sexta-feira, 12 de março de 2010

A BBC BRASIL E O "TEMPO AMAZÔNICO"



O repórter da BBC Brasil Pablo Uchoa saiu de Londres para passar três dias com a tribo dos Suruí, os donos da reserva Sete de Setembro, na divisa de Rondônia com o Mato Grosso.
A viagem faz parte da série Superpotência que investiga o impacto da internet. Em um projeto pioneiro, os indígenas estão usando a internet como meio de auto-afirmação cultural e política, e de ativismo contra o desmatamento da Amazônia, que ameaça a integridade das suas terras.


Acompanhe o diário.

Dia 4: O 'tempo amazônico'

Neidinha, como todo mundo chama Ivaneide Cardozo por aqui, gosta de dizer, sempre, "o tempo amazônico" é diferente.

E eu acho que qualquer um entende o que ela quer dizer com isso, em princípio. Mas só mesmo passando umas poucas e boas para saber, com todas as letras, o que é que ela chama de "tempo amazônico".

Neidinha recorda seu ditado enquanto esperamos que passe a chuva torrencial que começou a cair e não parou mais, deixando pouca opção senão estirar-nos nas redes da varanda da casa do líder Suruí, Almir, na aldeia de Lapetanha, a pouco mais de uma hora de Cacoal.

É uma espécie de pausa forçada no trabalho. Mas contra a força da natureza não há o que fazer.

Lapetanha, a aldeia mais próxima da estrada de asfalto, segue seu ritmo habitual.

Poucas casas de madeira entre as quais se destacam uma ou outra maloca típica, de teto de palha seca. Sou informado de que a maior, que podia receber até 200 pessoas, pegou fogo não muito tempo atrás.

Antigamente, a aldeia se estendia até Cacoal e os índios eram 5 mil, me dizem. O contato com o homem branco, em 1969, dizimou grande parte da etnia, que chegou a ter apenas 250 membros e agora tem 1.350.

Fiz e refiz inúmeras vezes imagens das crianças que brincam na aldeia e dos cães que me olham com cara de bocejo enquanto caminho de lá para cá de tripé na mão. Adiante, uma mulher faz um colar de coquinhos enquanto ferve pupunha e castanha. Mais cedo, antes da chuva, outra lavava roupa em um tanque com uma máquina de lavar do lado.

Demos o azar de desencontrar uns membros da tribo que estão monitorando as florestas da reserva Sete de Setembro usando GPS. Agora, é preciso esperar até amanhã. O tempo amazônico.

Cabe-nos experimentar a vida na aldeia. Jogar conversa fora aqui e ali com os moradores. Os jovens demais não falam português ainda, só tupi mondé; os adolescentes e adultos jovens falam as duas línguas; os mais velhos, sempre falaram só o tupi mondé.

Do nada, a oportunidade para fazer gravações aparece, como quando Arildo, um dos coordenadores de cultura dos Suruí, disse que nos mostraria o centro de cultura do vilarejo, que possui alguns computadores.

Mal ele abriu a sala, um enxame de garotos e garotas de oito ou dez anos voou para os dois computadores nos quais um programa dá informações sobre as aves nativas e reproduz o canto dos pássaros.

Os garotos ainda são muito jovens para receber treinamento em computação, mas demonstram um entusiasmo incrível. Arildo me ajuda com o tupi mondé para conversar com um deles

A aldeia de Lapetanha

Mais tarde, repassando as gravações do dia, divirto-me com a festa de "passarinhos" que ilustra o pano de fundo. Isso foi na "hora do computador", se é que posso falar assim. Mas tudo no seu devido tempo.

Antes, quando o "tempo amazônico" da Neidinha ainda nos "impunha" a contemplação, os passarinhos que povoaram minhas gravações foram outros, os de verdade. Com o microfone em punho para captar sons para um programa de rádio que prometi para o serviço em inglês, me embrenhei no mato e deixei o equipamento "ouvir" os sons da floresta.

Foi uma sinfonia de cantos. Lembrei-me de uma rádio londrina que só toca o som dos passarinhos – a rádio Birdsong, vejam que criativo – e que estourou na audiência, sugerindo o quanto nossa corrida vida moderna sente falta disso no dia-a-dia.

Deixei-me levar pela suavidade dos sons, e se não fosse pela bufada de um cavalo, a coisa mais barulhenta que soou em muitos minutos, teria continuado por outros mais.

E ainda há os que não têm tempo para perceber essas coisas simples da vida. Para esses, uma boa dose de "tempo amazônico", tempo para parar e contemplar a existência, não faria nada mal.

Dia 3: Um líder indígena 'bem na foto'

Almir, o líder dos Suruí, me observa de lá fazendo cara de desconfiança. Posicionei-o para nossa entrevista a alguns metros de distância, o que no plano fechado da minha lente cria um agradável efeito de fundo, e no plano aberto mostra a grama verdinha e uma maloca indígena típica dos Suruí.

