A campanha conservadora contra exposição questionava o patriotismo dos responsáveis pela exposição. Alegava que, por tornar desnecessária uma sangrenta invasão do Japão, a bomba poupara muitas vidas. Em 1947 Truman tinha sido específico. Falou que salvara 250 mil vidas americanas. Depois elevou o número a meio milhão. Mais tarde, um milhão. E afinal, “milhões”. Documentos militares só diziam 20 a 60 mil.
Argemiro Ferreira
No atual debate internacional exorcizam-se como loucos os governantes do Irã e da Coréia do Norte, acusados de buscarem armas nucleares. Mas não se fala que o único país a usar tais armas – não uma, mas duas vezes; não contra alvos militares, mas populações civis – é precisamente o mais veemente nas denúncias. Nem Stalin, vilão dos vilões no discurso dos EUA na guerra fria, praticou tal atrocidade.
Para alguns estudiosos, as bombas atômicas contra Hiroshima e Nagasaki, há 64 anos, não foram o ato final da II Guerra Mundial, mas o primeiro da guerra fria, cuja data de nascimento pode ter sido aquele 6 de agosto. Tal questão está na raiz do debate sobre as razões invocadas para a decisão do presidente Harry Truman – controvérsia reaberta nos EUA em 2005, por causa da exposição do avião Enola Gay no Museu Aéreo-Espacial do Smithonian Institution.
No projeto original dos curadores da instituição, na exposição a réplica da superfortaleza voadora B-29 que lançou a bomba em Hiroshima estaria acompanhada das imagens e informações sobre os efeitos causados pela explosão. Ante vigorosa pressão conservadora, o projeto foi drasticamente reduzido. Mas a American University de Washington decidiu fazer outra exposição, na qual exibiu a destruição que o Smithsonian, envergonhado, optou por esconder do público.
A tragédia das cidades japonesas
A campanha conservadora contra exposição questionava o patriotismo dos responsáveis pela exposição. Alegava que, por tornar desnecessária uma sangrenta invasão do Japão, a bomba poupara muitas vidas. Em 1947 Truman tinha sido específico. Falou que salvara 250 mil vidas americanas. Depois elevou o número a meio milhão. Mais tarde, um milhão. E afinal, “milhões”. Documentos militares só diziam 20 a 60 mil.
Em 1965 o professor Gar Alperovitz, com base em vasta documentação, refutara (no livro Atomic Diplomacy: Hiroshima and Potsdam) a tese de que a bomba poupara vidas daquela forma. E 30 anos mais tarde constataram-se duas realidades críticas: 1. havia um abismo cada vez maior entre o que os historiadores sabiam e o que fora dito ao público; 2. poucas questões controvertidas ainda restavam.
Não se deve confundir – advertiu ele – o debate da eventual necessidade militar de se usar a bomba (para poupar vidas e apressar o fim da guerra) com a questão do ataque a Pearl Harbor ou a brutalidade dos militares japoneses – bombardeio de Shangai, saque de Nanking, prostituição forçada de mulheres coreanas, a marcha da morte de Bataan, torturas e assassinatos de prisioneiros de guerra, etc.
Se há quatro décadas a linha de raciocínio de Alperovitz era às vezes rejeitada como “revisionismo” ou “esquerdismo”, hoje existe – como chegou a escrever J. Samuel Walker, historiador-chefe da Comissão Regulamentadora Nuclear dos EUA – “o consenso de que a bomba não era necessária para evitar uma invasão do Japão e por fim à guerra em prazo relativamente curto”.
Para Walker, o exame acadêmico cuidadoso de registros, documentos e manuscritos revelados nos últimos anos “aumentou grandemente nossa compreensão sobre as razões da administração Truman para usar as bombas contra o Japão. Especialistas ainda discordam sobre certos pontos, mas questões críticas estão respondidas”. Entre elas o fato de que havia alternativas – e que Truman e seus assessores sabiam.
Aqueles documentos devastadores
Em artigo para a revista Foreign Policy e em outro livro (The Decision to Use the Atomic Bomb) Alperovitz referiu-se há 14 anos a esse reconhecimento de que já participam – às vezes enfaticamente, mas nem sempre – até alguns historiadores ortodoxos. Robert Messer, da Universidade de Illinois, considerou certos documentos (antes secretos, mas já então liberados) “devastadores” para a idéia tradicional de que a bomba era a única maneira de evitar uma invasão.
Ao morrer, a 22 de abril de 1945, o presidente Franklin Roosevelt não tinha informado o seu vice Harry Truman sobre a existência do secretíssimo Projeto Manhattan. Só 10 dias depois o secretário da Guerra, Henry L. Stimson, comunicou o fato ao novo presidente. Ao mesmo tempo, enfatizou o provável efeito decisivo da bomba na política externa. Stimson referiu-se então à arma como “a grande carta” (the master card) dos EUA no jogo diplomático.
Até então o governo americano reclamava garantias do ditador Josef Stalin (elas seriam dadas na conferência de Potsdam) de que o União Soviética declararia guerra ao Japão três meses depois da derrota alemã – consumada oficialmente a 8 de maio. Isso porque a superarma ainda não tinha sido testada quando Truman embarcou no encouraçado USS Augusta, a 8 de julho, para a cúpula de Potsdam.
Byrnes na linha dura – contra Stimson
Os americanos, que tinham decifrado os códigos japoneses, conheciam o teor das mensagens secretas trocadas pelos japoneses, nas quais ficava claro que se Washington concordasse com a permanência no trono do imperador Hirohito (o que iria acontecer após Hiroshima e Nagasaki) não haveria obstáculo à rendição. E que Hirohito já decidira intervir para por fim à guerra.
Stimson não acompanhou Truman no Augusta. Embora encarasse a bomba como master card, defendeu junto ao presidente a idéia – exposta antes pelo secretário Adjunto da Defesa John McCloy, numa reunião na Casa Branca – de um plano para a rendição japonesa que combinasse a aceitação da permanência do imperador no trono com a ameaça de lançamento da bomba.
Para Stimson, era importante “uma advertência ao Japão cuidadosamente calculada” antes de se usar a bomba. Mas o secretário de Estado James Byrnes tinha maior ascendência sobre Truman, de quem fora o mentor no Senado. E era contrário a qualquer tipo de concessão aos japoneses, preferindo chamar atenção para as atrocidades deles contra prisioneiros de guerra americanos.
Fonte: Blog do Argemiro Ferreira
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