Ricardo Lima (*)
Muito mais que um filme de ação repleto de incríveis efeitos especiais, Avatar trás uma bela reflexão sobre o choque de culturas decorrente da expansão da ordem social moderna e suas terríveis conseqüências para as sociedades tradicionais.
Passando-se no ano de 2156, o filme tem como pano de fundo a exploração de um planeta chamado Pandora, com incríveis belezas naturais e habitado por um povo chamado de Na’vi — humanóides azuis de membros longos que vivem em harmonia com o seu habitat.
Uma poderosa empresa privada tem a primazia da exploração do território conquistado, que contém um valioso minério. Contudo, a maior reserva já encontrada deste inestimável mineral está localizada exatamente sob o território da comunidade nativa. Assim, é enviado um grupo de cientistas conectados a avatares idênticos aos nativos, artificialmente criados, para interagir com os alienígenas e fazê-los sair pacificamente de suas terras. O problema está no fato de que para os nativos, o local onde vivem possui um valor religioso, pois ali é supostamente a morada da sua deusa, Eywa.
O soldado Jake Sully, designado para acompanhar a equipe de cientistas, perde-se de seu crew durante uma expedição e acaba entrando em contato com os Na’vi. A partir daí ele vai conhecendo o seu modo de vida, o que precisa aprender para viver em comunidade e os rituais de iniciação para tornar-se um guerreiro.
Sully se encanta com os nativos e percebe o niilismo da sua própria vida, como um paraplégico sem qualquer perspectiva no mundo civilizado — ao começa a se questionar se antes sua vida era apenas uma mentira e, agora, diante da simplicidade e beleza da comunidade Na’vi, acredita ter finalmente encontrado a verdade.
Com o roteiro muito similar aos filmes como Dança com Lobos e O Ultimo Samurai, em alguns momentos chega a lembrar Matrix, o longa mostra de maneira extremamente realista o modo de vida do povo de Pandora. Claramente inspirado nos povos tradicionais, mas precisamente nos indígenas americanos, com sua cosmogonia totalmente subordinada as leis da natureza, produzem sem a intenção de gerar excedente; possuem ainda uma organização política dividida entre os guerreiros, o chefe e o líder espiritual (não haveria entre eles a dominação carismática e tradicional, detectada por Florestan Fernandes ao estudar os Tupi?); a diferenciação dos indivíduos ainda é muito tênue, o nível de divisão social do trabalho quase não se faz notar, deixando entrever que entre eles é predominante relações de solidariedade mecânica; entendemos a solidariedade, conceito criado por Emile Durkheim, como o substrato que matem a coesão dos homens na vida social — a solidariedade mecânica ocorreria quando os indivíduos, pouco se diferenciando entre si, com um sistema de crenças e sentimentos comuns são, portanto, ligados diretamente a sociedade, sem qualquer instituição que os intermediasse; neste tipo de solidariedade os indivíduos não se pertencem, eles pertencem a sociedade...
Avatar mostra diversos personagens e seus respectivos olhares para o processo de contato entre humanos os habitantes de Pandora. Como da pesquisadora Grace, um misto de antropóloga e bióloga, que possui um interesse quase que totalmente cientifico pelos nativos. Ao usar avatares para deles se aproximarem, está na verdade usando o clássico método da Observação Participante criado pelo celebre antropólogo Bronisław Kasper Malinowski (1884-1942), que consiste basicamente em ser, sentir e participar das atividades da comunidade como faz o nativo, pois só assim o estudioso poderia chegar o mais perto possível da cultura em questão.
Grace possui uma imagem muito próxima dos primeiros antropólogos do começo do século XX, cientistas que, indo estudar os povos das terras conquistadas do Império, teriam seus trabalhos usados para amansar povos rebelados ou propiciar instrumentos para impedir que novas rebeliões ocorressem. Um dos exemplos mais clássicos de etnografias usadas como instrumentos de políticas imperialistas é Evans Pritchard, que estudou o povo Nuer, do Sudão — atualmente o governo americano tem lançado mão de antropólogos para mediar a relação entre militares e iraquianos. O sociólogo Guerreiro Ramos (1925-1982) explicita bem este caráter escuso da antropologia:
De modo geral, a antropologia européia e norte americana tem sido, em larga margem, uma racionalização ou despimento da espoliação colonial. Este fato marca nitidamente o seu inicio, pois ela começou fazendo dos povos primitivos o seu material de estudo.
Os personagens do Coronel Quaritch e do executivo da empresa, encarnam o arquétipo do militarismo imperialista e da faceta perversa do capitalista que procura a todo custo expandir seus negócios e seus lucros. Preconceituosos e intolerantes para com um povo de uma matriz cultural diferente, apenas enxergam os nativos como um obstáculo aos seus empreendimentos.
A cena mais representativa disso é quando a cientista Grace, argumentando para evitar o desmatamento de uma grande área de mata, diz ao executivo que as mesmas tinham criado uma espécie de conexão neurológica entre elas, como se fossem um grande cérebro, e acaba recebendo como resposta: “O que vocês fumaram para inventar isso? São apenas árvores!”
