terça-feira, 20 de outubro de 2009

DIÁRIO DE CAMPO: DO OUTRO LADO DO MADEIRA


Márcia Nunes Maciel e Iremar Antônio Ferreira *

Na margem esquerda do Rio Madeira do outro lado da cidade de Porto Velho existe várias comunidades atingidas pelas construções das hidrelétricas, algumas já se deslocaram e outras precisarão se deslocar a partir do mês de Agosto de 2009. Dentre essas comunidades há a comunidade Trata-Sério, onde existem algumas famílias que resistiram até quando foi possível a sair de seus lugares, atualmente, depois de terem manifestado suas indignações em vários momentos de articulação política de movimentos sociais e organizações não governamentais, como o encontro sem Fronteira em Janeiro de 2009 em Porto Velho que reuniu vários segmentos sociais, seringueiros, indígenas, ribeirinhos e urbanos e o Fórum Social Mundial em fevereiro de 2009 na cidade de Belém, desejam que seus deslocamentos sejam feitos com dignidade, que suas histórias, suas plantações, seus investimentos, suas vidas construídas em seus lugares, sejam valorizadas.

Estando junto a essas famílias percebemos que elas têm uma concepção de valor para o que deve ser indenizado e as empresas tem outro. Para as comunidades atingidas, o valor é mais que material, é simbólico, diz respeito a suas histórias pessoais e coletivas. Para as empresas o valor é capital e dentro do mercado, tudo que faz parte de uma história e de um mundo específico não tem valor e, por isso, não é considerado como bem a ser indenizado.

Após cumplicidade construída com alguns moradores da comunidade Trata-sério fomos convidados a conhecer o mundo que fazem parte. Em uma das idas a comunidade em março de 2009, período em que as águas do Madeira sobem, nós do IMV, Iremar, Márcia e Cristiane tivemos a oportunidade de conhecer um pouco o ritmo da vida daquele lugar nesse período. D. Neuzete nos mostrou seu espaço vivido e lembrado. Tudo que nos mostrava era dotado de siginificado por ela, as árvores, o igarapé, o rio. Ela nós mostra com orgulho as árvores preservadas por ela que formam um belo bosque e vai até a beira do igarapé Latumia.

Ao chegar à beira do igarapé nos explica que no período das cheias o braço desse igarapé que fica no seu lote é invadido pelas águas do Madeira e proporciona a passagem de peixes tornando esse período farto para alimentação com peixes. Para falar das várias cheias nos mostra as marcas das águas nas arvores, de baixo de um pé de limão às margens do madeira, em frente a sua casa, onde apreciamos a beleza do rio e ouvimos a história da família de D. Neuzete e do lugar que foi herdado de geração a geração. É nesse momento que ela nos conta que seus tataravós vieram do nordeste da cidade de Apudí no período da exploração da borracha na Amazônia. Também fomos até a parte encharcada, lugar em que fica a seringueira que segundo ela, aparece uma velha que protege a seringueira. No caminho ela nos foi mostrando a sepultura de seu tio, e os vários pés de cacau carregados de frutos. Toda essa riqueza cultural não é valorizada nas negociações propostas pelas empresas construtoras das hidrelétricas no rio Madeira.
O processo de discussão sobre os impactos causados pelas hidrelétricas iniciou-se desde o momento que o projeto de construção do complexo hidrelétrico que envolve Santo Antônio, Giral e Nova Ezperanza-Bolíva, e permanece até o momento em que a realidade em que as comunidades atingidas se encontram desestruturadas pelas empresas responsáveis pelo referido empreendimento, mesmo havendo as conversas de conscientização das comunidades, no início das audiências públicas que não davam lugar para manifestação contrárias, ainda voltado para um movimento de resistência as barragens e no decorrer do processo de implantação do empreendimento, apesar do descontentamento das comunidades e das várias ações judiciais que contestavam a construção das barragens embasados nos estudos de impactos. Foram iniciada as construções na cachoeira de Santo Antônio.

Apesar da desestruturação das comunidades, causada pela intervenção da construção das hidrelétricas, essas comunidades conseguem se comunicar entre si e ficam a par da situação que cada uma se encontra, é assim que elas sabem que muitas pessoas já negociaram suas terras estão se sentindo lesadas no processo de negociação, e as que já foram deslocadas, como a Engenho Velho, estão frustradas com a situação em que se encontram, morando em casas pequenas de alvenaria, com espaço reduzido e impróprio para fazer plantações e sem permissão para fazer suas pescarias nas áreas de concentração dos peixes que se encontra na área do canteiro de obras. Diante da situação em que se encontram alguns são silenciados com uma ajuda irrisória para suas sobrevivências, outros por medo de perderem tudo, preferem não se organizar para reivindicarem seus direitos e uma menor parte se movimenta para uma organização coletiva, no intuito de se fortalecerem e não se deixarem enganar no processo de negociação com as empresas.

Dentro desse contexto, é que nós, Iremar, Jorge, Márcia, Vanessa e Cristiane do IMV, Sandra da Rede de Educação Cidadã e Rodrigo do Movimento do Hipe Hop da Floresta, fomos convidados a ir até a comunidade Trata- Sério. Mais que assessoria política, fomos encontrar nossos amigos que conquistamos dentro de um processo de resistência e luta pela vida às margens do Madeira, fomos lá dizer que eles não estão sozinhos.

