quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

MEMÓRIA, HISTÓRIA, TESTEMUNHO

Jeanne Marie Gagnebin (*)

Gostaria de tentar pensar nas questões da memória e da história a partir de alguns conceitos emprestados à filosofia de Walter Benjamin. O pensamento de Benjamin se ateve a questões que ele não resolveu e que ainda são nossas, sendo que uma delas poderia ser definida como o fim da memória e da narração tradicionais. Ela se coloca com força em toda literatura moderna e contemporânea, na reflexão filosófica atual - chamada ou não de "pós-moderna" - sobre o "fim das grandes narrativas", nas discussões históricas e historiográficas de hoje. Esta discussão também sustenta as narrativas nas quais a memória traumática, apesar de tudo, tenta se dizer, narrativas e literatura de testemunho que se tornaram um gênero tristemente recorrente do século XX, em particular (mas não só) no contexto da Shoah.

Especialmente dois ensaios de Benjamin tratam deste tema: Experiência e pobreza, de 1933 e O narrador, escrito entre 1928 e 1935. Eles iniciam com descrições semelhantes para chegar a conclusões que podem parecer opostas, contraditórias até. É a presença desta oposição que nos assinala, justamente, a gravidade da questão colocada.

Ambos ensaios partem daquilo que Benjamin chama de perda ou de declínio da experiência (Verfall der Erfahrung), isto é, da experiência no sentido forte e substancial do termo, que repousa sobre a possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana, tradição retomada e transformada, em cada geração, na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho. A importância desta tradição no sentido concreto de transmissão e de transmissibilidade é ressaltada, em ambos ensaios, pela lenda muito antiga do velho vinhateiro que, no seu leito de morte, confia a seus filhos que um tesouro está escondido no solo do vinhedo. Os filhos cavam, mas não encontram nada. Em compensação, quando chega o outono, suas vindimas se tornam as mais abundantes da região. Os filhos então reconhecem que o pai não lhes legou nenhum tesouro, mas sim uma preciosa experiência, e que sua riqueza lhes advém desta experiência.

Pode-se, naturalmente, interpretar esta fábula como a ilustração da nobreza do trabalho e do esforço. Benjamin não a usa nestes fins moralizantes. Não é o conteúdo da mensagem paterna que importa; aliás, o pai promete um tesouro inexistente e prega uma peça a seus filhos para convencê-los. O que importa é que o pai fala do seu leito de morte e que ele é ouvido, que os filhos respondem a uma palavra transmitida neste limiar, que eles reconhecem, em seus atos, que algo passa de geração para geração, algo maior que as pequenas experiências individuais particulares (Erlebnisse), algo maior que a simples existência individual do pai, um pobre vinhateiro, algo, porém, que é transmitido por ele, algo, portanto, que transcende a vida e a morte particulares, mas nelas se diz, algo que pertence a uma memória viva.

Benjamin não nomeia esta dimensão e esta omissão também é o signo de um grande pudor. Ele insiste, aliás, muito mais na perda da experiência que a fábula encenava. Esta perda acarreta um outro desaparecimento, o das formas tradicionais de narrativa, de narração, que têm sua fonte nesta memória comum e nesta transmissibilidade. As razões desta desaparição provêm de fatores históricos que, segundo Benjamin, culminaram com as atrocidades da Grande Guerra - hoje, sabemos que a Primeira Guerra somente foi o começo deste processo. Os sobreviventes que voltaram das trincheiras, observa Benjamin, voltaram mudos. Por quê? Porque aquilo que vivenciaram não podia mais ser assimilado por palavras.

Neste diagnóstico, Benjamin reúne reflexões oriundas de duas proveniências: uma reflexão sobre o desenvolvimento das forças produtivas e da técnica, em particular sua aceleração ao serviço da organização capitalista da sociedade, e uma reflexão convergente sobre a memória traumática, sobre a experiência do choque (conceito-chave das análises benjaminianas da lírica de Baudelaire), portanto, sobre a impossibilidade para a linguagem e para a memória de assimilar o choque, o trauma diz Freud na mesma época, porque este, por definição, fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simbólico, em particular à linguagem.

É justamente esta impossibilidade de uma resposta simbólica clássica que pode nos ajudar a compreender por que Benjamin desenvolve conseqüências tão diferentes nos dois textos em questão, apesar da identidade do ponto de partida, a constatação da perda da experiência e da narração tradicional.

