quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

ASAS DO DESEJO

Khemerson Macedo (*)

Em 1987, dois anos antes da queda do muro de Berlim, o cineasta alemão Win Wenders apresentou ao mundo no Festival de Cannes, o seu então mais recente trabalho, o filme Asas do Desejo (Der Himmel Über Berlin, no original alemão). Aclamado por público e crítica, o longa-metragem logo se tornou um clássico instantâneo, pois, contando uma narrativa simples, mas de profunda carga filosófica, nos apresentava a dois anjos, Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander), que perambulam pela Berlim pós-guerra, acompanhando o cotidiano daqueles moradores, ouvindo seus pensamentos e testemunhando seus desejos, angústias, medos e lembranças, sempre de forma passiva. Assim, é comum vê-los se recostando sobre as pessoas e reconfortando-as com um leve toque de mãos, uma vez que a invisibilidade e a onipresença dos anjos impossibilitam um contato visual e físico.

Asas do Desejo, neste sentido, nos impressiona já nas primeiras cenas, trazendo Damiel olhando a cidade do alto e, num leve bater de asas, percorre os mais diferentes cenários, passando por pessoas que, envoltas em seus pensamentos, filosofam sobre suas vidas, dando ao anjo uma pequena faceta de suas personalidades.

De uma maneira geral, Asas do Desejo discute a condição humana a partir de pura poesia cinematográfica. As cenas em que Damiel e Cassiel observam a cidade do alto reforçam esta tese. Espalhados por toda a cidade, os anjos tem o costume de anotar tudo o que observam, a partir de tópicos descritivos, já que é o máximo que eles podem conseguir para compreenderem o que ouvem. Ilustra-se esta perspectiva com a adoção, por parte do diretor de fotografia Henri Alekan, de uma fotografia em preto & branco, quando as cenas são baseadas na observação dos anjos (desprovidos de cor, sentimento ou outras manifestações sensoriais), e em colorido intenso, quando a perspectiva muda para os humanos (já que a mortalidade permite a estes experimentarem os mais diferentes tipos de emoções e experiências). Uma idéia mais do que adequada para este tipo de narrativa.

Registra-se outro fato curioso: certo personagem visto na narrativa, um humano, tem o costume de observar todos à sua volta, retratando-os em auto-retratos feitos à lápis. Este detalhe é a pista para uma revelação importante no final do segundo ato (quem já viu o filme sabe de quem estou falando!). É interessante, pra mim, ter prestado atenção neste detalhe somente na segunda visita que fiz ao filme, já que a pista sempre esteve ali, à minha vista!

Este filme, aliás, é rico em nuances. Todos os personagens vistos ao longo da trama têm uma importância fundamental na narrativa, das crianças vistas durante todo o filme, que parecem ser as únicas capazes de ver e interagir com os anjos, talvez pelo fato de compartilharem à mesma curiosidade em relação ao mundo em que habitam (os anjos sentem curiosidade pelos homens e as crianças pelo mundo à sua volta), passando pelo ator americano que está na cidade gravando um filme sobre a Segunda Guerra (Peter Falk interpretando a si mesmo), até o velho narrador que perambula em bibliotecas e ruas ermas, cujos monólogos melancólicos e altamente poéticos nos revela uma subtrama interessante: a da perda da memória e da história, a partir do individualismo crescente dos indivíduos nos tempos modernos, o que representa, no contexto do filme, como a perda dos homens pela própria autenticidade de sua história e ausência de compartilhamento das experiências, retratado neste belíssimo monologo:

“Musa, fale-me sobre o contador de histórias. Nos confins do mundo, para a criança e o ancião. Revele todos através dele. Com o tempo, meus ouvintes tornaram-se meus leitores. Não se sentam mais em círculos, mas sozinhos. E um desconhece o outro. Sou um velho de voz fraca, mas o conto continua brotando do meu interior. A boca, ligeiramente aberta, repete-o com força e clareza. Liturgia que não exige iniciação, para que se entenda o sentido das palavras e frases”.

Ressaltando ainda mais essa incomunicabilidade, Wenders finaliza o monólogo dessa forma: Musa, Musa, fale-me do cantor imortal que, abandonado pelos fãs mortais, perdeu a voz. Como ele passou de anjo da narração a poeta ignorado e zombado no limiar das terras de ninguém.

Uma das coisas mais significativas no roteiro de Wenders, aliás, diz respeito a esta incrível capacidade de seu texto dialogar com diversas vertentes filosóficas, apropriando-se destas para retratar seus personagens e inseri-los num contexto histórico específico. Além do mais, é esta interessante carpintaria dramática que torna a trajetória de Damiel tão complexa. Se no início do filme o vemos como sujeito passivo, logo nos damos conta de como sua passividade dá lugar a uma curiosidade permeada por admiração: se suas visitas freqüentes ao circo Alekan são sinais claros de seu interesse pela trapezista vivida por Soveig Dommartin, esta se dá aos poucos, a partir do interesse gradual do anjo pelos seus números no trapézio, despertando-lhe o interesse para aquele “dom” humano. E o momento em que alguém chama a trapezista de “anjo” (numa evocação ao seu traje de trabalho, adornado com “asas”), provoca um susto em Damiel que, concentrado em suas observações, por uma fração de segundo imagina-se exposto a todos.

