não têm rima,
nem poesia,
nem ardentes poemas.
Que importa se são
gotas
ou
enchentes!
(Iosif Landau)
*Astrid Lima
São mais de três meses que não abro o computador no meu estúdio. Entro, pego documentos, mexo em gavetas, fixo melhor qualquer poster, deixo dormir um dos gatos sobre a poltrona mas o computador mesmo ligo só em caso de extrema necessidade.
Para trabalhar tenho usado um portátil ruindows ou o outro Mac, o grande, quando devo editar.
São mais de três meses também que parei de observar Manaus.
Comecei simplesmente evitando ler os jornais locais, deixando de acompanhar o - último ? - escândalo de legalidade da cidade onde a sensação é de que os políticos profissionais estão sendo irremediavelmente substituídos por bandidos profissionais. Como no filme os invasores de corpos, o neguinho dorme beato sem imaginar que ao lado está crescendo uma espécie de vagem alienígena. Mais ele dorme e mais vai perdendo si mesmo, transferindo tudo, sabe-se lá por qual processo químico-biológico, para o vegetal que inicia a assumir as feições, É um reflexo perverso de natureza que cresce e se substitui à versão original.
Mas não podia ser por isso que evitava a cidade. Abandonei Manaus 16 anos atrás com a descoberta da “Firma”, ler sobre a promiscuidade entre política e crime não é exatamente uma surpresa ou um bom motivo para desviar o olhar. Pelo contrário.
Comecei a me irritar pensando em todos os compromissos deixados pela metade, os textos não traduzidos, os livros não lidos por causa dessa obstinação sem razão de não querer saber da cidade.
Pensei então que fosse a enchente, o cheiro de água amazônica crescendo irresistível dia após dia, aquela promessa passada de geração em geração nos últimos cinquenta anos finalmente sendo cumprida, a “grande cheia” nutrida no imaginário da cidade realizando-se, alcançando-me, afogando-me, tirando o sossego. E eu distante.
Somente quem cresceu ouvindo certas histórias sabe o que significa. Somente quem aprendeu a nadar durante uma cheia pode entender: são águas diferentes, são trilhas que transportam sussurros entre rios e lagos a temperaturas alternadas. Sonho ainda hoje com um velho canal que terminava no Jacaretinga. Se o sonho é bom ficamos na vala, se é ruim acabamos no lago.
Estar dentro desse fluxo marca a vida para sempre. Não ter vivido a grande cheia também.
Curiosamente nesse mesmo período falei cotidianamente de água, do direito sagrado a ela. Foram meses intensos de vida política e de cidadania como não se via há tempos nessa cidade nas portas de Roma. Durante todas essas semanas o tema da água esteve presente nas primeiras páginas dos jornais, obrigando prefeito e políticos a tratarem do argumento. A população se revoltou com a emergência hídrica, com contas que chegavam depois do vencimento, com aumentos não devidos, com a total indiferença do gestor - a multinacional Acea. Tudo isso culminando com a discussão, que durou 6 horas, de uma petição popular defendida por cidadãos na Câmara dos Vereadores onde se pedia e inserção no estatuto da prefeitura do princípio de que a água é um bem sem valor comercial. Essa discussão obrigou o porta-voz nacional da Itália dos Valores (partido do ex-magistrado Antonio Di Pietro, famoso pelo processo “mãos limpas”) a criticar publicamente o vereador deles por ter votado contra esse principio.
Foram dias intensos, dizia, e ainda assim quando parava, quando voltava para casa ou olhava a estrada pela janela do carro sentia uma vontade de chorar difícil de conter.
Aqueles momentos de tristeza, aquela (essa) saudade densa, a dor aguda de carne viva, era incompreensível para uma velha exilada como eu. Era a água me chamando, me repetia A consciência da cheia bagunçando meu inconsciente. A loucura verde que te alcança em qualquer lugar.
Depois, simplesmente, entendi.
Era outro amigo, um dos últimos de outros tempos, que estava se despedindo.
