domingo, 12 de setembro de 2010

TEMPO-ESPAÇO E MEMÓRIA: BELLE-ÉPOQUE NA AMAZÔNIA

Orlando SAMPAIO SILVA (*)

A Região Amazônica também viveu sua “belle-époque”. Vivenciou, sim; é indiscutível (!) e inesquecível! É indiscutível? Não. Todos os fatos históricos podem e devem ser discutidos a luz da razão, das fontes e dos indícios, da memória, se possível, dos testemunhos. Mas, é impossível ela ser esquecida.

Estávamos em plenos meados do Século XIX. Na Europa ocorriam muitos extraordinários e marcantes fatos urbanísticos, administrativos, econômicos, tecnológicos, científicos, artísticos, enfim, culturais e sociais. A Revolução Industrial se encontrava no centro de toda essa efervescência. O capitalismo procurava dar saltos em sua ânsia expansionista, construtivista/desconstrutivista e de lucro, na Europa e nos Estados Unidos.

Grandes escritores, como Balzac, na “Comédia Humana”, Flaubert, Zola, Hugo, Dumas e logo Proust, Joyce e Kafka, entre outros, fizeram, então, a crítica das sociedades de seu tempo, uns românticos, outros realistas, naturalistas, modernistas, sendo Kafka kafkiano... O jovem Marx lançou o Manifesto Comunista e, com Engels, os dois pensadores intuíram sua teoria analítico-crítica do capitalismo, o marxismo. O evolucionismo biológico de Darwin abalou convicções arraigadas sobre a origem do homem e das espécies em geral. Nietzsche surpreendeu o mundo com sua filosofia, que exibiu o homem sem máscara, “ecce homo”, o homem em sua “vontade de poder”.

Os artistas plásticos expressionistas e impressionistas criaram as bases da revolução estética modernista dos cubistas, dos abstracionistas, dos surrealistas, dos dadaístas, dos futuristas, dos fauvistas etc., rompendo cânones artísticos estabelecidos ao longo dos séculos. Logo, Freud mergulhou na alma humana, no misterioso universo onírico, no mundo das neuroses, instituindo a psicanálise. Rambaud e Verleine criaram seus versos simbolistas geniais. Os músicos, como Wagner e Verde, criaram obras operísticas; outros, como Chopin, Debussy, Tchaikowsky, Paganini etc., criaram melodias, concertos, sonatas, prelúdios; os dois Strauss, pai e filho, produziram suas valsas.

Cidades passaram por reformas urbanísticas. Assim foi em Paris na passagem do Século XIX para o XX. Foram construídos grandes teatros operísticos, como l’Opera de Paris e, com protótipo estilístico-arquitetônico semelhante, o Scala de Milão, e casas de óperas em Viena, em Londres, e nas demais cidades da Europa Ocidental e Oriental, como na Rússia, em Moscou e em São Petersburgo; nas metrópoles russas, elas, com as formas estratificadas dessas salas de espetáculo, que era um modelo generalizado, atravessaram o czarismo, o Estado Soviético e a Rússia pós-comunismo.

Na dinâmica das mudanças tecnológicas da revolução industrial, os meios de transportes a vapor, nos continentes e nos oceanos, foram instaurados. Surgiram as estradas de ferro, mas, também, com a vulcanização da borracha, foi inventado o pneumático e as estradas de rodagem passaram a ser trafegadas pelos veículos automotores.

No Mundo Ocidental, a partir das últimas décadas do Século XIX, entrando pelas primeiras do Século XX, foram criadas as condições para a emergência de grande movimentação cultural, social e econômica sob o impulso dos ganhos, do acúmulo e da dinâmica do capital internacional desde a Revolução Industrial. Os povos de alguns países europeus passaram a viver a “Belle-Époque”; o norte-americano degustou o “american dream” e “the american way of life”, provocando em muitos, dos dois lados dos oceanos, a vontade do “fazer a América” segundo aquele “sonho”; período de grande agitação, dinâmico, no qual ocorreram drásticas mudanças nas maneiras de viver de muitas pessoas através das fronteiras e dos mares.

