quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A BIBLIOTECA VIVA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Ademir Ramos (*)

A proposta para se construir uma biblioteca viva integrada ao sistema regular de ensino resulta da forma como os homens se apropriam do mundo por meio da leitura. Esse comportamento configura-se como um dos primeiros frente à realidade objetiva das coisas, a transformar os homens em atores ou expectadores independentes da conquista da escrita, especialmente quando se trata do uso do alfabeto enquanto forma editorial moderna. Dessa feita, releva-se o sentido predicado das coisas no mundo da cultura e da sociedade na perspectiva da comunicabilidade. Esse processo caracteriza-se como modo de comunicação decorrente de um fenômeno social determinado pelas diferenças culturais quanto à socialização do conhecimento, da ciência e das formas de saber.

Nesse gradiente relacional mediado pela instituição de ensino, que é um dos lugares privilegiados para produção do conhecimento e da ciência, a biblioteca torna-se viva quando os atores operacionais possibilitam aos usuários meios e modos capazes de religar o aprendiz com o mestre por meio dos livros e ritos culturais celebrados, principalmente, quando se trata de culturas compostas em que:

Uma linguagem assume tanto formas orais, quanto escritas, para todo o povo ou para uma proporção dele. Somos obrigados a categorizar mais e distinguir entre culturas universalmente alfabetizadas, que nós muito facilmente admitimos de modo tácito, mas que são historicamente incomuns, e culturas restritamente alfabetizadas, em que a maior parte das pessoas vive à margem, mas sob o domínio do registro escrito. (Vansina apud Prins in: Burke, 1992, 169).

A prática pedagógica nesse contexto insere-se no universo da interculturalidade, fundamentando-se numa relação dialógica pautada na confiança, autonomia, reciprocidade e honestidade intelectual. Esses valores necessariamente devem amparar a mediação institucional quanto à comunicação e expressão, investindo na formação dos agentes participativo, que atuam no sistema escolar de forma presencial e interativo, comprometendo a todos com a prática do ensino, a pesquisa e a produção do conhecimento enquanto modos de comunicação conjugado com as linguagens da tradição oral e da escrita.

A Biblioteca Viva, enquanto projeto pedagógico, ganha corpo quando os seus atores em rede definem o espaço e os recursos a serem trabalhados, sobretudo, em se tratando da Educação Escolar Indígena promotora de uma escola contextualizada, que respeita os “processos próprios de aprendizagem” de cada povo. A compreensão desse processo não reduz a educação e nem tampouco a prática pedagógica as estruturas da escola, ao contrário amplia sua relação com o mundo na busca “do grande mundo”. Como bem expressou um dos professores indígenas no corpo do Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, quando perguntado sobre o conceito de Geografia:

É o entendimento da aldeia e do mundo. Do nosso mundo e do mundo do branco. É a cidade, o Brasil e os outros países. Geografia é a história do mundo. O mundo é a terra, é a aldeia, o rio. O rio que cai num outro rio, que cai num outro rio, que cai no mar. Geografia é depois do mar. (Brasil apud Ramos, 2007, 125).

Desse modo, a distinção entre as “culturas universalmente alfabetizadas e as restritamente alfabetizadas” torna-se relativa quando constatamos que a comunicação em suas variadas formas tem minimizado tais diferenças entre os povos, em particular quando se sabe que:

Até hoje, muitas pessoas tomam conhecimento das notícias através da leitura de um locutor de televisão. A televisão pode ser menos um rompimento do passado do que geralmente se supõe. Seja como for, para a maioria das pessoas através da maior parte da história, os livros tiveram mais ouvintes que leitores. Foram mais ouvidos do que vistos. (Darnton in: Burk, 1992, 216).

Portanto, a proposta para se construir a Biblioteca Viva como laboratório de um curso de nível superior indígena é factível porque a tradição oral está viva, não só nas comunidades tradicionais, enquanto fonte normativa da história, como também nas sociedades contemporâneas enquanto instrumento de formação e comunicabilidade. Ao recorrer ao uso das Tecnologias de Informação (TI) o curso significa tal como “o rio que cai num outro rio... que cai no mar”, ganhando proporções relativas à prática pedagógica a ser implementada na descoberta do outro e da ciência numa perspectiva das culturas dos povos indígenas e das demais comunidades tradicionais, promovendo encontros de saberes fundamentados no respeito e valorização da tradição oral desses povos, que são os titulares da rica sociobidiversidade Amazônica.

Bibliografia:

BURKE, Peter (Org.) A Escrita da História: nova perspectiva. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Terra à Vista: discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Campinas, SP: editora da Universidade Estadual de Campinas,1990.

HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. A Invenção das Tradições.São Paulo: Paz e Terra, 2006.

RAMOS, José Ademir Gomes (Coord.). Educação Indígena. Manaus: UEA Edições, 2007.

KI-ZERBO, J. (Coord.). História e pré-história da África – Volume I. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1992.

(*) É professor, antropólogo e coordenador geral do NCPAM/UFAM.

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