Janine Borges Soares (*)
A problemática que envolve a crise educacional moderna parece ser fator importante de causa e conseqüência das dificuldades de muitas famílias. A influência da postura e do discurso dos pais na vida educacional de seus filhos, muitas vezes contraditórios, assume especial relevância neste contexto. Quando os pais transmitem aos seus filhos, especialmente na infância, uma mensagem, mesmo indireta, de desvalorização da educação, dão causa ao desinteresse daqueles quanto aos estudos.
Para Piaget1, A primeira moral da criança é a da obediência e o primeiro critério do bem é durante muito tempo, para os pequenos, a vontade dos pais. De se estimar, pois, que a criança irá perceber a importância dos estudos em sua vida através do respeito às regras estabelecidas pelos pais, concluindo Piaget (1) que A moral da criança fica, com efeito, essencialmente heterônoma, isto é, dependente de uma vontade exterior, que é a dos seres respeitados ou dos pais.
Muitos pais não dão prioridade aos estudos de seus filhos, por falta de consciência de que ter os filhos freqüentando uma escola regularmente é um importante fator de segurança, de dignidade e de esperança para suas famílias, e um caminho para sua emancipação futura. Fora da escola, as crianças e os adolescentes estão desprotegidos das piores formas de exploração do trabalho infantil e da violência física, social, moral, psicológica, privando-se do direito de sonhar e de se preparar para a vida, para o trabalho e para o exercício da cidadania. Além da educação ser garantidora da sobrevivência e da saúde da espécie, é responsável pelo padrão de existência que chamamos de civilização, propiciando ao homem a ciência, a arte, a auto-realização, a fé, a ordem, o desenvolvimento, a prosperidade e a cultura.
Os seres humanos dependem da educação para viver. A educação é instrumento básico para a sobrevivência humana e sua evolução, constituindo um dos maiores dons e deveres da humanidade, sendo que na escola professores e alunos realizam um processo de troca de conhecimento fundamental para o desenvolvimento humano. Para Freire(2), ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. A escola desempenha papel imprescindível neste processo.
O mundo tem sede de ideal e de valores, cabendo à educação a nobre tarefa de despertar em todos esta elevação do pensamento e do espírito, para uma espécie de superação de si mesmo, fomentando a esperança da humanidade.
Trindade(4), ao analisar o vínculo existente entre a relação com o pai e a freqüência à escola, refere que Pais instruídos valorizam mais esta oficialidade, o modelo da aprendizagem formal, ao mesmo tempo em que oferecem mais amparo e estímulo à atividade educadora, sendo também mais exigentes quanto às expectativas de sucesso (…). A falta de motivação de muitos alunos para os estudos parece decorrer do desconhecimento e desorientação deles quanto à importância do ato de freqüentar a escola, e sua repercussão no futuro. Isto tem levado grande parcela de estudantes, quase invariavelmente, a um viver não-criativo, ficando presos a uma realidade pré-estabelecida já experimentada por seus familiares, cujo contexto a educação não está incluída.
Viver submisso a uma realidade externa que impõe apenas adaptação traz um sentido de inutilidade e desvalorização da vida. Para Winnicott (4) É através da apercepção criativa que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. (…) essa teoria inclui a crença de que viver criativamente constitui um estado saudável, e de que a submissão é uma base doentia para a vida.
Embora a consciência popular reconheça a idéia de "ascensão pela educação", Ao mesmo tempo, a instrução é percebida como instrumento de injustiça e de desigualdades sociais, de sorte que o estudo é encarado simultaneamente como direito (ideal) e como impossibilidade (real), sustenta Chaui.(5)
A questão apontada costuma acarretar duas conseqüências funestas para a área da educação infanto-juvenil: o analfabetismo e a evasão escolar, que no futuro habitualmente agravam o desemprego e causam exclusão social. Como os problemas relativos à educação são, em geral, diretamente proporcionais ao desemprego, acabam por atingir frontalmente os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, pois o próprio mercado de trabalho, sobre o qual refletem estas questões, atua como elemento estruturador das desigualdades e da exclusão social, já que o vínculo ao emprego constitui uma das formas de acesso aos benefícios do mundo capitalista.
Os filhos, diante do quadro de desqualificação, desemprego e pobreza dos pais, geralmente visualizam para si próprios um futuro sem perspectivas e, desta forma, sentem-se desestimulados para os estudos. A falta de oportunidades profissionais apropriadas aos interesses e condições de vida e de trabalho de muitas famílias também se identifica como um fator relevante, que culmina na violação do direito constitucional à educação, pois famílias cujos membros enfrentam o desemprego costumam produzir crianças e jovens em regra com seus direitos à educação violados.