O Narciso ia embora de fininho - como costumava fazer - mas o seu amor pela vida era aqui, pulsava, ora morno, ora frio, dentro desse fluxo impossível.
(Agora mesmo lembro os conselhos de como colocar as facas na máquina de lavar louça, do passeio em Pompeia, daquele presente especial que cedo ou tarde vou levar de voltar para Manaus, do lugar ao sol, da tarde nos becos e vilas da Aparecida, daquela casinha perfeita, da cadeira de balanço).
Águas.
São histórias.
Caem, molham, quebram no chão.
Havíamos falado alguns dias antes, agora sei, dele ir para o hospital. Comentários sobre o que escrevíamos. Ele comigo, eu com ele. São essas coincidências sempre presentes, essas despedidas ignaras que marcam esses 16 anos. Foi assim com o Nestor, com o Paulinho Graça.
Para quem vive distante a cidade permanece fotografada em um momento específico. O tempo não passa. Nesse espaço cada morte é um luto perene. A ferida não cicatriza porque não experimentamos a ausência dentro da cidade viva. A perda nunca se realiza e, por isso, não pode ser superada.
São memórias dentro de um aquário. Todo mundo está ali dentro. Todos eles estão dentro de mim.
Eu quero te agradecer publicamente, querido amigo. Agradeço por não ter sabido antes. O teu é amor, um amor incrivelmente materno. São os amantes que precisam sempre de provas e demonstrações e gestos dramáticos. Os amigos, aqueles de verdade, precisam somente de um olhar, uma menção, a intenção . Os amigos abraçam, perdoam, esperam e protegem. Os amigos existem para sempre.
( São duas horas da madrugada, o mouse escorrega sob meus dedos e sinto uma levíssima camada de poeira. É a primeira vez que me sento aqui depois da queda do Narciso. Um cálice de vinho branco gelado, a janela aberta, o calor úmido, a noite mordendo essa vida).
Concluo rapidamente porque “escrever não tá fácil” como diz Iosif , outro amigo que está lutando em um CTI no Rio de Janeiro.
Gotas. Às vezes quente, às vezes rima.
A gente se encontra embaixo d’agua Narciso.
*Renomada Escritora Amazonense
Para trabalhar tenho usado um portátil ruindows ou o outro Mac, o grande, quando devo editar.
São mais de três meses também que parei de observar Manaus.
Comecei simplesmente evitando ler os jornais locais, deixando de acompanhar o - último ? - escândalo de legalidade da cidade onde a sensação é de que os políticos profissionais estão sendo irremediavelmente substituídos por bandidos profissionais. Como no filme os invasores de corpos, o neguinho dorme beato sem imaginar que ao lado está crescendo uma espécie de vagem alienígena. Mais ele dorme e mais vai perdendo si mesmo, transferindo tudo, sabe-se lá por qual processo químico-biológico, para o vegetal que inicia a assumir as feições, É um reflexo perverso de natureza que cresce e se substitui à versão original.
Mas não podia ser por isso que evitava a cidade. Abandonei Manaus 16 anos atrás com a descoberta da “Firma”, ler sobre a promiscuidade entre política e crime não é exatamente uma surpresa ou um bom motivo para desviar o olhar. Pelo contrário.
Comecei a me irritar pensando em todos os compromissos deixados pela metade, os textos não traduzidos, os livros não lidos por causa dessa obstinação sem razão de não querer saber da cidade.
Pensei então que fosse a enchente, o cheiro de água amazônica crescendo irresistível dia após dia, aquela promessa passada de geração em geração nos últimos cinquenta anos finalmente sendo cumprida, a “grande cheia” nutrida no imaginário da cidade realizando-se, alcançando-me, afogando-me, tirando o sossego. E eu distante.
Somente quem cresceu ouvindo certas histórias sabe o que significa. Somente quem aprendeu a nadar durante uma cheia pode entender: são águas diferentes, são trilhas que transportam sussurros entre rios e lagos a temperaturas alternadas. Sonho ainda hoje com um velho canal que terminava no Jacaretinga. Se o sonho é bom ficamos na vala, se é ruim acabamos no lago.