Quando um ataque de hordas de Na’vi contra as instalações dos humanos torna-se iminente, o Coronel Quaritch, discursando para seus soldados sobre o perigo, usa termos muito semelhantes ao da extrema direita americana na época da invasão do Iraque: “Vamos combater terror contra terror” e no fim de sua fala debocha das crenças nativas.
São seres desnecessários para a historia e para o progresso da humanidade — muito lembrando a célebre obra Fausto, de Goethe. O seu personagem principal, que dá nome ao livro, está pondo em marcha um dos seus maiores empreendimentos e de repente se depara com um empecilho: uma pequena e velha casa está justamente no meio do terreno onde será o erguido o projeto. Fausto, então, visita seus moradores, um casal de velhos chamado Filemo e Báucia, e lhes oferece uma polpuda quantia para comprar a habitação. Os dois anciãos, que tinham naquela velha residência um forte laço afetivo, recusam a oferta.
Fausto, sentindo-se ultrajado, chama Mefistófeles e seus homens e ordena que os velhos sejam removidos o mais rápido possível. Não se importa em saber como será feito, apenas deseja que o “problema” seja resolvido da maneira mais ligeira. No outro dia Mefistófeles retorna, dizendo que a casa foi incendiada e os velhos mortos. Marshall Berman exemplifica muito bem esse tipo de atitude: “Isso é um estilo de maldade caracteristicamente moderno: indireto, impessoal, mediado por complexas organizações e funções institucionais.” Qualquer semelhança entre a as aspas de Berman e as arbitrariedades que a empresa Log-in lançou mão para aprovar o Porto das Lajes não é coincidência...
Os nativos de Pandora são uma ótima representação daquele grupo de pessoas que terão vasta repercussão na ordem social moderna: aquelas que estão no caminho da historia e do progresso. São pessoas completamente obsoletas para este Carro de Jangrená chamado modernidade — estes indivíduos, comunidades, culturas ou sociedades, por sua incapacidade de adequarem-se ao novo sistema, são irremediavelmente descartados.
O sofrimento que os Na’vi experimentam ao verem suas florestas queimadas, seus lares destruídos, sua cultura e tudo naquilo que mais acreditam sendo desmanchado lembra o flagelo que as populações indígenas sofreram, e ainda sofrem, com o processo de contato com os ditos civilizados — resultando num verdadeiro genocídio para os povos tradicionais.
Entretanto, como mostra o filme, mesmo de forma estilizada, o processo de contato não ocorre com a total passividade do lado mais fraco. Muitas vezes a etnia ou a sociedade reagem a tal processo, seja aprendendo os mecanismos da cultura do branco e usando-a como meio de reivindicação por melhores condições ou como protesto por abusos sofridos, como tem ocorrido na atualidade, Marshall Sahlins chama isso de autoconsciência cultural; seja com o embate direto, como em coligações militares como a do Rio Negro liderada pelo grande Ajuricaba nos anos de colonização de Amazônia.
Infelizmente, no filme este processo é enfocado de maneira completamente preconceituosa, colocando um “branco” para organizar o exercito nativo — o diretor roteirista James Cameron deixa escapar a visão que eles são incapazes de se auto-organizarem e lutar pela sua pátria.
Não se sabe se Cameron leu Durkhiem, Malinowski ou Sahlins, mas por detrás das deficiências do roteiro e dos impressionantes efeitos especiais, o filme pode ser uma boa fonte de debates, se assistido com um olhar correto, a respeito do lugar das sociedades tradicionais no mundo moderno, das nefastas conseqüências da situação de contato ou do nosso modelo de civilização — insustentável do ponto de vista ambiental e implacável para com os mais fracos.
(*) É graduando de Ciências Sociais e pesquisador do NCPAM/UFAM.
2 comentários:
Ricardo, parabéns pelo artigo e pela forma como se dá sua estrutura. Queria lembrar (MESMO QUE ISSO SEJA UM SPOILER PARA QUEM AINDA NÃO VIU O FILME!), que o processo de resistência dos nativos é ajudado, no final, pela deidade chamada Eywa, pois, caso contrário, não seria possível a vitória contra os homens. E é aí que reside a única falha substancial do roteiro de Cameron, o que, em termos de cinema, só acontece para possibilitar um Happy End para seus personagens. Concordo com você a respeito do papel desempenhado pela cientista interpretada por Sigourney Weaver, é a clássica figura do antropólogo em campo. No mais, os principais aspectos "pedagógicos" ressaltados por você poderiam, muito bem, fomentar uma discussão entre os internautas desse blog que já assistiram ou ainda vão assistir Avatar, ainda mais se pensarmos que 2010 é o ano internacional da Biodiversidade.
Belo artigo, está de parabéns o autor.
Muito bem elaborado, digno de grande escritor e pensador.
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