sábado, 18 de setembro de 2010

IGARAPÉ

Ivo de Aguiar (*)

No igarapé da minha infância, andorinhas e carás conviviam harmoniosamente com as palmeiras de buritis, tucumãs e açaís. Os raios de sol, para invadir as águas, pediam licença às folhas. Misturavam-se a elas, produzindo verde ouro, multiplicando suas cores ao tocar o doce de água corrente e fria. A impressão que tinha era a de que as cores originavam-se dessa mistura de fogo e água.

Nesse igarapé, mergulhavam todas as minhas brincadeiras de menino pobre. Exceto a bola de meia, o pião de madeira e o papagaio de papel, que ficavam à espreita, na margem, esperando que eu me saciasse, bebendo em cada mergulho, uma vontade de mergulhar outra vez. Perdia-me, propositalmente, naquele labirinto líquido, nadando em um vai e vem incansável, seguido por honestas gargalhadas que ora ouvia, ora dava.

Esse igarapé se perdeu no tempo. Jamais imaginaria retomá-lo, não fossem as crianças que vi próxima à Manaus Moderna, na Cachoeirinha. Elas colocaram a carcaça de uma velha geladeira na horizontal, e encheram-na com água, improvisando uma banheira. A nascente da água que a enchia era uma torneira de metal, e a água percorria seu caminho, guiada por uma mangueira de borracha. No lugar dos buritizeiros, açaizeiros e tucumanzeiros brotavam gramíneas rasteiras, esforçando-se por honrar o verde de seus antepassados, reforçando a suspeita de que na ausência das árvores, o sol se derrama em luz sombria e incolor.

Os carros substituíam as andorinhas, cantando buzinas e motores nervosos, voando em alta velocidade sobre o asfalto.

Alheias às minhas lembranças, a meninada divertia-se.

A pouco mais de cem metros dali, o igarapé, que um dia foi meu parque de diversões, agoniza. Transformou-se em enorme esgoto, fétido, a céu aberto, coletando diuturna e incansavelmente os dejetos das casas e empresas que o circundam. Nem carás, nem peixe algum se arrisca a tocar-lhe as águas. Nenhum olhinho infantil admira-lhe os reflexos do sol na água.

É de cortar o coração o que fizeram com o igarapé da cachoeirinha.

Mas essas crianças, ao criarem seu próprio igarapé com a carcaça de uma geladeira, também seus sorrisos, recriaram um pedacinho do meu igarapé. Em sua inocência, nem desconfiam que um dia, também terão muito para recordar.

(*) É Administrador, Professor e Estudante de Jornalismo da UFAM
ivodeaguiar@hotmail.com

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