segunda-feira, 6 de setembro de 2010

ARTICULAR TRANSFORMAÇÃO E CONSERVAÇÃO

A semana da pátria é um campo apropriado para se discutir o Brasil. Vários seminários, conferências, simpósios já foram feitos nessa direção. Em 2001, o professor Marco Aurélio Garcia, então Secretário Municipal da Cultura de São Paulo, compartilhou esta responsabilidade com Carlos Nelson Coutinho, Fábio Konder Comparato, Chico de Oliveira, Octávio Ianni e outros reconhecidos intelectuais da cultura nacional. O tema é recorrente com propósito de se formular novas políticas na perspectiva de se garantir um Brasil justo socialmente sem as amarras do neoliberalismo e o fingimento dos burocratas que se recusam a escutar o grito do povo. Cfr. Lua Nova: Revista de Cultura e Política. no.54, São Paulo, 2001.

Marco Aurélio Garcia

O tipo de discussão que estamos tendo aqui coloca uma das questões centrais do pensar o Brasil e que apareceu aqui sobre vários registros, todos eles apontando para o mesmo fenômeno. Chamemo-lo de uma tendência a articular a transformação com a conservação. Eu veria dois problemas para discussão. Primeiro, sem negar que isso se constitua numa especificidade brasileira, gostaria de pensar essa a especificidade um pouco além do que habitualmente é pensada, para evitar o truísmo de dizer que todos os casos nacionais são específicos. Quero questionar a tese de que essa tendência da transição por cima seja uma especificidade tão pronunciadamente brasileira, ou da via prussiana, ou daquilo que foi contabilizado de maneira geral como revolução passiva. Porque é possível que alguns desses conceitos, que são muito ricos e que nos permitem pensar mediações históricas, sejam às vezes tributários de uma certa visão linear de história. Fiquei muito sensibilizado para esse tipo de questão ao ler o livro de Arno Mayer, A força da tradição, no qual ele se propõe algo interessante, que é fazer uma espécie de história da Europa do século 19 me diante uma "interpretação marxista de cima para baixo". Nisso ele privilegia concretamente a "simbiose ativa" entre a burguesia e o antigo regime. Diz ele que essa simbiose ativa faz com que o antigo regime não apareça no século 19 até 1914, e mesmo depois de 14, exclusivamente como uma espécie de sobrevivência, mas que ele produz sobre a burguesia um processo de cooptação e transformação.

A burguesia pensada como uma classe, a burguesia emergente, carente de valores, uma burguesia "protonacional", como ele diz. E ele vai ancorar essa análise toda numa exuberante demonstração de dados sobre a economia, sobre a sociedade, sobre a política, sobre a cultura. Quando li isso - e é um modelo que ele aplica com diversidade, na França menos, na Rússia obviamente mais, na Alemanha bastante, na Inglaterra um pouco menos, mas enfim, em todos esses países teria havido esse processo - eu fiquei pensando um pouco nas vicissitudes históricas que o nosso país enfrentou. Em que medida, efetivamente, essa transformação/conservação não é tanto um dualismo quanto algo tão articulado que se transforma quase que em algo congênito ao nosso processo histórico.

Isso, a meu juízo, relativiza alguns conceitos - como os enunciados por Carlos Nelson, de oriente/ocidente, a de sociedades gelatinosas - que têm força descritiva, mas que perdem um pouco da sua consistência. Pensando não como cientista social e político, que não sou, mas como historiador, em alguns casos essas interpretações são tributárias de uma avaliação historiográfica equivocada, por sua vez também determinada por uma certa concepção evolucionista da história.

Não sei se podemos atribuir um caráter tão gelatinoso à sociedade russa, que no espaço de 12 anos realizou três movimentos sociais absolutamente extraordinários, dos quais saiu, inclusive, uma grande transformação no século 20. Será que ela não é gelatinosa do ponto de vista dos conceitos ocidentais? E por outro lado, sociedades bem pouco gelatinosas foram muito mais submetidas a esse processo de transformação/conservação. Pensemos o que foi a Inglaterra do século 19, ou mesmo do século 18, sem com isso que eu esteja aqui desqualificando concretamente os processos de transformação social que ocorreram nesse país; porque é evidente que nos processos de democratização pelos quais esses países passaram estão fortemente as marcas das classes trabalhadoras, inclusive as marcas que surgem nas derrotas.

É necessário pensar a estrutura de classe no Brasil, as mudanças brutais pelas quais a sociedade brasileira está passando. Quando vejo a análises antigas da sociedade brasileira eu muitas vezes me pergunto se nós não estamos pensando o Brasil com uma grade conceitual inadequada. Digo isso porque em todas as intervenções houve uma saudável invocação dos momentos nos quais os intelectuais se debruçaram sobre o país. Enfatizou-se muito os anos 30, mas eu lembraria que na transição da sociedade imperial escravocrata para a transição do Brasil republicano, quando também havia questões importantes em jogo, nós tivemos grandes intelectuais. Um deles foi citado aqui, Euclydes da Cunha, e outro, que era um homem conservador mas que produziu num determinado momento um pensamento extremamente relevante sobre o problema da desigualdade no Brasil, que é Joaquim Nabuco no seu livro sobre o abolicionismo. Depois nós temos os anos 30 e temos um outro período sobre o qual pouco se falou e que me parece relevante. Trata-se do período que antecede o golpe de Estado, os anos 50 e anos 60, onde de uma certa maneira o modelo de desenvolvimento encontrou seus limites e muitos intelectuais tentaram pensá-lo: Celso Furtado, Raymundo Faoro (talvez porque fosse um marginal naquele momento) e, sem dúvida nenhuma, o ISEB, com todo os seus problemas, e a escola sociológica de São Paulo, está aqui o Octávio Ianni como um exemplo claro de uma reflexão que se fez sobre os limites que o capitalismo brasileiro enfrentava naquele momento e sobre as alternativas que se abriam.