Estar dentro desse fluxo marca a vida para sempre. Não ter vivido a grande cheia também.
Curiosamente nesse mesmo período falei cotidianamente de água, do direito sagrado a ela. Foram meses intensos de vida política e de cidadania como não se via há tempos nessa cidade nas portas de Roma. Durante todas essas semanas o tema da água esteve presente nas primeiras páginas dos jornais, obrigando prefeito e políticos a tratarem do argumento. A população se revoltou com a emergência hídrica, com contas que chegavam depois do vencimento, com aumentos não devidos, com a total indiferença do gestor - a multinacional Acea. Tudo isso culminando com a discussão, que durou 6 horas, de uma petição popular defendida por cidadãos na Câmara dos Vereadores onde se pedia e inserção no estatuto da prefeitura do princípio de que a água é um bem sem valor comercial. Essa discussão obrigou o porta-voz nacional da Itália dos Valores (partido do ex-magistrado Antonio Di Pietro, famoso pelo processo “mãos limpas”) a criticar publicamente o vereador deles por ter votado contra esse principio.
Foram dias intensos, dizia, e ainda assim quando parava, quando voltava para casa ou olhava a estrada pela janela do carro sentia uma vontade de chorar difícil de conter.
Aqueles momentos de tristeza, aquela (essa) saudade densa, a dor aguda de carne viva, era incompreensível para uma velha exilada como eu. Era a água me chamando, me repetia A consciência da cheia bagunçando meu inconsciente. A loucura verde que te alcança em qualquer lugar.
Depois, simplesmente, entendi.
Era outro amigo, um dos últimos de outros tempos, que estava se despedindo.
O Narciso ia embora de fininho - como costumava fazer - mas o seu amor pela vida era aqui, pulsava, ora morno, ora frio, dentro desse fluxo impossível.
(Agora mesmo lembro os conselhos de como colocar as facas na máquina de lavar louça, do passeio em Pompeia, daquele presente especial que cedo ou tarde vou levar de voltar para Manaus, do lugar ao sol, da tarde nos becos e vilas da Aparecida, daquela casinha perfeita, da cadeira de balanço).
Águas.
São histórias.
Caem, molham, quebram no chão.
Havíamos falado alguns dias antes, agora sei, dele ir para o hospital. Comentários sobre o que escrevíamos. Ele comigo, eu com ele. São essas coincidências sempre presentes, essas despedidas ignaras que marcam esses 16 anos. Foi assim com o Nestor, com o Paulinho Graça.
Para quem vive distante a cidade permanece fotografada em um momento específico. O tempo não passa. Nesse espaço cada morte é um luto perene. A ferida não cicatriza porque não experimentamos a ausência dentro da cidade viva. A perda nunca se realiza e, por isso, não pode ser superada.
São memórias dentro de um aquário. Todo mundo está ali dentro. Todos eles estão dentro de mim.
Eu quero te agradecer publicamente, querido amigo. Agradeço por não ter sabido antes. O teu é amor, um amor incrivelmente materno. São os amantes que precisam sempre de provas e demonstrações e gestos dramáticos. Os amigos, aqueles de verdade, precisam somente de um olhar, uma menção, a intenção . Os amigos abraçam, perdoam, esperam e protegem. Os amigos existem para sempre.
( São duas horas da madrugada, o mouse escorrega sob meus dedos e sinto uma levíssima camada de poeira. É a primeira vez que me sento aqui depois da queda do Narciso. Um cálice de vinho branco gelado, a janela aberta, o calor úmido, a noite mordendo essa vida).
Concluo rapidamente porque “escrever não tá fácil” como diz Iosif , outro amigo que está lutando em um CTI no Rio de Janeiro.
Gotas. Às vezes quente, às vezes rima.
A gente se encontra embaixo d’agua Narciso.
*Renomada Escritora Amazonense
Fonte: O AVESSO
Um comentário:
Oi, Astrid:
Perdemos mais um grande amigo
bj
Andre
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