Para Zaluar(6), É neste contexto sócio-econômico mais amplo que o consumo de drogas tem crescido grandemente entre as parcelas mais pobres da população no Brasil, as mais afetadas pelas falhas da escola e do mercado de trabalho em lhes dar esperanças e projetos para o futuro.
O debate sobre a situação difícil enfrentada por muitas famílias passa, pois, necessariamente, pela discussão da falência da educação como forma de exercício da cidadania. O problema da escola já não é mais apenas escolar, nem sua solução um desafio para educadores somente, conclui Zaluar (7) . Neste sentido, o art. 227, “caput”, da Constituição Federal, e o art. 4º, “caput”, do Estatuto da Criança e do Adolescente, adotaram a doutrina de proteção integral da ONU (Organização das Nações Unidas), e trouxeram como alteração significativa a idéia de co-responsabilidade entre família, sociedade e Poder Público para assegurar e implementar os direitos da criança e do adolescente, entre eles o direito à educação.
A preocupação maior surge quando se verifica que efetivamente a educação não faz parte da lógica de muitas famílias, já que, via de regra, quando o índice de escolaridade dos pais é insignificante os filhos reproduzem a postura de seus genitores, desinteressando-se pela escola e abandonando os estudos muito cedo. É o modelo familiar que se constrói através de valores transmitidos intra e extrafamiliarmente.
Os pais, com baixa escolaridade e sem discernimento suficiente para convencer seus filhos da importância dos estudos na construção da cidadania, acabam involuntariamente transmitindo a seus descendentes uma idéia de que a educação não é importante.
O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas, diz Winnicott (8). Esta não parece ser a postura de muitas famílias, que demonstram não visualizar de forma clara sua parcela de responsabilidade no insucesso próprio e nas dificuldades dos filhos, especialmente quando se trata de educação.
A lógica que os pais tentam transmitir a seus filhos de que os estudos são "um caminho para uma vida melhor" esbarra usualmente na experiência própria deles de exclusão política e social, que é assistida por todos os membros da família. São as contradições entre o falar e o agir.
Como é moeda corrente nos estudos sobre a escola e a família, uma idéia sempre repetida pelos membros das classes populares, e que em algumas famílias se traduz num projeto educacional para os filhos, é a de que "é preciso estudar para ser alguém na vida". Deixar o anonimato, deixar de ser proletarizado, tornar-se uma pessoa, tal é o sentido implícito desta afirmação. Alguns autores falam de "mito" ou "ilusão" como o efeito dessa crença popular na escola oficial, pois que seus filhos não receberiam o estímulo intelectual proporcionado em casa para que um bom desempenho escolar seja possível, refere Zaluar (9) .
É evidente que ao lado do senso comum repetido pelos pais de que os estudos são fundamentais para "ser alguém na vida", muitos filhos vivenciam a postura de seus familiares e da sociedade de descrença na escola, que deixou de ser vista como geradora de valores sociais e de projetos familiares, funcionando com descrédito.
Pode-se supor que muitas crianças e jovens têm reproduzido um modelo de desinteresse transmitido pelos pais que, devido à sua própria condição de excluído do processo educacional, não conseguem estimular seus filhos para os estudos, mesmo quando repetem aqueles dizeres do senso comum que buscam valorizar a educação como forma de se ‘melhorar de vida’. Este dilema ocorre porque a mensagem recebida e assimilada pelos filhos através da simples observação da vida pregressa de sua família, é no sentido contrário às suas afirmações.
Salienta Winnicott (10), que a imaturidade é um elemento essencial da saúde durante a adolescência. Só existe uma cura para a imaturidade, a passagem do tempo e o crescimento para a maturidade que o tempo pode trazer. Durante esta "travessia" o adolescente assimila as percepções de vida e mundo dos pais, que, seguidamente, parecem estar falhando na questão educacional.
A baixa escolaridade e o insucesso da vida dos pais demonstram possuir uma relação específica com o desinteresse dos filhos pelos estudos. Estes, via de regra, repetem a frustração social dos genitores, em grande parte pela descrença na escola como meio de se obter realização pessoal através do exercício da formação escolar por esforço e mérito próprio. Para Paiva (11), No caso da educação, a idéia de que maior escolaridade assegura empregos e melhores salários convive com a percepção empírica de que isso nem sempre acontece e que as dimensões do pauperismo não permitem crer que a pobreza se combata por via educacional.
