sábado, 25 de setembro de 2010

A REINVENÇÃO DA POLÍTICA

Ricardo Lima (*)

Um dos temas mais debatidos pela sociologia contemporânea é a dicotomia entre modernidade e pós-modernidade. Para os que defendem a dialética entre moderno e pós-moderno, como Edgar Morin e Stuart Hall, a prova de sua existência estaria na emergência de novos paradigmas científicos, formas de sociabilidade e estruturas politicas em contraposição ás antigas e rígidas formações sociais que outrora dominaram o imaginário do século XX.

Entretanto, autores como Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash, no livro Modernização Reflexiva: politica, tradição e estética na ordem social moderna, a oposição entre modernidade e pós-modernidade torna-se inócua ao não explicar os mecanismos que regem as transformações sociais que o novo século faz emergir. Não se trata de sair da modernidade para entrar em algo completamente novo, mas de penetrarmos numa época em que a era moderna torna-se mais radical, fenômeno que os autores chamam de Modernização Reflexiva.

O fim do século XX coincidiu com o fim da modernidade industrial e das suas rígidas estruturas que a sustentavam. As conquistas, preceitos e ambições preconizadas pela modernidade começam de fato a se consolidarem em todas as partes do globo; é também a época em que a globalização, outrora capitaneada pelo ocidente, começa a escapar de suas mãos e ter a sua liderança disputada por outras potencias como Índia e China ou Brasil; são os tempos de reorganização de poder no mundo; da queda da família nuclear; do esfacelamento das relações de gênero; do aparecimento de novas vertentes culturais; do aumento da autoconsciência cultural dos povos tradicionais; da ascensão de novos grupos que almejam o reconhecimento perante as instituições do estado e da sociedade civil; do fim da supremacia dos especialistas e dos cientistas sobre o futuro do mundo e do inicio de uma era de incertezas, onde toda catástrofe é reduzida ao nível da estatística; da queda do modo de produção industrial e do aparecimento de novas formas de produção dentro do sistema capitalista; da completa reformulação das estruturas politicas e do surgimento de novos esquemas de organização da sociedade. Ditos em outras palavras, a modernidade chega a uma etapa onde a liquidez de suas estruturas permite uma mudança e reformulação interrupta em escalas nunca vistas antes.

Para o sociólogo alemão Ulrich Beck, uma das áreas mais privilegiadas para a observação do fenômeno da reflexividade está nas novas formas de organização dos grupos e das novas tarefas que partidos políticos e instituições públicas recebem na alta modernidade. Beck chama o fenômeno de subpolitica, que para ele significa o retorno dos indivíduos a sociedade. As instituições que compõe o aparato estatal, ao longo dos tempos, tornaram-se completamente irreais perante as novas demandas que a sociedade civil foi adquirindo — as instituições ficaram reféns de seu atraso e, por isso, obsoletas. O individuo começa a tomar conta do Estado e dominar as arenas de discussões públicas.

Na época da modernidade industrial, as entidades tradicionais como partidos políticos, sindicatos e outras agremiações mantinham o monopólio da esfera pública. Agora, outros agentes tomam a frente e influenciam cada vez mais os processos de decisão dos velhos e desgastados agentes políticos. Uma auto-organização da sociedade começa a se tornar mais patente; são associações de moradores, organizações de trabalhadores rurais e urbanos, grupos em defesa dos homossexuais ou de outras questões de gênero, enfim, todos estes grupos que, na ebulição sem fim e caótica que caracteriza as lutas pela hegemonia no tecido social da modernidade reflexiva, influenciam a politica tradicional, propondo novas pautas para discussão muito antes dos partidos políticos tomarem consciência dos novos problemas.

O fenômeno social mais assombroso e surpreendente — e talvez o menos compreendido — da década de 1980 foi o inesperado renascimento de uma subjetividade politica, dentro e fora das instituições. Neste sentido, não é exagero dizer que os grupos de iniciativa do cidadão tomaram poder politicamente. Foram eles que colocaram em debate a questão de um mundo em perigo, contra a resistência dos partidos estabelecidos. (Pg. 30)

Os temas do futuro e que hoje estão em voga, como o perigo de uma catástrofe global ou a propagação da militância em prol dos direitos humanos e das minorias, sejam de mulheres, gays ou negros, foram colocados na boca de todo homem médio não pelo Estado, pelos políticos ou pelos homens de negócios, foram postos na agenda de discussões por indivíduos e por grupos da sociedade civil, em contraposição aquilo que Beck chama de “ignorância institucionalizada” de partidos políticos tanto de esquerda quanto de direita.