Estas experiências tornam a trajetória de Damiel irremediável, a partir do momento em que ele passa a desejar ser um humano, “entrar para a história ao menos para segurar uma maçã”, buscando, com isso, “transformar [sua vida] num olhar profundo, num grito breve, num odor penetrante”. Damiel cria, no decorrer da história, as condições existências necessárias para se tornar um homem, mesmo que sua humanidade lhe custe sua imortalidade. E é interessante pensar, neste sentido, que o “remake” hollywoodiano Cidade dos Anjos tenha reduzido esta complexa história numa obra esteticamente bela, mas sem o apelo filosófico e poético que torna Asas do Desejo uma obra-prima. E se faço esta divagação é porque acho necessária a comparação, só para percebermos o tratamento dado ao mesmo tema por duas escolas cinematográficas tão tradicionais quanto à alemã e a americana.

Voltando à resenha. É no exato momento em que Damiel opta pela mortalidade que o filme tem uma abrupta mudança de ritmo. Se durante os dois primeiros atos observamos a cidade de Berlim sob o prisma dos anjos, a partir de uma montagem contemplativa e cadenciada (e preto & branco, vale lembrar!), é no instante em que Damiel se torna humano que tudo ganha cor e ritmo acelerado. Mais uma vez, a analogia com a ingenuidade e a curiosidade infantil torna-se plausível, pois, tal qual um recém-nascido, Damiel passa a sentir e experimentar coisas que não estava acostumado, e o fato de “estar” no mundo já é, para ele, uma dádiva por si só. E se ser humano o habilitava a estar com a trapezista, Damiel mal pode conter sua excitação ao se deparar com as pequenas coisas do cotidiano. E se antes uma fruta tinha a mesma aparência que uma pedra, por exemplo, são as possibilidades dadas pelos sentidos na identificação de formas, cores e texturas que potencializam ainda mais suas experiências. Damiel, enfim, tornara-se um humano, mas ainda assim, é uma criança compreendendo o mundo.

Asas do Desejo, no entanto, não reduz sua perspectiva somente a este prisma apresentado até aqui. Existe(m) outras(s) leituras(s) tão ou mais interessantes, cujo foco dizem respeito à política, a economia, a geografia e a história. Lembremos que o pano de fundo é a Alemanha do pós-guerra, embora este “pós-guerra” não sugira exatamente a época histórica que se passa a história. Inclino-me a afirmar que Wenders concebeu uma história atemporal, usando cenários reais como locação e pessoas anônimas como personagens, dando autenticidade à narrativa, numa época de profundas mudanças estruturais e econômicas no país (observa-se que o ano de produção e lançamento do filme são 1987, dois anos antes da queda do muro de Berlim). Salientada a geografia particular e evocada o “espírito” e a melancolia do alemão devastado pelas duas guerras mundiais, Wenders conseguiu, acima de tudo, registrar um momento particular de seu país usando a poesia e a filosofia como mote.

Além disso, não há nada mais revelador do que o diálogo de um taxista afirmando que “cada cidadão alemão é como se fosse uma cidade-estado, com suas leis e culturas próprias” (embora este diálogo tenha sido escrito pelo próprio diretor, o que não deixa de ser uma perspicácia interessante).

Este complexo mosaico orquestrado por Win Wenders, portanto, nunca deixa de ser instigante e oportuno. E é interessante perceber como os traumas do povo alemão são captados e expostos diante de nossos olhos, tornando o filme, também, num importante documento histórico. Ouso afirmar que ao lado de Ladrões de Bicicleta (1948), de Vitorio De Sica, e Crônica de um Verão (1960), de Jean Rouch e Edgar Morin, Asas do Desejo compõe um seleto grupo de filmes que, embora usando abordagens cinematográficas por natureza, nunca deixam de representar o retrato histórico de seus respectivos países, na época em que foram produzidos. E se há algo que os une tematicamente é a profunda melancolia de seus personagens, aliados às suas condições materiais e imateriais de existência.

Perdoem-me se fui prolixo em algumas ocasiões, mas resenhar um filme como este representa, para um cinéfilo como eu, uma experiência única de racionalizar um filme que, por mais que chegue a uma conclusão, sinto ainda que falta muito o que dizer sobre ele. É o preço que se paga ao assumir um compromisso de falar sobre um filme tão belo, intrigante, poético e estimulante como Asas do Desejo.

(*) Coordenador de Pesquisa do NCPAM-UFAM.

2 comentários:

Anônimo disse...

Ei cara, me empresta este filme...

Tabita Said disse...

Achei muito boas as indagações que surgiram durante a explicação do que o filme propõe; e a idéia de ter romance, mas sem exageros, me remete ao "recente" Cidade dos Anjos. Acho interessante a comparação entre os dois. E ah! Falar de Alemanha sempre traz curiosidade. Depois de sua 'narrativa' sobre as cores que mudam, de acordo com a visão (de humanos ou anjos), me deu mais vontade ainda de assistir!