Nos Estados Unidos, na área das artes de espetáculos, os teatros da Broadway se iluminaram e multidões foram às apresentações de música, dança, canto e teatro. Guershwin e Cole Porter brilharam com suas composições. Logo chegaria o cinema. Na Europa, Haussman reconstruiu setores de Paris, a Cidade Luz, que, em grande parte, centralizou todo o processo de mudanças nas artes, e seus salões ficavam repletos de artistas e de deslumbrados com o brilho dos convivas. L’Opera de Paris, o Moulin Rouge, o Lido, o Folies Bergêres, o Olympia trepidavam com os públicos empolgados pelas óperas, pelos espetáculos de ballet, pelo vaudeville, pelo can-can... Em Viena, nos salões, eram dançadas as valsas vienenses de Strauss, e, nos coretos, orquestras tocavam valsas, com o povo esfusiante nas praças.

Nos quiosques, eram expostos à venda os jornais que publicavam artigos de divulgação das novidades artísticas, as críticas, as charges, os anúncios dos espetáculos e exibiam os cartazes alguns dos quais concebidos por artistas, como Toulouse Lautrec. Eram os “anos dourados” da economia capitalista e suas repercussões no urbanismo, na arquitetura e em todas as demais artes plásticas e nas musicais. As cidades se higienizavam em ações dos governos objetivando o combate e a prevenção de epidemias e de doenças transmissíveis (a peste, a varíola, a febre amarela etc.).

E no Brasil? E na Amazônia, que estava acontecendo? Nosso país participava apenas tangencialmente das mudanças tecnológicas e econômicas provocadas pela Revolução Industrial, mas, como um centro exportador de produtos primários para o exterior, encontrava-se afetado por duas áreas de produção, que promoviam o acúmulo de capitais e ampla circulação de dinheiro: na agricultura do Sudoeste, a economia cafeeira, e, na Amazônia, o extrativismo da seringa e demais gomas elásticas. No Rio de Janeiro, o prefeito Pereira Passos realizava reformas modernizadoras da cidade e participava, ao lado de Osvaldo Cruz, da ação preventiva contra doenças transmissíveis com a vacinação ampla e intensiva da população. Parte desta recusava-se deixar vacinar, situação que deu origem a Revolta da Vacina.

Mas, em uma época de expansão de patologias ligadas à pobreza, à deficiência ou insuficiência educativa e à falta de saneamento básico e, conseqüentemente, de higiene em meio aos grandes conglomerados populacionais, Passos levou à frente, com energia, suas medidas urbanizadoras e higienizadoras. Ao mesmo tempo, os novos e grandes Teatros Municipais do Rio de Janeiro e de São Paulo, além de outras salas de espetáculos, apresentavam, seqüentemente, notáveis espetáculos com a participação de artistas nacionais, mas, principalmente, de “estrelas” e “astros” vindos do exterior. Era a “belle-époque” dos grandes centros do mundo transplantada para o Sudoeste do Brasil.

A Amazônia, então, vivia o “período áureo da borracha”, fase da economia regional que criou rendimentos robustos para a burguesia capitalista e provocou intensa circulação de rendas e capitais. A descoberta da vulcanização da seringa, que permitia a produção da borracha pronta para sua transformação em pneumáticos, despertou o mundo capitalista, na América do Norte e na Europa, para a utilidade e a necessidade da borracha da Amazônia, para a fabricação de pneus e promover a circulação da produção industrial nos veículos automotores, que passaram a povoar as rodovias. Só a Amazônia, na América do Sul, podia oferecer essa matéria prima, o “ouro negro” tão necessário e desejado. As regiões amazônicas dos países sul-americanos continham o privilégio de ser os únicos espaços naturais produtores de borracha. Os seringais eram nativos e exclusivos desta parte do planeta.

Foi a riqueza produzida no “período áureo de borracha” que engendrou as condições econômicas para que, na nossa Região Amazônica, também, vicejasse uma “belle-époque” com cores e brilhos europeus. Foram essas circunstâncias da história da economia mundial daquele tempo, que propiciaram aos amazônidas de Belém e de Manaus a extraordinária vivência, e a inusitada e surpreendente possibilidade de ter sua “belle-époque”. Não foi o contrário, ou seja, não foram Eduardo Ribeiro, em Manaus, e Antônio Lemos, em Belém, os germens criadores, os “heróis fundadores” desta fase de brilho urbanístico e cultural das grandes cidades da Amazônia. Eles foram produtos da economia da borracha, foram instrumentos do “período áureo”. Não fossem os dois notáveis administradores maranhenses, outros o fariam.