Sendo assim, no dia 31 de Julho, atravessamos o rio Madeira. Ao chegarmos do outro lado do rio entramos em outro mundo e nos demos conta de coisas que a vida não nos permite ver na cidade como a beleza do céu e a claridade da lua que nos permitiu contemplar o rio, a tranqüilidade da noite só foi interrompida quando fomos até a beira do barranco, e ouvimos ao longe no meio da noite o barulho das máquinas trabalhando na construção da barragem no Santo Antônio, No amanhecer, retornando à beira do barranco nos deparamos com as belezas naturais que surgem a cada período em que as águas do rio vai abaixando, as pedras, os lagos entre as pedras e as praias que começam a aparecer, em outros tempos toda essa riqueza natural era usufruída pelas pessoas que vivem nesses lugares, para o lazer e para o sustento da vida, pois é nesse período que é feito as plantações de várzea. Hoje as pessoas que vivem nesses lugares olham para tudo isso com tristeza, o olhar que direcionam para o rio é de despedida. Conversando com seu Rozimar e D. Edna eles desabafam por terem que abandonar o seu lugar depois de uma vida inteira de investimentos. Seu Rozimar enfatiza que mesmo ainda estando em seu lugar sua vida foi interrompida porque não pode mais fazer plantações e está a espera do que vai ser resolvido com as empresas.

Andando pelo lote de seu Rozimar percebemos a história do lugar nas marcas dos cortes das seringueiras que registram a história dos avós e dos tios do seu Rozimar e D. Neuzete, sua irmã, que tiravam seu sustendo do trabalho com a borracha. Os troncos das mangueiras e das castanheiras nos revelam o tempo que elas foram plantadas no lugar,

Seu Rozimar lamenta sobre as seringueiras e castanheiras que foram plantadas em seu lote não serem incluídas no laudo para indenização e diz estar indignado com a situação de ter que sair de seu lugar, porque nele estão pessoas da sua família sepultadas, a história de três gerações, a relação com seus vizinhos, a vida construída às margens do rio. Ele diz que todos que vivem nas localidades formam uma grande família e lamenta suas separações.

D. Neuzete nos aponta para o rio e nos mostra o lugar que em que há uma queda d'água que aparece no período que o rio fica baixo, o que torna perigosa a navegação nesse lugar, segundo ela esse é um dos motivos que sua comunidade é chamada de Trata-Sério, quando perguntamos o que a comunidade Trata-Sério significa para ela, a emoção transparece em sua face e ela nos responde que significa tudo porque foi lá que ela nasceu e viveu até agora, e é lá que estão sepultados seus parentes. E lembra que alguns mais velhos estão sepultados na primeira localidade que pertenceu a sua família, no Riachuelo, em frente a Santo Antônio, e que esses parentes depois de várias denúncias suas, a empresa que iniciou a construção da hidrelétrica na cachoeira de Santo Antônio, se comprometeu em deslocá-los para o cemitério de Santo Antônio, mas, os que estão sepultados na comunidade Trata-Sério, não têm nada conversado sobre o seu remanejamento para outro cemitério.

D. Edna esposa de seu Rozimar, diz que depois de 19 anos que vive com ele e o ajuda nos investimentos feitos no lote, e junto com ele ter construído uma vida tranqüila do outro lado rio, longe da cidade, não consegue pensar que vai ter que sair de seu lugar e ter que recomeçar a vida em outro, Ela e seu Rozimar dizem que por mais que eles recebam o maior valor em dinheiro pelo lugar onde vivem esse valor não pagará a vida que eles têm a importância que o lugar tem para eles, e diante disso, sabem que a vida deles nunca mais será a mesma.

O sobrinho de Seu Rozimar e D. Neuzete que vive em sua casinha entre a casa de seus tios, está inconformado, porque a vida que ele vinha construindo para ele, sua esposa e sua filha de dois anos de idade lhe foi tirada. Convidado a falar sobre sua experiência de vida ele começa falando que ao sair de Trata-Sério ele vai procurar um lugar bem afastado que para chegar até esse lugar “seja preciso entrar bem para dentro do rio”. Emocionado nós fala que o que mais vai sentir falta é da ida até a casa de seu tio todas as manhãs, onde toma café e começa seu dia.

Entre a noite do dia 31 de julho e o dia 1 de agosto de 2009 estivemos com essas pessoas que foram mencionadas, conversando, compartilhando de suas angústias, e pensando formas de organizações para que diante de tantas perdas, consigam um deslocamento mais humano.

(*) Pesquisadores de campo do Instituto Madeira Vivo (IMV), um dos parceiro do NCPAM.

Fotos: Do Instituto Madeira Vivo.

2 comentários:

Iremar Antonio Ferreira disse...

Parabéns ao Núcleo pelo trabalho informativo e colaborativo nas lutas amazonidas.

Márcia Mura disse...

Depois de um ano de reivindicações a empresa responsável pela Construção das Hidrelétricas no Rio Madeira, não querem reconhecer os direitos das comunidades afetadas.