Yudi Oda (*)
“...amar e mudar as coisas
me interessa mais...”
Belchior
Em pleno século XXI o discurso sobre a liberdade sexual de Jean Paul Sartre ainda causaria grande desconforto em muitas partes do mundo. No Brasil, Sartre e sua companheira, Simone de Beauvoir, correriam até o risco de serem executados perseguidos e até agredidos fisicamente por fanáticos religiosos, moralistas justiceiros em muitas cidades, do Rio Grande do Sul a Roraima, do Rio de Janeiro ao Mato Grosso.
Até mesmo nossos mais fervorosos “revolucionários” tupiniquins olhariam com desdém e preconceito a luta sartriana contra a tradicional família burguesa. Modelo de família, aliás, onde repousam “guardados por Deus, contando seus metais”. Mas, falando em Deus... Calma lá! Há uma tradicional sobreposição dos termos “família burguesa” e “família cristã”, muitas vezes pertinente, mas não necessária. A famosa passagem bíblica na qual Jesus diz à sua mãe “eis minha mãe e meus irmãos”, enquanto apontava para seus companheiros e discípulos, indica uma distinta compreensão de família e, óbvio, sendo uma frase dita pelo próprio Cristo, poderia, com justa razão, ser tomada como a “verdadeira” família cristã.
Uma família cristã sem “papai, mamãe, titia/ cachorro, gato e galinha”, uma família cujo amor corresponderia ao ideal de Toni Negri, para quem “o amor não pode ser algo que se fecha no casal ou na família; deve abrir-se para comunidades mais vastas”. Uma família, portanto, que não se restringe aos laços de parentesco, à consangüinidade.
O problema é que a tal família burguesa tornou-se um modelo tão amplamente adotado que, aos olhos de muitos, pode parecer a única forma aceitável de constituir uma família “decente”. É a esta visão de mundo que o filósofo Gianni Vatimo denomina de “ditadura do heterossexual e monogâmico”. Tal modelo de família não é defendida intransigentemente pelos cristãos em geral, mas sobretudo por movimentos tradicionalistas reacionários como o Tradição, Família e Propriedade e também por certos grupos de fanáticos neopentecostais, por exemplo.
Mas a tradição popular contém elementos que vão ao encontro deste modelo, como por exemplo, quando hipervaloriza negativamente termos como puta, viado e corno, que, em conjunto, compõe a tríade perfeita dos termos preconceituosos que sustenta a ditadura do heterossexual e monogâmico.
Puta é um termo amplamente utilizado para a mulher promíscua e não somente para as profissionais do sexo (eufemismo moderno para puta). E vejam, puta e não puto, afinal o segundo termo tem um peso incomensuravelmente menor do que o primeiro, sugerindo uma concepção segundo a qual a promiscuidade masculina é amplamente tolerável (muitas vezes até desejável para muitos orgulhosos pais e mães de garanhõezinhos!!)
Viado, bicha, baitola, queima-rosca, boiola e todo um rosário de termos ofensivos, são utilizados para constranger não somente os indivíduos que se envolvem em relações homoafetivas, mas até mesmo homens delicados ou “afeminados”. O caso mais rumoroso dos tempos recentes envolve a hostilidade da própria torcida contra o jogador são-paulino Rycharlison.
E a obsessiva atenção dada pela sociedade brasileira à infidelidade feminina, diuturnamente cultivada pelas velhas e manjadas tramas novelescas, é uma patologia mental das mais sérias. É quase lícito ao homem brasileiro vingar-se da infidelidade feminina, enquanto a quase inexistência do termo “corna” sugere que o inverso, ou seja, ser vítima de infidelidade masculina não constitui motivo para constrangimento.
Foi em prol de um amor desmesurado e livre e contra este modelo machista preconceituoso que se insurgiram Sartre e Simone, este amor que constituiu o ato mais revolucionário de suas vidas. E o ato mais difícil, não somente por buscar romper com o conservadorismo de grande parte da sociedade, mas porque atos de liberdade pressupõe enorme responsabilidade. “Estamos condenados a liberdade”, diria Sartre.
É óbvio que o velho “João Paulo” foi também um importante escritor, roteirista, filósofo, militante. Recusou o Prêmio Nobel de Literatura em 1964 e, muito embora desprezasse o conceito de “grande homem”, foi aclamado por multidões durante grande parte da vida. E depois de morto, afinal, até mesmo seu funeral mobilizou uma verdadeira multidão de admiradores de todo o mundo.
Sartre notabilizou-se por seu existencialismo "ateu". Segundo este, Deus não existe, Deus é. Segundo sua concepção, existir, ao contrário de ser, pressupõe transformação. E Deus é justo, bom, onipotente, etc. Em contraposição, arriscaria dizer que para Deus, certamente, Sartre existiu. E sua existência, seu amor livre possibilitaram à sociedade de seu tempo, importantes e radicais transformações.
Reavivou, na sociedade européia o desejo pelo amor livre, por relações afetivas livres da possessividade (que profanam o “amor de todos os mortais”), o direito ao prazer sexual para além da mera promiscuidade, da banalização das relações sociais.
Vive l’amour! Vive la liberté! Valeu, Sartre! Trinta anos após a sua morte, aqui, nos longínquos rincões da Amazônia Brasileira, seu brado também foi ouvido!
(*) É professor da UFAM, cronista do cotidiano absurdo ou do absurdo do cotidiano e amante das ciências, das artes e do mundo comunal (yudioda@yahoo.com.br).