Eu não estou muito preocupado nas respostas que foram dadas, algumas até hoje têm enorme pertinência. Estou mais interessado em saber as perguntas que foram colocadas, e essas de uma maneira geral tinham uma importância muito grande.

Qual é o drama que nós vivemos? Em todos esses momentos a que aludi havia movimentos sociais importantes, esse pensamento ele não se deu no vazio. O dado novo é que a partir do final dos anos 70, nos 80 e nos 90 nós tivemos uma mobilização sem precedentes da sociedade brasileira, houve um gigantesco movimento social, composto de uma miríade de movimentos sociais visíveis, invisíveis, e que colocavam con cretamente em questão o modelo que se esgotara no final dos 70 e no começo dos 80. Mas, a meu juízo, o pensamento não acompanhou o movimento social. A despeito de obras importantes não se produziu uma reflexão à altura, não houve um movimento com a força comparável a ou tros momentos da nossa história. Isso a meu juízo é interessante de examinar, conjuntamente com essa reflexão sobre o pensamento.

Não há pensamento importante se ele não reflete a realidade, e se ele não reflete também sobre os outros pensamentos que foram feitos sobre a realidade. Ele tem que realizar esse duplo movimento, de reflexão sobre a realidade e de reflexão crítica sobre seus antecedentes. Se nós vamos realizar isso, valeria a pena tentar recuperar a agenda do pensamento brasileiro. Eu chegaria a uma conclusão interessante: comparado com os momentos luminares do pensamento social brasileiro no passado, talvez nunca as três grandes questões da agenda, tenham sido colocadas de forma tão equilibrada como hoje estão. Essas três questões viajam junto com a evolução do capitalismo, e apareceram pela primeira vez na história com uma força enorme em 1848, na Europa: a questão social, que correspondia justamente ao impacto que o capitalismo produzia na destruição da sociedade tradicional, na organização da sociedade de classes, no surgimento de uma burguesia, de um proletariado; a questão democrática, na medida em que a Revolução Francesa havia produzido paradigmas que a Restauração não tinha conseguido destruir mas tinha conseguido inibir nem o liberalismo conseguia atualizar; e a questão nacional, que para alguns países não era uma questão fundamental mas para outros, por exemplo para a Itália e para a Alemanha, era essencial.

E a questão nacional é não só o problema do lugar de um país no mundo, mas é também a forma pela qual esse país se constitui, o tema da federação. Na Alemanha e na Itália era isso, Alemanha menos pois não havia o problema da dominação externa que havia na Itália, mas em ambas havia o problema da constituição de um Estado, da natureza que teria esse Estado do ponto de vista da articulação das partes que o iriam compor.

Essas questões elas estão, de certa maneira, presentes na nossa discussão. A questão social está presente por que? Porque ela vinha se arrastando, ela foi de uma certa maneira subsumida no período desenvolvimentista, e ela depois apareceu no facilitário neo-liberal como solúvel pelo mercado, mas agravou-se. Hoje ele aponta, concretamente, para um tema que não pode ser desconsiderado, que é o do modelo econômico.

A última vertente neoliberal consiste exatamente em dizer que não, o modelo é esse mesmo e o social será resolvido através do compensatório, das medidas de políticas compensatórias. É claro que medidas compensatórias devem ser adotadas para enfrentar emergências. Mas como se compatibiliza efetivamente um modelo que, de modo diferente ao neoliberal ou do nacional-desenvolvimentista, coloca concretamente o crescimento com distribuição? Um velho tema, sobre o qual se escreveu muito e se resolveu pouco.

Em segundo lugar, sustento que tivemos um avanço maior do que nunca no tema democrático. Não é de se subestimar o fato de que o Brasil vive há 17 anos com sistema de eleições, digamos que isso não é condição suficiente mas é uma condição necessária e não desprezível. Ao mesmo tempo, neste período, foram suscitados outros temas importantes. A questão dos direitos humanos, por exemplo, nunca teve a relevância que passou a ter hoje. A noção mesmo de cidadania, que todos aqueles que tinham formação marxista deixavam, de uma certa forma, nas mãos do liberalismo, foi resubstantivada nos debates atuais. Os temas sociais e os temas democráticos, ainda que sem necessariamente apontar para um novo modelo econômico, ganharam uma importância extremamente forte nos anos 80 e nos anos 90.

O grande problema é que o neoliberalismo foi tardio no Brasil - e foi tardio porque a sociedade resistiu, não porque chegou tarde. Ele ficou à porta esperando concretamente e foi uma derrota do embate de classes que permitiu, efetivamente, a sua implementação. Isso fez com que a discussão sobre a questão nacional fosse postergada, especialmente no que diz respeito à questão nacional entendida como lugar do Brasil no mundo.

A questão é: estaremos num novo momento de pensar o Brasil? Os demiurgos estarão de volta, e que desafios que se colocam para eles? Evidentemente não sucumbirei ao facilitário dizendo que os demiurgos até agora pensaram o Brasil, trata-se de transformá-lo.

Nenhum comentário: