quarta-feira, 14 de outubro de 2009

DEPOIMENTO CONTRA AS BARRAGENS DO RIO MADEIRA


Marcia Nunes Maciel (*)

A população ribeirinha, indígena, rural e urbana do município de Porto Velho – capital do estado de Rondônia -, dotada de concepções de mundo diferenciadas e específicas, possui em comum o fato de se encontrarem, a partir de 2007 até o presente, atingida pelo Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, que visa à construção de quatro hidrelétricas na Bacia desse Rio, bem como a possibilidade de se ampliar também a navegação fluvial desde os rios Madre de Dios (Peru) e Beni (Bolívia) até o Oceano Atlântico. Os projetos em curso fazem parte do conjunto de proposta para a integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). No entanto, considera-se o Rio Madeira - no âmbito das pesquisas que vimos desenvolvendo junto ao Instituto Madeira Vivo (IMV), “um agregador de experiências capaz de promover a criação de comunidades de vida”, ou seja, de agrupamentos humanos que partilham uma memória coletiva e elementos identitários que favorecem sua organização/mobilização para enfrentar os desafios que vêm à tona com a implantação do complexo hidrelétrico. Por meio da aproximação com os representantes dos Povos do Madeira e com outros representantes de comunidades, com quem tivemos a oportunidade de dialogar, percebe-se em suas atuações o impulso por se dizerem e fazer conhecida as realidades por eles vivenciadas. Nesse impulso, um “eu” instaura uma memória individual, contudo, esse eu não é remetido a um individualismo, mas a uma ação simultânea com o mundo onde está inserido. Essa ação envolve o sujeito e sua vivência social, num jogo de criar e recriar uma imagem simbólica de si e de seu mundo. Diante de tantos testemunhos, escolhemos a narrativa de D. Neuzete, da comunidade Trata-Sério, reconhecida pelos envolvidos contra as Barragens como representante dessa luta no interior da Amazônia. Neuzete Paulo Afonso (49) fala incansavelmente em nome de sua comunidade e das demais que se encontram sob a alça de mira dos grandes projetos no curso do Rio Madeira. Vou começar a contar a minha história de vida pelos meus, tataravôs.., assim começa o depoimento dessa guerreira, que fazemos questão de registrar.


Eles chegaram aqui na Amazônia em 1913 aí já vieram para cá, pra essa região do Madeira. Eram do Nordeste, vieram de lá como Soldado da Borracha. Aí quando chegaram aqui, eles ficaram num lugar chamado Quatro Cachoeiras, daí os meus tataravôs já tinham quatro filhas né! Essas quatro filhas conheceram os caboclos que viviam nesse lugar que meus tataravôs foram morar e com esses caboclos elas se casaram...

Desses quatro casais que se formaram dois forneciam lenha para os navios, e os outros dois eram Soldados da Borracha... Aí veio, veio... Veio subindo, subiu, subiu. Aí foi quando eles chegaram aqui em Porto Velho. Naquele tempo, não existia Santo Antônio (onde está sendo construída a hidrelétrica), só existia a igreja, e ali naquela localidade que o pessoal vendia as mercadorias deles, fazia o ranchinho deles e botavam na canoinha deles e iam embora. As pessoas vinham de suas localidades do outro lado do rio e amarravam sua canoas lá no porto do velho. Nesse porto morava um velhinho que deixava todo mundo atracar a canoinha deles lá pra elas não serem roubadas.

Assim foi indo, aí foi... Foi o tempo que foram morrendo meus tataravôs, aí veio minhas avós e continuaram o mesmo serviço aqui em Porto velho. Eles tinham um engenho. Aí do engenho foram indo, foram indo.., Aí venderam Porto Chuelo, lugar que pertencia a nós da família Paulo Afonso né! E nós subimos para onde estamos agora, no Trata-Sério.

O Porto Chuelo é o lugar onde meus tataravôs e avós estão enterrados. Aí foi o tempo que teve muitos problemas, morreu muita gente da nossa família, devido, a cachoeira mesmo né! Às vezes eles cruzavam com a canoa e, às vezes, escapuliam, aí morriam. Aí foi o tempo que meu tataravô morreu. Aí já era meu avô que tomou conta das coisas, já não meus tataravós. Aí minha avó comprou este terreno lá em cima no “Trata – Sério”.

Nunca dependemos do governo, sempre fomos mantidos por lá mesmo, porque a gente tinha nossa açúcar, nosso feijão, nós tinha tudo o que era necessário para viver. Porque lá dava muita praia antigamente e nós plantava tudo na praia. Hoje não sai mais praia no Rio Madeira, antigamente dava até preguiça de andar, era longe onde terminava a praia, era praia grande! Então nós não comprava feijão, nós não comprava milho, nós não comprava nada, só o sal na cidade.

Foi todo mundo criado e estudado lá, eu e meus primos. É! Foi assim, que foi criada nossa família! E hoje nós nos sentimos ameaçados e nenhum de nós quer sair de lá, porque somos filhos de lá... Né! Nós não temos ambição de ganhar dinheiro, de pensar assim: “È a hidrelétrica vai comprar nossa terra, vamos vender tudo”. Não, não queremos dinheiro! Nós queremos nosso lugar, onde está enterrado nossos entes queridos. Nós não queremos sair de lá! Mas, se for pra sair, porque pelo jeito vamos ter que sair mesmo! Queremos sair com dignidade né! Não do jeito que eles estão fazendo... Eles estão entrando na nossa casa e estão nos ameaçando! Agora nós estamos passando o jeito que o pessoal do Santo Antônio passou.

Só que lá em cima o pessoal é mais pesado... Ninguém não aceita muito quando eles chegam lá querendo fazer a gente vender nosso lugar por qualquer preço! Mas eles estão ameaçando. Eles pegam outras pessoas, por exemplo, ofertam grana pra um compadre meu pra que ele possa fazer minha cabeça né, a minha e de outras pessoas, pra que a gente entre na mesma corja! Mas nós não aceitamos isso! Não é dinheiro que nós queremos. Nós queremos nosso lugar, a nossa paz, porque nós sempre vivemos em paz em nosso lugar... Todo mundo, todos os beradeiros se conhecem e viviam bem em seus lugares...

Não sei o que vai acontecer!... Eu não me vejo sem o meu lugar não! Não me vejo... Tá acontecendo, mas eu não estou acreditando!? Um representante da empresa que está construindo as barragens no Rio Madeira, foi lá e falou na nossa cara que nós vamos sair de lá quando a água já estiver no nosso pescoço!... E pelo jeito que eles estão falando pra nós, nós não vamos ser indenizado não, porque o governo devia ter feito assim: “Vocês vão fazer hidrelétrica? Vão, então senta, conversa com os ribeirinhos, acerta com os ribeirinhos”... Né!

Mas não, eles estão fazendo as barragens, mas não tem negócio de acertar com nenhum ribeirinho não. O pessoal fala na mídia que o povo ribeirinho ta ganhando. É mentira! É mentira! Quem pegou um pouco de dinheiro já está bêbado lá no Cai n’água. São os daqui da Cachoeira do Santo Antônio, que são meus parentes também né! Mas, foi uma mixaria coitados! Eles não estão acostumados a pegar nem R$ 1.000,00 e pegaram uns R$ 5.000,00 e uns R$ 10.000,00, e por aí, isso não compra nem uma chácara. Aí vai ser mais outro mendigo na rua. Do jeito que está acontecendo vão começar a serem mendigos na rua, igual eu estou vendo, é isso que vai acontecer.

Eles dizem: “A Neusinha resolve, tu estudou, nós não estudamos”. Eles sabem que o que for possível fazer eu vou fazer, mas eles não acreditam que o governo vá mandar parar com a construção das barragens. Então, muitas vezes, eu sou cobrada porque o pessoal do Trata-Sério não comparece nas reuniões, mas eu sei por quê eles não comparecem...

Uma coisa que me deu a maior tristeza! Foi duas velhas, que foram parteiras da comunidade, uma delas até fez o meu parto. Elas chegaram comigo e falaram: “Neusinha, você é daqui do Madeira, então, faça alguma coisa por nós!” Aquilo me doeu tanto! Eu não ia mais ligar pra isso, eu tinha pensado: - Já perdeu... Já perdeu né! Mas, aí eu levantei a bandeira! E vou até onde for preciso nessa luta! Eu não tenho medo! Eu estou sendo ameaçada, eu já não estou indo lá pro sítio só, eu tenho que levar alguém comigo. E é assim... Nós não podemos mais pegar mais um peixinho, Não podemos mais plantar, não podemos mais fazer nada!

