domingo, 21 de março de 2010

PROJETO PORTO DAS LAJES: CRIME LESA-AMAZÔNIA

Geraldo Mendes dos Santos (*)

Uma das mais coerentes e poéticas expressões sobre a Amazônia é que ela é a terra das águas. Coerente, porque é nesta região que ocorre a maior bacia hidrográfica do planeta. Poética, porque combina de maneira harmoniosa dois elementos historicamente considerados distintos, isto é, a terra e a água. A terra sempre foi tida como exemplo de solidez, lugar seguro e morada dos homens; talvez por isso, seja o nome do nosso planeta. A água sempre foi considerada como exemplo de liquidez, lugar instável, substrato de seivas e humores. Apesar da aparente fragilidade, ela ocupa cerca de ¾ da superfície da terra e representa 75% a 90% da biomassa dos corpos das plantas e animais. Pela sua grandeza e importância, bem que nosso planeta deveria ter o nome de Água.

Os corpos d´água da Amazônia são extraordinariamente diversos em forma, tamanho, volume, profundidade, cores e características geoquímicas. Suas variadas fisionomias são agrupadas, de modo bastante simplificado com o nome de igarapés, lagos, lagoas, paranás, furos, rios e rias. Esses elementos formam uma extensa rede hidrográfica e quando vistos em mapas, numa escala relativamente grande, mais parecem veias, um verdadeiro sistema circulatório, mantenedor da fauna, flora, ecossistemas e clima. Pela sua onipresença, os igarapés sempre se constituíram em vias naturais de locomoção e transporte, daí que o significado desse nome, em língua indígena é caminho da canoa. Além disso, o sistema aquático é fonte de alimento, trabalho, emprego, lazer e renda para milhares de pessoas de todas as idades, lugares, níveis sociais e estilos de vida. Pode-se dizer que a água é a estrutura determinante da paisagem amazônica.

A grandeza dos corpos d´água da Amazônia é de tal magnitude que dificilmente alguém escapa ao êxtase ou no mínimo a uma difusa sensação de insignificância diante da vastidão de rios como o Amazonas, Solimões, Tapajós e tantos outros ou diante das imponentes cachoeiras que urram docemente no meio da floresta. No entanto, dentre tantos cenários espetaculares da paisagem amazônica, um se destaca, a ponto de ser considerado ícone da região: o encontro das águas dos rios Solimões e Negro, um extraordinário matiz de cores entra a barrenta e a preta. Este cenário está localizado exatamente em frente e logo abaixo da cidade de Manaus, sendo aí um ponto de parada quase obrigatória para turistas do mundo inteiro. Vir a Manaus, sem ver este cenário, é como ir ao Rio de Janeiro e deixar de ver a estátua do Cristo Redentor ou ir a Roma e deixar de ver a residência do Papa. O Encontro das Águas é um estupendo monumento natural, síntese das maravilhas amazônicas e por isso deve ser visto e considerado em pé de igualdade com os demais monumentos do mundo.

Paradoxalmente, enquanto para outros povos os monumentos são motivo de orgulho, zelo e guarda permanente, esse lugar paradisíaco da Amazônia parece menosprezado pela população e abandonado pelo poder público. Exemplo disso é a enorme quantidade de lixo que se encontra boiando na superfície das águas, os galpões e estaleiros decadentes ou abandonados na margem dos rios e agora, um famigerado projeto de instalação neste local de um grandioso terminal hidroviário, denominado Porto das Lajes e destinado basicamente a abastecer navios e a armazenar containeres. O projeto está sendo defendido a unhas e dentes pelos proponentes e parece ter o apoio dos governantes, tomando-se por base o silêncio ou manifestação lacônica desses a respeito do assunto. Há fortes indicações que o projeto conta com esparsos defensores, os quais costumam portar panfletos ou camisetas com o logotipo da empresa responsável ou mesmo bradar (talvez a mando ou mediante promessas) de que o empreendimento será a redenção econômica do modesto bairro do Aleixo. A mais nefasta manifestação, no entanto, parece partir da empresa que elaborou o EIA-RIMA e não deixou registrada uma frase sequer sobre o valor da paisagem, a importância estratégica do encontro das águas para a economia dos amazonenses (e não apenas para os moradores do Aleixo) e a indicação de um local alternativo para instalação desse projeto.

Evidente que Manaus e toda a Amazônia carece de um terminal portuário à altura das demandas e do potencial da região, mas induzir sua construção pela força do dinheiro e de interesses subalternos é no mínimo uma desconsideração à sociedade amazonense como um todo, uma demonstração de insensatez, arrogância e usura. Mais que isso: uma violação da beleza do Encontro das Águas, um atentado à vocação turística do local, uma incoerência ao discurso da sustentabilidade e um crime de lesa-Amazônia.

(*) Pesquisador doutor do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) em biologia e Filosofia.

Nota da Redação: Esclarecemos que a foto em tela releva o valor estético e pasagístico do Encontro das Águas. Consumado a construção do Terminal Portuário das Lajes toda essa economia fenomenal estará ameaçada e reduzida aos interesses privatista, contrariando o valor republicano do bem comum. A foto postada é de inteira responsabilidade do editor do NCPAM. O debate está posto e o foco é o Tombamento do Encontro das Águas. Participe manifestando suas considerações, o que não permitido é o silêncio omisso e irresponsável dos formuladores de políticas públicas do Estado e outros que vivem na aba palaciana.

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