“...amar e mudar as coisas
me interessa mais...”
Belchior
Em pleno século XXI o discurso sobre a liberdade sexual de Jean Paul Sartre ainda causaria grande desconforto em muitas partes do mundo. No Brasil, Sartre e sua companheira, Simone de Beauvoir, correriam até o risco de serem executados perseguidos e até agredidos fisicamente por fanáticos religiosos, moralistas justiceiros em muitas cidades, do Rio Grande do Sul a Roraima, do Rio de Janeiro ao Mato Grosso.
Até mesmo nossos mais fervorosos “revolucionários” tupiniquins olhariam com desdém e preconceito a luta sartriana contra a tradicional família burguesa. Modelo de família, aliás, onde repousam “guardados por Deus, contando seus metais”. Mas, falando em Deus... Calma lá! Há uma tradicional sobreposição dos termos “família burguesa” e “família cristã”, muitas vezes pertinente, mas não necessária. A famosa passagem bíblica na qual Jesus diz à sua mãe “eis minha mãe e meus irmãos”, enquanto apontava para seus companheiros e discípulos, indica uma distinta compreensão de família e, óbvio, sendo uma frase dita pelo próprio Cristo, poderia, com justa razão, ser tomada como a “verdadeira” família cristã.
Uma família cristã sem “papai, mamãe, titia/ cachorro, gato e galinha”, uma família cujo amor corresponderia ao ideal de Toni Negri, para quem “o amor não pode ser algo que se fecha no casal ou na família; deve abrir-se para comunidades mais vastas”. Uma família, portanto, que não se restringe aos laços de parentesco, à consangüinidade.
O problema é que a tal família burguesa tornou-se um modelo tão amplamente adotado que, aos olhos de muitos, pode parecer a única forma aceitável de constituir uma família “decente”. É a esta visão de mundo que o filósofo Gianni Vatimo denomina de “ditadura do heterossexual e monogâmico”. Tal modelo de família não é defendida intransigentemente pelos cristãos em geral, mas sobretudo por movimentos tradicionalistas reacionários como o Tradição, Família e Propriedade e também por certos grupos de fanáticos neopentecostais, por exemplo.
Mas a tradição popular contém elementos que vão ao encontro deste modelo, como por exemplo, quando hipervaloriza negativamente termos como puta, viado e corno, que, em conjunto, compõe a tríade perfeita dos termos preconceituosos que sustenta a ditadura do heterossexual e monogâmico.
Puta é um termo amplamente utilizado para a mulher promíscua e não somente para as profissionais do sexo (eufemismo moderno para puta). E vejam, puta e não puto, afinal o segundo termo tem um peso incomensuravelmente menor do que o primeiro, sugerindo uma concepção segundo a qual a promiscuidade masculina é amplamente tolerável (muitas vezes até desejável para muitos orgulhosos pais e mães de garanhõezinhos!!)
Viado, bicha, baitola, queima-rosca, boiola e todo um rosário de termos ofensivos, são utilizados para constranger não somente os indivíduos que se envolvem em relações homoafetivas, mas até mesmo homens delicados ou “afeminados”. O caso mais rumoroso dos tempos recentes envolve a hostilidade da própria torcida contra o jogador são-paulino Rycharlison.
E a obsessiva atenção dada pela sociedade brasileira à infidelidade feminina, diuturnamente cultivada pelas velhas e manjadas tramas novelescas, é uma patologia mental das mais sérias. É quase lícito ao homem brasileiro vingar-se da infidelidade feminina, enquanto a quase inexistência do termo “corna” sugere que o inverso, ou seja, ser vítima de infidelidade masculina não constitui motivo para constrangimento.
Foi em prol de um amor desmesurado e livre e contra este modelo machista preconceituoso que se insurgiram Sartre e Simone, este amor que constituiu o ato mais revolucionário de suas vidas. E o ato mais difícil, não somente por buscar romper com o conservadorismo de grande parte da sociedade, mas porque atos de liberdade pressupõe enorme responsabilidade. “Estamos condenados a liberdade”, diria Sartre.
É óbvio que o velho “João Paulo” foi também um importante escritor, roteirista, filósofo, militante. Recusou o Prêmio Nobel de Literatura em 1964 e, muito embora desprezasse o conceito de “grande homem”, foi aclamado por multidões durante grande parte da vida. E depois de morto, afinal, até mesmo seu funeral mobilizou uma verdadeira multidão de admiradores de todo o mundo.
Sartre notabilizou-se por seu existencialismo "ateu". Segundo este, Deus não existe, Deus é. Segundo sua concepção, existir, ao contrário de ser, pressupõe transformação. E Deus é justo, bom, onipotente, etc. Em contraposição, arriscaria dizer que para Deus, certamente, Sartre existiu. E sua existência, seu amor livre possibilitaram à sociedade de seu tempo, importantes e radicais transformações.
Reavivou, na sociedade européia o desejo pelo amor livre, por relações afetivas livres da possessividade (que profanam o “amor de todos os mortais”), o direito ao prazer sexual para além da mera promiscuidade, da banalização das relações sociais.
Vive l’amour! Vive la liberté! Valeu, Sartre! Trinta anos após a sua morte, aqui, nos longínquos rincões da Amazônia Brasileira, seu brado também foi ouvido!
(*) É professor da UFAM, cronista do cotidiano absurdo ou do absurdo do cotidiano e amante das ciências, das artes e do mundo comunal (yudioda@yahoo.com.br).
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