Nós estamos ilhados. Não podemos mais passar com nosso motor pela cachoeira do Santo Antônio. Estamos sem dinheiro, sem terreno e sem nada! E nós esperamos contar com as poucas entidades que estão nessa luta com a gente, porque o governo não está nos ajudando. O INCRA também não está facilitando. Eu estive lá para resolver um problema de documentação do meu terreno, mas como já fui lá muitas vezes eles não resolveram meu problema. Agora eu estou entrando com uma ação, porque eu estou devendo 372,00 reais para o INCRA, eu não tinha experiência como é que é esse negócio de título. Eu pensei que não era pra pagar o título né! Eu tinha o título e pensava que já estava pago.

Mas, nós não queremos sair de lá do nosso lugar! Nós não queremos dinheiro. Nós queremos o nosso terreno, queremos a nossa vida, o nosso mundo! Nós temos as pessoas mais velhas que são descendentes dos fundadores da comunidade, que continuaram na comunidade fazendo cada um a sua parte, como as duas parteiras que hoje já estão velhas e que vieram falar comigo para eu fazer alguma coisa pra gente não sair do nosso lugar. Elas são muito importantes, porque elas que faziam o parto das mulheres da comunidade, sem precisar de médico da cidade. É assim: -Fulana tá gestante, a parteira vai lá e endireita o menino né! Aí tal dia aponta por lua né. Vê em qual lua a criança vai nascer. O índio não tem diferença nenhuma do ribeirinho, o costume do ribeirinho é o mesmo costume do índio. Aí quando chega a lua que a fulana vai ter neném, aí a parteira vai, endireita o neném, vai e vem, aí dá um chazinho que eu não sei do que que é, porque eu nunca perguntei né! Eu já estou nessa idade, mas, também nunca perguntei. Aí a mulher tem o menino normal. Nunca precisou de maternidade nem de nada!

No tempo que meu tio era vivo ele fazia a festa de São Francisco. No dia de São Francisco, tinha uma festa e aí tinha muitos times de futebol que vinha jogar, vinha de Porto Achuelo, vinha do Remanso Grande, de todo lugar né, aí meu tio matava um boi. Mas, tinha um porém, os times não tinham que ganhar, porque senão, não cruzavam o rio. Por isso, que o nome da comunidade é Trata-Sério, porque o Trata-Sério tinha que ganhar. O pessoal que vinha de fora ganhava comida, ganhava tudo, mas o time do Trata-Sério tinha que ganhar, porque senão, o meu tio não deixava cruzar para o outro lado.

Fiquei triste, no dia que eu fui lá no Santo Antônio e tava o pessoal da Odebrecht lá no Santo Antônio, fazendo entrevista com a Luci que é nossa conhecida de lá, aí ela não podia falar com a gente, aí depois eu dei um jeitinho, e pedi uma água, e ela foi me dar água né! E eu perguntei por que ela não queria falar comigo, aí ela disse que o pessoal das empresas não querem que eles falem com a gente da outra comunidade, com nenhum de nós, porque eles estão fazendo negócio nos terrenos, e não podem falar com a gente porque um ribeirinho pode roubar dinheiro do outro.

Então, eles estão assim. Eles querem mandar na nossa casa. Nós não somos mais donos de nada. Nós éramos donos, nós éramos ribeirinhos, agora nós somos ex-ribeirinhos... E nós não temos apoio do governo e todo mundo está vendo isso! Que o governo não está fazendo nada, eu acho que ele ta querendo deixar a população ribeirinha morrer tudinho, porque onde esse pessoal vai ficar gente?! Fizeram aquela Agrovila pro pessoal que já foi deslocado de seus lugares, mas lá não tem nem terra pro ribeirinho fazer uma roça... Aquilo é uma vila, o que a gente vai fazer lá? O ribeirinho vai comer da onde? Estão dando uma mixaria pra eles por 18 meses, aí acabou esses 18 meses, eles vão fazer o que? É mixaria, tem uns que pegam R$ 100,00. outros pegam R$ 150,00. Só tem duas pessoas que é o Zé Roseno, e parece que agora o compadre Leonel, que vão pegar um dinheirão, mas duas pessoas, nós somos várias pessoas.

