segunda-feira, 9 de março de 2009

A MISÉRIA E A OBSCENIDADE

Jean Baudrillard*

É óbvio que cena e obsceno não tem a mesma etimologia, mas é grande a tentação de aproximá-los. Pois, a partir do momento em que há cena, há olhar e distância, jogo e alteridade. O espetáculo tem ligação com a cena. Em compensação, quando se está na obscenidade, não há mais cena, jogo, o distanciamento do olhar se extingue. Por exemplo, o pornográfico: é claro que aí temos o corpo por inteiro, realizado. Talvez a definição de obscenidade seja, pois, a de tornar real, alguma coisa que até então era metafórica ou tinha uma dimensão metafórica.

A sexualidade – tal como a sedução – tem uma dimensão metafórica. Na obscenidade, os corpos, os órgãos sexuais, o ato sexual, não são mais “postos em cena”, e sim, grosseira e imediatamente, dados a ver, isto é, a devorar, são absorvidos e reabsorvidos no mesmo ato. É um acting out (representação ou atuação) total de coisas que, em princípio, seriam objeto de uma dramaturgia, de uma cena, de um jogo entre parceiros. Aí, não há jogo algum. Não há dialética, nem distanciamento, apenas uma colusão total dos elementos.

O que vale para os corpos é igualmente válido para a mediatização de um acontecimento, para a informação. Quando as coisas se tornam demasiadamente reais, quando elas são dadas imediatamente, quando existem como realidade concreta, quando estamos neste curto-circuito que faz com que as coisas se tornem cada vez mais próximas, estamos na obscuridade…

Régis Debray fez, a partir deste ponto de vista, uma interessante crítica da sociedade do espetáculo: segundo ele, nós não estamos, em absoluto, em uma sociedade que nos afastaria das coisas, em que seríamos alienados devido à nossa separação delas… Nossa maldição é, ao contrário, a de estarmos superaproximados delas, de tudo ser imediatamente existente como realidade concreta, tanto nós como elas. E este mundo excessivamente real é obsceno.

Em tal mundo, há uma comunicação, e sim uma contaminação de tipo virótico, tudo passa de um para o outro de maneira imediata. A palavra promiscuidade diz a mesma coisa: tudo aí está de forma imediata, sem distância, sem encanto. E sem um verdadeiro prazer.

São estes os dois extremos: a obscenidade e a sedução, como o demonstra a arte, que é um dos terrenos da sedução. Há, por um lado, uma arte capaz de inventar uma outra cena, que não a real, uma outra regra do jogo e, por outro lado, uma arte realista, que caiu em uma espécie de obscenidade, tornando-se descritiva, objetiva ou simples reflexo da decomposição – da fractalização do mundo.

Há escala na obscenidade: apresentar o corpo nu pode ser já grosseiramente obsceno, mas apresentá-lo descarnado, esfolado, esquelético (faminto, em estado de miséria) o é ainda mais. Vemos claramente que hoje em dia toda a problemática critica da mídia gira em torno do limite de tolerância a esse excesso de obscenidade. Se tudo deve ser dito, tudo vai ser dito…

Mas a verdade objetiva é obscena. É bem verdade que, quando nos contam com todos os detalhes as atividades sexuais de Bill Clinton, a obscenidade é de tal forma derrisória, que nos perguntamos se não existe aí uma dimensão irônica.

Essa reversão seria, talvez, o último avatar da sedução, em um mundo em perdição, em obscenidade total: apesar de tudo, não se chega necessariamente a crer nela. A obscenidade, isto é, a visibilidade total das coisas, é, a essa altura, tão insuportável que é preciso aplicar-lhe uma estratégia de ironia para sobreviver. Do contrário, uma tal transparência seria absolutamente assassina.

Entramos, assim, em um antagonismo insolúvel entre o bem e o mal, no qual – com o risco de sermos maniqueístas e de contradizermos todo o nosso humanismo – não há reconciliação possível. É preciso aceitar essa regra do jogo que, se não é um consolo, me parece mais lúcida que pensar em fazer um dia à unidade do mundo, restabelecer o hipotético reino do bem.

É precisamente quando se quer atingir esse bem total que o mal transparece. Por mais paradoxal que seja, não é através dos direitos do homem que se processa hoje, e em nível planetário, a pior das discriminações? Portanto, a busca do bem tem efeitos perversos, e esses efeitos perversos estão sempre do lado do mal. Mas, falar em mal não significa condená-lo: de certo modo, o mal é o fatal – e uma fatalidade pode ser feliz ou infeliz.

*Filósofo francês, pertencente a um seleto grupo de pensadores que se expressam à margem dos sistemas do alarde da mídia. In: Senhas, (Obsceno) 2001.

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