sábado, 30 de janeiro de 2010

MANAUS, THIAGO E MILTON


Tenório Telles (*)

Contemplar a face de Manaus é se confrontar com a interrogação de seus olhos: o que fizeram de mim? Na verdade a brutalidade continua: apesar da riqueza gerada, a cidade tem ares de decadência: feia, suja e fedorenta.

A indiferença é um dos piores pecados que alguém pode cometer na vida. Esse é talvez o maior pecado dos habitantes de Manaus. Ao andar pelas ruas da cidade me pergunto como fomos capazes de permitir o vandalismo contra a arquitetura, os igarapés, o porto flutuante e demais espaços de Manaus. O poeta Thiago de Mello, num belo texto escrito para celebrar o livro Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, repisa essa tragédia histórica. Seu poema, Enleiando, é na verdade uma elegia para uma cidade agredida: pendor de alma penada/ da Manaus que se desfez. Se a perdemos para a ambição e crueldade dos homens, podemos tê-la, ainda que brutalizada, nos versos mágicos de Thiago:

Contente de antigo enleio/ meigo e longo como o seio da linha de um banda-de-asa/ releio mais do que leio o Relato (âmago de esteio da casa onde se aconchegam lucidez e devaneio) que/ linguagem sem rodeio, me diz, de maneiro meio, porque Milton ao mundo veio:

para cumprir

(ai de sina ninguém escapa, até mesmo contra o dever)

sua dura
e doce destinação, bem servida
pelo dom e o labor da contação;
é quando a palavra ganha poder de sonho e de ação/ sua leitura desvela o que a pessoa nem sabe que se esconde dentro dela.

Só assim é que Milton pode contar com delicadeza o que ninguém reparou, o que todo mundo olhou mais deixou de ver, e conta com distinção e louvor, sortilégios da invenção, para me dar os segredos, as flores e os dissabores, os escândalos de amores da Manaus que me fez ser.

Das sete vezes que li do começo ao fim
(cada uma assinalada assim////-// no alto da sua página de guarda) do Relato guardo a prenda lilás da flor de um jambeiro, a descoberta da fala, um cabo de narguilê, paina azul de sumaumeira, o calor da caridade, um cenário colorido, cambiante caleidoscópio, vinte oito casas lunares onde habitam o alfabeto e o homem na plenitude, a forma dos caracóis, das goivas e cimitarras, a pérola protegendo os segredos de um decote, o triunfo da transparência, o instante em que Deus criou as orquídeas, algazarra de alimárias, pecos alvos, a vida urdida no Líbano empilhada sobre a sombra do pêndulo do relógio.

Ler é saber: a floresta e a cidade/ duas mentiras separadas pelo rio/ o desespero é um erro/ o paraíso se encontra no dorso dos alazões, nas páginas de algum livro/ te espera por entre os seios de uma mulher.

Quanto encanto, a mão molhada da moça, um monte de figos secos, uma pele furta-cor, cinza encardida, essa coisas...

Mas no furor das golfadas de vento eterno/ no aviso de mil bocas das metáforas, na decisão dos pretéritos mais que perfeitos, na fala dos silêncios/ no rumor noturno por sobre as águas/ no cupim da ostentação num amálgama de enigmas e na perversão urbana,

a contação já revela o pendor de alma penada de Manaus que se desfez.
@Tomo o peso de cada Sílaba e apalpo a música dos fonemas das palavras que escrevi, sem me dar conta

que moldava e modulava a melodia
que tanto e em vão
procurava
desde o sol da minha infância.


Contemplar a face de Manaus é se confrontar com a interrogação de seus olhos: o que fizeram de mim?. Na verdade a brutalidade continua: apesar da riqueza gerada, a cidade tem ares de decadência: feia, suja e fedorenta. E o que restou do seu passado, de sua bela arquitetura – sucumbe ao abandono e os velhos casaões do centro histórico se transformam em prostíbulo e têm sua estrutura alterada ao bel-prazer pelos agenciadores da prostituição.

O que resta é a dor presente nas fachadas e nas paredes destruídas, como expressou o poeta Luiz Bacellar no seu Noturno do bairro dos Tocos: Há tanta angústia antiga em cada prédio!/ Em cada pedra nua e gasta.

@ É amazonense, professor, articulista de A Crítica, escritor e um dos imortais da Academia Amazonense de Letras.

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