sexta-feira, 24 de setembro de 2010

O RABO DO OLHO


Ivo de Aguiar (*)

D. Delzuíla, 88 anos, sobe a ladeira. As pernas já não lhe obedecem ao comando, teimam, parecem ter vontade própria. Há nos pesados passos um íntimo desejo de imobilidade. Os pés se arrastam pelo asfalto, protegidos por uma rasteira sandália de dedos. Em 1952, ano em que chegou a Manaus, vinda de Tefé, enfrentaria essa subida sem alterar o fôlego. À época, levava uma dupla vida de dona de casa, trabalhando como doméstica. Criou os filhos criando os filhos dos outros, deixando muita saudade pelos lares por onde passou... lavou e cozinhou. Hoje, apesar de locomover-se com o auxílio de outros, conserva no rosto uma alegria cheia de irreverência e otimismo. Esse bom humor talvez seja o segredo de sua vitalidade, ou vice-versa.

Eu a encontrei por acaso, em frente ao Campus da UFAM. Seguíamos na mesma direção e de imediato, vendo-a caminhar com extrema dificuldade, comecei a pedir carona para ela. No entanto, amparada pela neta que a acompanhava, D. Delzuíla não parava de caminhar, dizendo ser inútil gesticular para os veículos, insinuando não existir solidariedade sobre quatro rodas, e que o melhor seria seguir devagar, pois sua casa ficava a poucos metros.

Conhecendo a inclinação da Rua Paraguaçu se saberá que para um jovem ela é um salto, mas para quem acaricia a 90ª primavera, é como se fosse a reta final de uma maratona.

Alguém pode até insinuar que essa caminhada faria bem à sua saúde. Porém, naquela manhã, decidi que ela mereceria uma carona e, à revelia, acenei para os carros. Depois de algumas frustradas tentativas, um deles, dirigido por uma jovem transbordando gentileza pelos olhos, parou. Avó e neta seguiram ladeira acima.

Acompanhei a subida do automóvel até vê-lo, a distância, entregar sua ilustre passageira ao seu destino. Apressei os passos e cheguei a tempo de encontrá-la no portão de casa. Quando me viu, a simpática velhinha foi logo me segredando que somente ao agradecer a motorista percebeu que a mesma não podia andar, segundo ela, a coitada, era paralítica.

Não, D. Delzuíla! Os verdadeiros paralíticos foram aqueles que não lhe deram carona. Insensíveis criaturas, aparentemente saudáveis, mas incapazes de mexerem braços e pernas para ajudarem o próximo. Houve até quem não mexesse nem mesmo a cabeça, preferindo ver a pequena odisséia de D. Delzuíla, com o rabo do olho.

(*) É Administrador, Professor e Estudante de Jornalismo da UFAM

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