanhamos com entusiasmo, particularmente, o ensaio de revolução, que se verificava em Portugal. Com tristeza, soubemos do “desaparecimento”, também nesse período, de minha prima jana, e da morte da Helenira Resende, no Araguaia.

Próximo ao final de 1975 foi relaxada a minha prisão preventiva. Arthur ainda continuou por mais algum tempo sozinho na cela dos Bombeiros. Para ele foi um período difícil, principalmente com a morte de sua filhinha Helenira, na Bahia.

Solto, voltei à Fortaleza e dediquei-me ao estudo da cultura popular. No início do ano seguinte, publiquei URUBU e MERCADO, dois folhetos de poesias. Em seguida incorporei-me a um grupo de teatro, o GRITA, e trabalhei com ele na realização de algumas peças de conteúdo popular. Nas constantes viagens de pesquisa, feitas ao interior do Ceará, colhi o material que depois se condensaria no “o Reinado da Luminura ou A Maldiçãao da Besta-Fera”, peça do teatro escrita ainda em 1976.

Em outubro desse mesmo ano, numa viagem de trem, conheci a Jô, minha futura esposa. Logo em janeiro do ano seguinte, viajávamos novamente juntos. Dessa vez a Recife, para o meu julgamento. Estávamos aflitos ante a possibilidade de uma separação prolongada. Minutos antes da leitura da sentença, na própria Auditoria Militar, selamos entre nós um pacto, como forma de solidificar nossa união: não importando o que ocorresse nós teríamos um filho de nome Pedro.

O resultado do julgamento foi à condenação de quatro dos cinco réus, embora o promotor reconhecesse a absoluta falta de provas contra nós. Após o julgamento, Arthur, Fonsêca e eu, fomos levados para uma cela nos porões da Polícia Federal no Recife. Depois de dez dias inteiramente incomunicáveis, fomos separados. Arthur foi preso para a Bahia, e o Fonsêca e eu fomos para o Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), em Aquiraz, no Ceará. Lá fiquei por mais nove meses preso, embora já tivesse direito à liberdade condicional, por haver cumprido mais da metade da pena de dois anos e três meses a mim imposta.

No IPPS, conheci a vida de um coletivo de presos políticos. Líamos muito, discutíamos bastante e brigávamos, mas chegávamos, quase sempre, a posicionamentos comuns na luta constante, travada por nós com a Direção do presídio, por nossos direitos. Dividíamos as tarefas na cozinha e na higiene das celas, praticávamos alguns esportes e trabalhávamos em artesanato de couro.

Gostávamos de presentear as visitas, familiares e amigos distantes, com quadros pirogravados em couro ou madeira, onde expressávamos nosso desejo de liberdade. Certa vez, porém, a direção da Penitenciária proibiu essa nossa atividade. Arrancou-nos os instrumentos de trabalho e sugeriu que, apenas com desenhos de flores poderíamos presentear dali em diante. Nossa resposta foi rápida. Confeccionamos medalhões em couro, tendo a frente o desenho de uma rosa brotando de uma muralha, rachando-a. Na face oposta, escrevemos o título de uma conhecida canção do Geraldo Vandré: “Pra não dizer que não falei das flores”. Foi o presente mais disputado pelas nossas visitas.

Eu continuava pintando e escrevendo. A Jô visitava-me todos os fins de semana. A prisão limitava nosso relacionamento e conspirava contra o nosso amor. Nossos esforços não foram poucos para mantê-lo firme até a minha saída da prisão em outubro de 1977. Tão logo saído da prisão, fiz com a Jô nova viagem de trem pelo interior. Em dezembro nos casamos, e nove meses depois nascia o Pedro.

Para nós, 1978 foi o ano do “Reino da Luminura”. A peça foi publicada e encenada pelo GRITA, em quase quarenta apresentações, a maioria, nos bairros de Fortaleza, apesar dos problemas com a censura.

Depois de já havermos cumprido quase todas as nossas penas, o processo, no qual éramos réus, foi julgado em recurso no Superior Tribunal Militar. Resultado: todos absolvidos.

Pequena ironia da Justiça do regime: mais de dois anos preso, por duas absolvições...

A vida continuou. Cresceu a luta pela Anistia irrestrita, os movimentos dos favelados, as greves, a luta pela Nicarágua...

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