Eu sou ribeirinha de pai e mãe e não tenho nada a esconder não! Eu não estou falando mentira, eu estou falando a verdade! Eu nasci e me criei do outro lado rio, do outro lado de Porto Velho, eu tive minha infância muito boa, de brincar com meus primos, a gente pegava passarinho com arapuca, pescava na beira do rio, a gente cortava um pedaço do tronco da bananeira, mais ou menos 2 metros e usava como bóia, e assim eu aprendi a nadar. Ah! Foi uma infância muito boa! Pulava dentro da água, um puxava o outro, carregava melancia correndo e jogava um no outro e comia só o miolo. É foi uma infância gostosa!.... É por isso, que eu não gosto de falar muito, se não eu começo a chorar! Mas eu tenho muita coisa pra falar...

Tudo o que eu tenho é o lugar que minha mãe deixou na comunidade Trata-Sério do outro lado do rio Madeira. Esse Rio pra mim representa tudo! De tarde a gente senta perto do barranco e fica olhando os paus passando, a gente fica contando os paus, ó aquele ali é maior! Aquele ali é menor, entendeu! Aquele serve, aquele não serve. O Rio Madeira pra mim representa tudo! Tudo, tudo, tudo! Eu estou acostumada com a água do Rio Madeira. Quando ele está brabo, quando ele está manso. A gente é acostumado com ele! Apesar que ele já levou muitos da família e muitos amigos da gente né. Mas, a gente se acostumou com ele. Nascemos nele né!

Tem a história de dois tios meu que morreram na Cachoeira do Santo Antônio. Todo mundo fala que eles são encantados. Eles aparecem lá no tombo da cachoeira... Ah! É muita coisa que eu tenho pra contar, muita coisa espírita, sabe! Uma vez eu me alaguei, aí eu pensei que ia morrer né! E pareceu que alguém me puxou e me jogou pra beira do barranco... Muita coisa assim, eu tenho pra contar.!...

Não tem como explicar a nossa comunidade sem contar toda a nossa história e o jeito que a gente vive. Como eu disse no começo minha família é do Nordeste e vieram de Apudí. Meu tataravô e minha tataravó chegaram aqui mesmo em 1913. Aí já vieram para cá, pra essa região do Madeira. E foram subindo, subindo, até o Trata Sério. Esse nome Trata Sério é por causa do que eu já contei. Porque meu tio era ruim, mas, uma ruindade de brincadeira. O pessoal jogava bola, meu tio matava boi, mas, não dava pra quem ganhasse do time dele. Aí o pessoal ia para lá e já sabia... Sabia que ia perder, e se não perdesse, não comia. Não era pouca comida! Já era mais assim, meio que uma combinação! Iam, jogavam... Perdiam e comiam! Perdiam pra poder ter a festa! E por isso, a comunidade é Chamada de Trata-Sério e também porque quando o rio ta cheio a correnteza é muito forte, e fica nas pedras.

Quando nossos tataravôs chegaram era tudo mata, não tinha nada não. Só tinha esse velho que o pessoal colocava a canoa, tudinho lá no porto dele. Foi logo no auge da construção da estrada de ferro. Aí eles vinham trazendo borracha no regatão... Tiravam seringa, vendiam lenha, e assim iam formando seus lugares nesse Alto-Madeira. E nós que somos descendentes deles, continuamos lá no lugar que herdamos, vivendo do nosso jeito, pescando, plantando, sem precisar de ninguém, mas, agora depois de tanto tempo, apesar da nossa história, temos que sair de lá ?

(*) É pós-graduando da UFAM em Sociedade e Cultura na Amazônia, para transcrição da entrevista contou com a ajuda de Elisabeth Pasqualini de Assis Silva. Na integra, o texto chama-se “A vida às margens do Madeira” co-autoria com o mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal de Rondônia, Iremar Antônio Ferreira e Xênia de Castro Barbosa, colaboradora do Instituto Madeira Vivo.

Foto: Marcia Maciel - Conversa ao pé da seringueira.

Um comentário:

Iremar Antonio Ferreira disse...

Grato pela publicação no site...
A autora agora é doutorando de História Social na USP.
Já Dona Neuzete foi expulsa da beira do rio Madeira... a seringueira foi cortada... a mata desmatada... a vida ceifada...

Iremar A. Ferreira e para ler mais no blog http://semfronteirasnomadeira.blogspot.com