Por outro lado, na medida em que a escola, na tentativa de promover padrões morais de comportamento, ensina muitas vezes valores e conteúdos conflitantes com aqueles aprendidos pelos alunos na família e na rua, gera conflitos e desinteresse, pois vários não compreendem a conexão do conteúdo ensinado com a vida lá fora, sua serventia imediata ou utilidade futura perceptível.
Ao analisar o problema do desemprego acaba-se forçosamente retornando novamente à questão da educação, pois ambos configuram, em suas conseqüências, forma de exclusão social e estão diretamente relacionados, pois a crise educacional irrompe na crise do emprego.
Excluem-se da escola os que não conseguem aprender; excluem-se do mercado de trabalho os que não tem capacitação técnica, por que antes não aprenderam a ler, escrever e contar; e excluem-se, finalmente, do exercício da cidadania esses mesmos cidadãos porque não conhecem os valores morais e políticos que fundam a vida de uma sociedade livre, democrática e participativa.
Constata-se, finalmente, que, sendo o mercado de trabalho elemento estruturador das desigualdades e da exclusão social, estão várias famílias sofrendo um doloroso processo de empobrecimento devido à falência da educação.
É possível pensar que a situação de baixa escolaridade, pobreza e desemprego dos pais versus evasão escolar dos filhos versus consciência de todos da importância da educação versus inércia total para mudar a pintura deste quadro traduz implicitamente uma triste desesperança das famílias, sabedoras que são de que suas chances na sociedade moderna são insignificantes.
Diante desta constatação, pode-se visualizar as afirmações de Piaget e de Zaluar, referidas anteriormente. Os filhos aprendem os valores através dos pais, que, desprovidos do estímulo intelectual necessário para realmente compreender o sentido da educação em suas vidas, têm falhado na tarefa de transmitir àqueles uma mensagem de valorização da escola e dos estudos com a necessária autoridade.
Assim, os filhos acabam repetindo a experiência dos pais, deixando transparecer sua insegurança diante do novo. Segundo Chauí (12), poderíamos dizer que a crítica do novo e a defesa do velho se inscreve no espaço definido pela opressão: diante da impotência presente e da falta de esperança num futuro melhor, o passado opera como referencial para o imaginário elaborar a diferença temporal, fazendo do passado um outro tempo possível.
Referência:
1 PIAGET, Jean. Seis Estudos de Psicologia. Rio de Janeiro: Forense, 1967, P.40.
2 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.82.
3 TRINDADE, Jorge. Delinqüência Juvenil – Compêndio Transdisciplinar. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.178.
4 WINNICOTT, D.W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.95.
5 CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987, 170.
6 ZALUAR, Alba. “Introdução: Drogas e Cidadania”. In: ZALUAR, Alba (org) et al. Drogas e Cidadania: repressão ou redução. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.11.
7 ZALUAR, Alba. “Introdução: Exclusão social e violência”. In: ZALUAR, Alba (org) et al. Violência e Educação. São Paulo: Cortez, 1992, p.10.
8 WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989, p.22.
9 ZALUAR, Alba. “Exclusão Social e Violência”. In: Violência e Educação. São Paulo: Cortez, 1992, p.50.
10 WINNICOTT, D. W. Tudo começa em casa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989, p.125.
11 PAIVA, Vanilda. “Violência e Pobreza: a educação dos pobres”. In: ZALUAR, Alba (org) et al. Drogas e Cidadania: repressão ou redução. São Paulo: Brasiliense, 1994, p.78.
13 CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.157.
BIBLIOGRAFIA:
BARRETO, Vicente. “Educação e Violência: reflexões preliminares”. In: ZALUAR, Alba (org) et al. Drogas e Cidadania: repressão ou redução. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 28 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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ZALUAR, Alba. “Introdução: Exclusão social e violência”. In: ZALUAR, Alba (org) et al. Violência e Educação. São Paulo: Cortez, 1992.
ZALUAR, Alba. “Exclusão Social e Violência”. In: Violência e Educação. São Paulo: Cortez
(*) É Promotora de Justiça de Barra do Ribeiro/RS;
Especialista em Infância e Juventude pela Escola Superior do Ministério Público/RS;
Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Texto na íntegra consulte:
http://meb.zarinha.com.br/2010/01/01/da-desesperanca-a-educacao-transformadora/
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(*) É Promotora de Justiça de Barra do Ribeiro/RS;
Especialista em Infância e Juventude pela Escola Superior do Ministério Público/RS;
Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Texto na íntegra consulte:
http://meb.zarinha.com.br/2010/01/01/da-desesperanca-a-educacao-transformadora/
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