Numa sociedade onde tudo esta sendo constantemente contestado por uma variedade de grupos de natureza e objetivos muitas vezes completamente divergentes, a sociedade perde o seu caráter legitimador, ou seja, o Estado, os partidos, os sindicatos, a família patriarcal ou nuclear, a moral, a igreja, todos prescindem de referencial. A sociedade desgarra-se de seu consenso, suas estruturas ficam mais frágeis e, portanto, mais sujeitas ao processo de contestação/mudança.

Abaixo e por trás das fachadas da velha ordem industrial, que as vezes ainda esta brilhantemente polida, estão ocorrendo mudanças radicais e novos pontos de partida, de modo não completamente inconsciente, mas também não completamente consciente e de uma forma dirigida. Mais parecem uma coletividade cega, sem uma bengala ou um cão, mas com um faro para o que é pessoalmente correto e importante (…) Esta revolução tipo centopeia esta em andamento. Está expressa no ruído de fundo das polêmicas em todos os níveis e em todas as questões e grupos de discussão, no fato, por exemplo, de nada mais passar em brancas nuvens; tudo deve ser inspecionado, seccionado em pequenos pedaços, discutido e debatido incansavelmente (…) Estas são as dores do parto de uma sociedade de ação nova, uma sociedade de auto criação, que deve inventar tudo, mas ainda não sabe como, com quem fazê-lo e com quem absolutamente não fazê-lo.(Pg 34)

O processo de diferenciação, especialização e dinamismo que a sociedade alcançou em condições de modernidade reflexiva, não pode mais ser compreendida pelos velhos conceitos de um liberalismo tacanho advogado por uma direita anacrônica, e nem por um engessado marxismo representado por uma esquerda incapaz de ver as reais possibilidades que se abrem nesta fermentação social que ocorre no coração do “substrato oculto da modernidade”.

Estamos assistindo, além disso, a uma individualização dos interesses e dos conflitos sem significar, contudo, desengajamento politico:
Surge um engajamento múltiplo contraditório, que mistura e combina os polos clássicos da politica de forma que, se pensarmos nas coisas em relação a sua conclusão lógica, todo mundo pensa e age como um direitista ou um esquerdista, de maneira radical ou conservadora, democrática ou não democraticamente, tudo ao mesmo tempo. Todos são pessimistas, pacifistas, idealistas e ativistas em aspectos parciais do seu ser. Entretanto, isso só significa que as clarezas atuais da politica — direita e esquerda, conservador e socialista, retraimento e participação — não são mais corretas e efetivas. (Pg. 33)

Subpolitica, portanto, significa o retraimento do politica convencional e a abertura das portas do debate e de decisão dos politicas públicas para grupos e indivíduos que até então não tinham qualquer influência na construção do poder. Significa que os centros convencionais de decisão malograram e o núcleo legitimador da sociedade esfacelou-se em milhares de outros núcleos diferentes que debatem-se pela hegemonia na esfera de decisão mobilizando os recursos do estado uns contra os outros. A questão é como e quando qual grupo pode tomar e se aproveitar da maquina pública.

Isso ocorre não somente na confrontação das instituições e dos grupos de cidadãos, mas também nos conflitos da politica nacional e local, entre uma administração com preocupações ecológicas e a velha administração industrial, e assim por diante. Nenhum lado toma seu partido, nem os opositores do poder nem o próprio poder. (pg36)

Esta nova revolução esta em curso, o século XXI esta levando a um novo patamar as conquistas da modernidade, seja radicalizando suas antigas aspirações ou simplesmente criando outras completamente novas. O que vemos é uma autocritica radical, uma verdadeira auto destruição criativa não apenas nas esferas de poder mas em todo o tecido social.A velha formula do iluminismo, defendida por conservadores e pelas velhas potencias do império já caiu por terra. Não é possível apenas uma modernidade, a modernidade industrial, muitas outras são possíveis. Essa é a resposta, segundo Ulrich Beck, da modernização reflexiva.

(*) É graduando de ciências sociais da UFAM.

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