Sei que sua declaração é só charme. Ora, se há um povo indígena que percebeu muito bem a utilidade desses pequenos gadgets e faz uso deles de maneira pioneira e criativa, esse povo se chama Suruí. Mostrar isso não é justamente o propósito da minha visita aqui?

"Imagine", respondo. "Nisso sei que quem dá aula são vocês."

Almir me recebeu na sede de sua associação, Metareilá, em Cacoal, com uma apresentação de Powerpoint feita sob medida para o interlocutor que o escuta pela primeira vez. De um laptop pequeninho, que fez o meu trombolho passar vergonha, ele projetou as imagens do desmatamento ao redor da reserva indígena Sete de Setembro na parede de sua sala.

Internet, Picasa, Google Earth, todas essas são ferramentas de que ouvi falar uma porção de vezes conversando sobre os projetos dos Suruí.

E o xodó deles já nem é mais o computador ou o laptop, e sim os telefones que tiram fotos e enviam por internet. Um carregamento desses deve chegar em breve e permitir aos indígenas postar fotos do desmatamento na internet em tempo real, poupando o tempo do download e do envio.

Os Suruí não são os únicos nem os primeiros a utilizar a tecnologia moderna em seu benefício. Há seis anos, editei um programa de TV sobre os Kamayurá, que vivem no Xingu, e entre os diversos personagens havia um que era cinegrafista e contava como essa tecnologia vinha ajudando os indígenas a registrar suas tradições orais.

O que diferencia os Suruí é a maneira criativa e pioneira, para repetir minhas próprias palavras, de integrar estas tecnologias a um plano de desenvolvimento sustentável de longo prazo.

Algo que tem sido creditado à visão de longo alcance de Almir. Curiosamente, o clã dele é responsável, entre o povo Suruí, por tratar dos assuntos ligados à guerra, à diplomacia e ao meio-ambiente. Ao ‘trocar o arco-e-flecha pelo laptop’, ele revolucionou os três campos de uma só vez.

Demonstrou um notável talento político, e se o leitor me perdoa a ousadia, inclusive certa qualidade de estadista. E lá nas prateleiras da Associação Metareilá estão reportagens e reportagens, a grande maioria publicadas em jornais estrangeiros, sobre Almir e a luta ambiental dos Suruí. Inclusive uma edição da revista Época que o coloca entre os cem brasileiros mais influentes do país.

No fim de nossa entrevista, para efeito de making of, Fred, da ONG ACT Brasil, nos sugere que tiremos uma foto conjunta.

"Se até o Príncipe Charles tirou uma foto com o Almir, eu também quero", disse Fred, referindo-se a uma imagem de Almir com o príncipe herdeiro britânico exposta na sala do líder indígena.

Almir, que por acaso deve ter sabido de minhas andanças pelo mundo cobrindo as viagens de outro lider, o presidente Luís Inácio Lula da Silva, não perdeu a piada.

"Então vamos. Se até o Lula tira foto com o Pablo, então eu também quero."

Sei, sei. Pode ter sido só brincadeira, mas a comparação com Lula me deixou com a pulga atrás da orelha. E me diverti pensando que pode ter sido apenas um deslize da modéstia de Almir, tentando esconder ambições maiores.

Fonte: BBC BRASIL


NOTA DA REDAÇÃO: A iniciativa da BBC não é apenas uma pauta a mais a cumprir. O jornalismo eletrônica resgata a unidade homem/meio ambiente/tecnologia, investigando a complexidade da matéria numa perspectiva da dinâmica das culturas. Dessa forma, retoma a discussão quanto à relação homem/meio ambiente, primando pelo equilíbrio entre as forças que se consolidam na educação expressa no processo de aprendizagem dos Suruí, que se apropiaram da Internet para instrumentalizar em favor da proteção do meio ambiente e de sua qualidade de vida. Enquanto os índios Suruí dominam essa ferramenta e estabelecem conectividade com o mundo, no Amazonas os "brancos" aventureiros aliados as corporações irresponsáveis pretendem construir um Terminal Portuário Privado nos arredores do Encontro das Águas, onde nasce o Rio Amazonas em terras brasileiras, alegando que vai oferecer emprego e outras vantagens imediatas aos afoitos oportunistas que buscam "tirar uma lasquinha" do empreendimento bem aos moldes do chamado "jeitinho brasileiro". Aqui, políticos e homens de opinião, salvo alguns, fazem-se de surdos, cegos e mudos para não contrariar a vontade princepesca local. No entanto, a firma participação do Movimento S.O.S. Encontro das Águas tem barrado a volúpia predadora desses malfeitores que de forma neocolonial pretendem transformar todos os recursos naturais em mercadorias sem repor ao meio ambiente a sustentabilidade necessária para o equilíbrio dos ecossistemas. Pensamos que é hora da BBC e outras Agências de Notícias estabelecerem parcerias com a nossa Universidade Federal do Amazonas e investigarem o que de fato mobiliza os interesses dessas corporações privadas que em conluio com o Estado buscam depredar para lucrar colocando-se na contramão da história e da governança dos fóruns das Nações Civilizadas que tudo fazem para resgatar o equilíbrio do planeta.

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