terça-feira, 1 de dezembro de 2009

ENTREVISTA - "TUDO O QUE É CULTURAL TEM COMO FUNDAMENTO O NATURAL..."




A coordenação de pesquisa do NCPAM de forma propositiva submete apreciação de todos, mas em particular aos formuladores de políticas públicas, a entrevista do mestre Carlos Fernando de Moura Delphim, que é engenheiro-arquiteto formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o principal responsável pela restauração do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde permaneceu de 1977 até 1985 trabalhando. Moura Delphim, assim conhecido no contexto acadêmico, foi o pioneiro na defesa dos jardins históricos no Brasil, passando a tratá-los como bens culturais segundo as normas da UNESCO. O ofício do mestre tem sido projetos e planejamento para manejo e preservação de sítios de valor paisagístico, histórico, natural, paleontológico e arqueológico, assim como o Encontro das Águas e os Sítios Paleontológicos das Lajes no município de Manaus. É discípulo de Burle Marx e, hoje, o paisagista favorito do mestre Oscar Niemeyer. Na entrevista concedida a Folha do do Meio Ambiente (25/05) fala com fluência do seu trabalho, enaltecendo o quanto é necessário a chancela do poder público para preservação desse patrimônio tão ameaçado no Brasil.

FMA – O Brasil se preocupa com suas paisagens culturais?

Moura Delphim – No momento, sim. Daí a portaria 127 do Iphan que estabelece a chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Eu, particularmente, sempre me preocupei com a não existência nos órgãos culturais de uma preocupação com a preservação de paisagens, como os órgãos ambientais demonstraram com a conservação da natureza. Uma preservação conjunta do homem e de um meio natural que, embora significativamente alterado sob o ponto de vista do meio ambiente, ainda assim constituem uma unidade com importantes significados ou valores culturais.

FMA - O Estado protege o bem natural e esquecia o bem cultural?

Moura Delphim – Mais ou menos isto. Enquanto a legislação ambiental protege as unidades de conservação, as feições mais significativas da relação do homem com o mundo natural ficam totalmente desguarnecidas. Por exemplo, unidades como a floresta Atlântica são protegidas por uma infinidade de leis, enquanto exemplos de relação equilibrada do homem com a natureza, como ocorre nos Pampas e no Cerrado, não gozam do menor reconhecimento. Será que não são igualmente dignas de esforços para o reconhecimento de seu valor e de medidas para sua proteção as paisagens rurais como um vinhedo no Sul ou as velhas fazendas de café no Sudeste? Uma fazenda de cacau no sul da Bahia ou engenhos de açúcar no Nordeste com todo o patrimônio tecnológico ainda preservado, será que não devem compor uma paisagem cultural? Felizmente o governo brasileiro, pelo Iphan, vem agora cobrir esta lacuna cultural.

FMA – Há outros exemplos que correm risco de degradação?

Moura Delphim – Há sim. Existem muitas outras regiões, onde a marca do homem convive em perfeita harmonia com a natureza, que precisam ser preservadas. A verdade é que os pampas, caatinga, cerrado e a floresta amazônica apresentam incontáveis modelos de convivência harmoniosa e sustentável entre homem e natureza. E estes modelos vêm sendo ameaçados de destruição. O plantio de árvores para produção de celulose e de cana-de-açúcar para combustível transforma em lixo ou gases poluentes, a riquíssima biodiversidade.

FMA – Quando nasceram as discussõesl?

Moura Delphim
– Esta discussão sobre paisagem cultural nasceu após a Convenção para Proteção do Patrimônio Cultural Natural da Unesco, em 1972. A Convenção produziu uma Carta Internacional, exprimindo uma visão dicotômica, senão antagônica, entre cultura e natureza. Mais tarde, ao reconhecer o equívoco, a Unesco passou a adotar apenas uma denominação simplificada para a Convenção, retirando-lhe o Cultural e Natural e passando a considerar a indissociabilidade dos dois conceitos. Porque tudo o que é cultural tem como fundamento o natural. E tudo o que é natural somente pode ser percebido e reconhecido pelo homem, por meio do que é cultural.

FMA – Não vem aí mais um embate ambiental entre preservacionistas e desenvolvimentistas?

