quinta-feira, 5 de março de 2009

CULTURA SENTIMENTAL DO SÃO RAIMUNDO DE MANAUS

Khemerson Macedo*

O bairro de São Raimundo possui uma história intrínseca e sentimental com o Rio Negro. Datado de 1949, a partir de loteamento capitaneado pela Diocese, o lugar aos poucos foi sendo construído mediante a ocupação de suas margens e igarapé, bem como a construção de palafitas e flutuantes. Desta forma, as atividades econômicas, sociais e desportivas desenvolvidas pelos moradores refletiam simbolicamente na relação homem/ natureza, a partir de um modo de vida tipicamente ribeirinho.

Registra-se, em obras de memorialistas como Áureo Nonato, aquele cotidiano ao redor do igarapé, batizado com o nome do bairro. Ali, se concentravam as principais famílias do bairro, tais como os Normandos, Queiroz, Bessa, dentre outros. Na memória dos antigos, destacam-se a presença maciça dos bucheiros, pessoas cujo ofício era vender as vísceras do gado abatido pelo curro, ou matadouro, local. O matadouro, aliás, era o principal centro comercial do bairro, convergindo ao redor de si também os marchantes, pessoas que compravam gado em outras regiões do Amazonas e que abasteciam a cidade a partir do igarapé de São Raimundo.

Além destes ofícios, lembram-se também da presença constante dos catraieiros que, a partir do porto das catraias, localizado ao lado da feira comercial do bairro (onde hoje se localiza a Escola Olavo Bilac), transportava seus moradores à outra margem, num fluxo constante de pessoas numa época em que a ponte do São Raimundo sequer era imaginada pelos políticos locais.

A memória social dos moradores de São Raimundo preserva, também, o cotidiano do igarapé em tempos de vazante. Neste momento, a nostalgia toma conta daquela gente, ao lembrarem-se de uma época que as praias de areia branca possibilitavam inúmeras distrações, tais como os desportos e os folguedos populares organizados pela paróquia local. Era a época também em que os marchantes embarcavam em comitiva, transportando o gado até o curro. Nestes momentos, o imaginário local lembra os momentos em que o gado desgarrava pelas praias, mobilizando os comunitários na caça aos animais, criando momentos de pura diversão. A vazante era o período também em que se cessava a travessia de catraias, oficio temporário do período de cheia.

Em terra firme, destaque para os clubes locais. Compartilhando o mesmo espaço físico, São Raimundo e Sulamérica disputavam torcedores e dividiam atenções entre os moradores. Separados um do outro por um grande quintal (onde hoje se localiza a praça Pe. Francisco), os dois clubes protagonizavam os bailes do bairro, além dos festejos em datas comemorativas diversas. Até o dia em que o São Raimundo migrou para a Avenida Rio Branco, na gestão de Ismael Benigno.

No espaço referente ao igarapé, se antigamente viam-se aos montes os bucheiros, catraieiros, marchantes, lavadeiras e pescadores interagindo no mesmo espaço, hoje em dia o lugar passou a ser ocupado por outros ofícios, condizente com a nova realidade. Nas lembranças dos moradores antigos, fica o sentimento de nostalgia em relação a água e como hoje esta se encontra poluída, devido a ação predatória do homem. Mesmo assim, o sentimento de pertencimento que os comunitários têm sobre o lugar demonstra a forte cultura sentimental envolvendo os atores locais.

Histórias como essas estão mais vivas do que nunca na memória e no sentimento dos moradores do São Raimundo. Nesta perspectiva, o IPHAN, sob a consultoria do professor e antropólogo Ademir Ramos, realiza desde fevereiro, trabalho de campo referente ao projeto Paisagens Culturais do Rio Negro, visando estruturar inventário sobre a área, a partir da cultura sentimental destes comunitários. Através desse inventário antropológico, planeja-se produzir documentário com famílias tradicionais e personagens populares do bairro, visando valorizar e resgatar a importância histórica do São Raimundo como um dos mais populares de Manaus.

*Cordenador de Pesquisa do NCPAM

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