Grande parte da “força vital” do homem enquanto ser social e das sociedades em seu vitalismo é dinamizada e movida pelas variáveis e pelas circunstâncias e contingências da história e, nesta, da economia política. Não tivesse havido todo este conjunto de condições naturais (da natureza), históricas e econômicas, e, os “anos dourados” do Ocidente pós-Revolução Industrial, marcados pela “belle-époque”, com todas as suas variadas e surpeendentes concretudes, não teriam transcorrido da forma como transcorreram, na Europa e na Norte-América; e o Sudeste do Brasil, e Belém e Manaus não teriam tido suas “belas-épocas” no urbanismo modernizador, embelezador e higienizador e nas artes.

Os povos, nessas cidades, tiveram o privilégio de degustar, de respirar, de desfrutar, de uma forma ou de outra, umas pessoas mais intensamente, outras menos, os ares culturais europeus, nas ruas, nas praças, nos parques, nas casas de espetáculos, nos restaurantes e nos bares, nas residências. As pessoas destas populações urbanas, em geral, foram, sim, ao Teatro da Paz e ao Teatro Amazonas. Essas casas de espetáculos, como todos os grandes teatros do Mundo, têm lugares escalonados, que exprimem bem as divisões dos espectadores de conformidade com seus poderes aquisitivos; entre estes lugares, o “paraíso”, o lugar mais alto nos teatros; nesta parte dos teatros, comparecem os que podem pagar pouco ou muito pouco!

Antônio Lemos e Eduardo Ribeiro foram instrumentos da história. Eles são partes da “belle-époque”, são seus gerentes na Amazônia e não os seus promotores, os seus criadores ou seus fundadores. A riqueza amazônica os “criou” como gestores e a “belle-époque” veio como influência externa, financiada por essa riqueza. Mas, essa fase dinâmica da história das duas cidades também teve outros personagens, no setor privado e nos governos estaduais, participando de sua instauração. Naquele setor, os agentes do “sistema de aviamento”, integrantes da cadeia de elos que ia do capitalista internacional ao seringalista e ao seringueiro produtor (sendo este o explorado), propiciavam condições econômicas internas, na Amazônia, para o advento surpreendente da “belle époque”.

Lemos e Ribeiro foram os administradores que instrumentalizaram as mudanças, a modernização, a higienização sanitária e o embelezamento das duas cidades, de suas praças (República, Batista Campos, Largo do Palácio, etc., em Belém), de seus parques (Bosque Municipal Rodrigues Alves e o Museu Paraense “Emilio Goeldi” - sendo este jardim zoo-botânico e centro de pesquisa científica de iniciativa estadual -, em Belém), das avenidas, inclusive a arborização tão bem concebida, por um lado, adequada e necessária em face do clima e, por outro, de perspicaz visão estético-urbanística; assim como, a abertura de grandes avenidas nas áreas, então, periféricas, dando sentido ao / e orientando o crescimento espacial das cidades (como nos bairros do Marco e da Pedreira, em Belém), e criando melhores condições de habitabilidade para as pessoas de mais baixa renda; em Belém; foram erigidas grandes caixas d’água, na região central, e, os lagos-reservatórios do igarapé Água Preta, aprimorando o abastecimento de água da cidade.

Não se pode esquecer que, neste período, foram instauradas duas entidades cruciais no sistema de transportes de produtos e de passageiros: a Estrada de Ferro de Bragança-EFB, no nordeste do Pará, e, servindo à Amazônia, a “Amazon River Steam Navigation Company Ltda.” e o “Port of Para”, com sedes em Belém, e o porto de Manaus – “Rodway”. As instituições referentes ao transporte fluvial serviram, fundamentalmente, à economia da borracha, propiciando a movimentação dos produtos, a partir dos seringais, no processo de exportação.

Aqueles dois administradores agiram sob o comando de suas personalidades, que eram autoritárias e que tinham colorações militares originárias. Lemos não teve que enfrentar uma “Revolta da Vacina”, como Passos, mas, também, foi impositivo na execução de seu projeto, que ara necessário. Belém e Manaus foram objeto de planos urbanísticos com vistas não apenas ao seu embelezamento e à higienização, mas, também, com o olhar prospectivo para os seus crescimentos espacial e populacional. Esses administradores instauraram projetos reformistas e mudanças em Belém e em Manaus, mas não promoveram a revolução para alterar a estrutura de classes das duas cidades; eles foram agentes da economia capitalista instaurada na Região, no Brasil e no Mundo Ocidental.

(*) É professor, antropólogo e pesquisador da Cultura Amazônica.

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