Moura Delphim – A paisagem cultural não é uma declaração compulsória. É uma decisão democrática da população. Expressa a vontade que tem cada grupo de proteger os cenários mais valiosos de sua sociedade. Respondendo a pergunta: a declaração de Paisagem Cultural convive com as transformações inerentes ao desenvolvimento econômico e social sustentáveis. Aliás, valoriza a motivação responsável pela preservação do patrimônio.

FMA – Podia dar mais exemplos de paisagens culturais?

Moura Delphim – Vamos dar alguns exemplos e sobre vários aspectos: Histórico: o sítio do Descobrimento, as margens plácidas do Ipiranga, o sítio da casa de José de Alencar em Fortaleza. Artístico: seria qualquer paisagem retratada desde a chegada dos viajantes europeus no século XIX, como os jardins de Glaziou e de Burle Marx. Geológico: os penhascos do Rio de Janeiro, o Vale do Cariri, a Ilha do Bananal, em Goiás, e o deserto do Jalapão, em Tocantins. Científico: dentre os muitos sítios de valor geológico e paleontológico, o que me ocorre mais imediatamente é a Pedra do Letreiro, em Souza, Paraíba. Trata-se de, um sítio de icnofósseis, com pegadas petrificadas de um dinossauro, o primeiro documento científico do Brasil. Geomorfológico: as impressionantes formações rochosas com efeitos pareidólicos (2) que são os inselbergs* (3) de Quixadá, no Ceará ou a Pedra do Lagarto e o Frade e a Freira no Espírito Santo ou a Pedra da Boca, na Paraíba; Espeleológico: são as cavernas tombadas pelo Iphan como as grutas Azul, de N. S. Aparecida, em Bonito (MS), Terra Ronca (GO)s e outras. Vale lembrar que a responsabilidade pelo patrimônio espeleológico nacional é atribuição legal conferida exclusivamente ao Ibama, salvo quando protegidas pelo tombamento. Hidrológico: como as Águas Emendadas no Distrito Federal ou o encontro de águas de diferentes cores em rios na Amazônia, ou todo o percurso do Rio São Francisco. Arqueológico: como São Raimundo Nonato no Piauí, Sete Cidade no Piauí. Aí se registra uma das mais comoventes cenas familiares de um cotidiano perdido há milênios: um pai pré-histórico grava a forma de sua mão colocando-a contra uma parede de pedra e pulverizando todo o redor com um pigmento terroso. Em uma pedra bem mais baixa, vê-se a mesma inscrição, de uma mãozinha infantil, certamente do filho copiando o que estava sendo feito pelo pai. Mortos há mais de mil anos podem continuar tocando nossos corações com gestos de amor e ternura. Rural: como as antigas fazendas de café e cacau que desaparecem para dar lugar a perniciosos monocultivos. Simbólico: como Sítio de Porongos, onde ocorreu o assalto das tropas imperiais que provocou a mortandade dos lanceiros negros propositalmente separados do restante das tropas e desarmados por Davi Canabarro e que hoje é um monumento ao sonho humano de liberdade. Religioso: como o sítio onde apareceu a padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida e onde se construiu sua Basílica. Tudo o que é cultural tem como fundamento o natural. E tudo o que é natural somente pode ser percebido e reconhecido pelo homem, por meio do que é cultural.

GLOSSÁRIO

(2) Pareidolia descreve um fenômeno psicológico que envolve um vago e aleatório estímulo, em geral uma imagem ou som, sendo percebido como algo distinto e significativo. Exemplos comuns incluem imagens de animais ou faces em nuvens, em janelas de vidro e em mensagens ocultas em músicas executadas do contrário. A palavra vêm do grego para - junto de, ao lado de - e eidolon - imagem, figura, forma. A pareidolia é um tipo de ilusão ou percepção equivocada, em que um estímulo vago ou obscuro é percebido como algo claro e distinto. Por exemplo, quando alguém vê o rosto de Jesus nas descolorações de uma rosquinha queimada.

(3) Inselbergs o termo vem do alemão, "monte ilha", é um relevo que se destaca em seu entorno já aplainado, caracterizando-se por ser um relevo residual. São monólitos. No Brasil, é comum Inselbergs graníticos ou granitóides, tendo então uma forma esfeirodal e de alta inclinação, cerca de 40º. É o caso do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Esses relevos são considerados "testemunhos", pois são os relevos que resistem ao processo de pediplanação e pedogênese

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