No curto texto Experiência e pobreza, Benjamin insiste nas mutações que a pobreza, justamente, de experiência, acarreta para as artes contemporâneas. Não se trata mais de ajudar, reconfortar ou consolar os homens pela edificação de uma beleza ilusória. Contra uma estética da harmomonia e do belo, Benjamin defende as provocações das vanguardas. Neste contexto cita o famoso poema de Brecht : "Apague os rastros".

Cito as duas últimas estrofes deste poema: O que você disser, não diga duas vezes. Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-o.Quem não escreveu sua assinatura/ Quem não deixou retrato/ Quem não estava presente/ Quem nada falou/ Como poderão apanhá-lo? Apague os rastros! Cuide, quando pensar em morrer para que não haja sepultura revelando onde jaz. Com uma clara inscrição a lhe denunciar/ E o ano de sua morte a lhe entregar/ Mais uma vez: Apague os rastros!(Assim me foi ensinado.)

A última estrofe, em particular, adquire um peso essencial quando a lemos como um contraponto cruel à fábula do vinhateiro no seu leito de morte. E também quando lembramos que o primeiro sentido da palavra grega "sèma" é, justamente, o de túmulo, de sepultura, deste signo ou deste rastro que os homens inscrevem em memória dos mortos, estes mortos que poeta e historiador, nas palavras de Heródoto, não podem "deixar cair no esquecimento".

É desta tarefa que trata o segundo ensaio de Benjamin, O narrador. Ele formula uma outra exigência; constata igualmente o fim da narração tradicional, mas também esboça como que a idéia de uma outra narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas, portanto uma renovação da problemática da memória.

Podemos reter da figura do narrador um aspecto muito humilde, muito menos triunfante. Ele é, diz Benjamin, a figura secularizada do Justo, esta figura da mística judaica cuja característica mais marcante é o anonimato; o mundo repousa sobre os sete Justos, mas não sabemos quem são eles, talvez eles mesmos o ignorem. O narrador também seria a figura do trapeiro, do Lumpensammler ou do chiffonnier (figura de Baudelaire), do catador de sucata e de lixo, esta personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder, de não deixar nada ser esquecido.

Este narrador sucateiro (o historiador também é um Lumpensammler) não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer. O que são esses elementos de sobra do discurso histórico?

Em primeiro lugar o sofrimento, o sofrimento indizível que a Segunda Guerra devia levar ao seu cume na crueldade dos campos de concentração (que Benjamin, aliás, não conheceu graças ao seu suicídio). Em segundo lugar, aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste, aqueles que desapareceram por tão completo que ninguém se lembra de seu nome. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Esta tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos mesmo - principalmente - quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido.

Gostaria, então, de contar uma terceira história de transmissão e de morte, de memória e de esquecimento. Começamos pela fábula do vinhateiro que falava aos seus filhos do leito de morte. Opusemos-lhe o poema de Brecht - Apague os rastros. A última figura de narração que gostaria de citar é a do sonho de Primo Levi no campo de Auschwitz, sonho sonhado, descobre ele, por quase todos seus companheiros cada noite.

Sonha com a volta para casa, com a felicidade intensa de contar aos seus próximos o horror vivido e passado e, de repente, com a consciência desesperada de que ninguém o escuta, de que os ouvintes levantam e vão embora, indiferentes. Primo Levi pergunta: "Por que o sofrimento de cada dia se traduz, constantemente, em nossos sonhos, na cena sempre repetida da narração que os outros não escutam?" Esta narrativa foi feita, está sendo feita, mas, como o ressaltam todos sobreviventes, por exemplo Primo Levi e Robert Antelme, ela nunca consegue realmente dizer a experiência inenarrável do horror.

No sonho de Primo Levi quem poderia ajudar a manter a memória desta experiência indizível e dos mortos anônimos deveriam ser os ouvintes que, em vez disso e para o desespero do sonhador, vão embora, não querem saber, não querem permitir que esta história, ofegante e sempre ameaçada por sua própria impossibilidade, os alcance, ameace também sua linguagem ainda tranqüila; mas somente assim poderia esta história ser retomada e transmitida em palavras diferentes.

Neste sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o "histor" de Heródoto, o testemunha direto. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezam a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente esta retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.

(*) É professora de filosofia na Pontifícia Universidade Católica PUC/SP e na Unicamp. http://www.comciencia.br/reportagens/memoria/09.shtml

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