Orlando SAMPAIO SILVA*
Posso começar este artigo com uma afirmação categórica: considero que Claude Lévi-Strauss foi o mais importante antropólogo na história da Antropologia Social. Formado em Direito e Filosofia, tendo, na juventude, estudado música, aos 35 anos de idade veio para São Paulo, integrando a Missão Francesa, que, ao lado de professores brasileiros, participaram dos primeiros tempos da Universidade de São Paulo-USP. Na Universidade paulista nascente, lecionou Sociologia. Porém, sua vontade de conhecimento e seus interesses especulativos estavam voltados para os grupos indígenas do interior do Brasil.
A partir desse ânimo epistemológico, que Lévi-Strauss, em 1935, partiu para Mato Grosso ao encontro de sociedades indígenas pouco conhecidas pela Etnografia, a saber: Kadiwéu, Borôro, Nambikwára e Tupi-Kawahib. Foi no percurso especulativo que passou ao longo de meses com esses grupos indígenas, um após o outro, observando, registrando, documentando, fazendo contato social, humano, que Lévi-Strauss deu início à sua carreira de antropólogo, realizando suas primeiras descrições etnográficas e experimentando as agruras do trabalho de campo nas florestas e em grupos tribais localizados distantes da “civilização”, quase todos virgens da observação etnológica.
Veja-se o que diz o jovem Lévi-Strauss , reportando-se a essa primeira
experiência: “Não há lugar para a aventura na profissão de etnógrafo; ela é somente a sua servidão, pesa sobre o trabalho eficaz com o peso das semanas ou dos meses perdidos no caminho; das horas improdutivas enquanto o informante se esquivava; da fome, do cansaço, às vezes da doença; e, sempre, dessas mil tarefas penosas que corroem os dias em vão e reduzem a vida perigosa no coração da floresta virgem a uma imitação do serviço militar... Que sejam necessários tantos esforços e desgastes inúteis para alcançar o objeto de nossos estudos não confere nenhum valor ao que se deveria mais considerar como o aspecto negativo do nosso ofício” (“Tristes Trópicos” [“Tristes tropiques”, 1955], Cia. das Letras, São Paulo, 2004). Os antropólogos que se lançam (nos lançamos) à pesquisa de campo de grupos indígenas em meio às florestas tropicais compreendem, por experiência própria, essas dramáticas palavras de Lévi-Strauss.
Judeu que era, Lévi-Strauss foi perseguido pelo nazismo na Europa, enfrentou dificuldades no Brasil, que se encontrava sob a ditadura de direita de Getúlio Vargas, e refugiou-se nos Estados Unidos, onde pôde trabalhar no meio universitário e pesquisar, estruturar suas anotações de campo; escrever textos acadêmicos, conviver com colegas importantes na Universidade, pensando as formulações da Antropologia que queria e viria instituir.
Lévi-Strauss nasceu na Bélgica, em uma família judaico-francesa. Não era religioso; em verdade, praticamente, sua única experiência religiosa se efetivou quando, adolescente, conviveu com seu avô rabino. Cidadão francês, viveu na França, exceto os períodos passados no Brasil e nos Estados Unidos.
Instituidor principal do estruturalismo nas ciências humanas, particularmente, na Antropologia, Lévi-Strauss, em sua tese doutoral -“As Estruturas Elementares do Parentesco” (“Les Structures Elémentaires de la Parente”, 1947) -, desenvolve aspectos fundamentais de sua teoria antropológica. Nesta obra, o antropólogo refere: “Entendemos por estruturas elementares do parentesco os sistemas nos quais a nomenclatura permite determinar imediatamente o círculo dos parentes e os dos aliados, isto é, os sistemas que prescrevem o casamento com um certo tipo de parente. Ou, se preferirmos, os sistemas que, embora definindo todos os membros do grupo como parentes, dividem-nos em duas categorias, a dos cônjuges possíveis e a dos cônjuges proibidos”. Nestas proibições encontram-se os tabus de incesto, configurações culturais estas que, com a da reciprocidade constituem fatores cruciais das estruturas vitais das sociedades tribais. Com sua obra em quatro volumes, “As Mitológicas” (“Mythologiques”) -“Le cru et le cuit”, 1964, “Du miel aux cendres”, 1967, “L’Origine des manières de table”, 1968, e “L’ Homme nu”, 1971 -, complementada com “La voie des Masques” (1975) e “Histoire de Lynx” (1991), Lévi-Strauss complementa suas formulações e dá corpo definitivo ao seu pensamento e à sua teoria antropológica estruturalista.
Nas “Mitológicas”, o autor exprime quanto universal é o ser humano. Por um lado, o eu, o si, o próprio, e, por outro lado, o outro, a alteridade constituem, em suas essências ontológicas, uma categoria transcendental que, em sua unicidade, perpassa por sociedades e culturas, independente dos locais, das diferenças geográficas e do tempo. Lévi-Strauss escreveu: “Na nossa perspectiva, por conseguinte, o eu não se opõe mais ao outro do que o homem se opõe ao mundo; as verdades aprendidas através do homem são ‘do mundo’ e são importantes por este fato.” (in “O Pensamento Selvagem” [“La pensée sauvage”, 1966], Cia. Ed. Nacional, S. Paulo, 1970). As seguintes palavras de nosso autor exibem, em seu pensamento, quão universal e absoluto é o ser humano em sua plenitude: “... a conjunção de um homem e uma mulher representa, em miniatura e num outro plano, um acontecimento que lembra, simbolicamente falando, a tão temida união entre o céu e a terra” (in “O Cru e o Cozido”, Ed. Brasiliense, S. Paulo, 1971).
Neste ser unívoco, enquanto ser, no entanto, está presente a diversidade social e cultural em sociedades que se distribuem, no tempo e no espaço, desde os contextos ditos “civilizados” até os considerados “primitivos”. Evidentemente os critérios analíticos que levam a essa classificação qualitativa não levam em conta fatores éticos. Para aclarar esta assertiva basta lembrar que foi em meio a sociedades consideradas “civilizadas” que, em pleno Século XX, tiveram lugar duas guerras mundiais com milhões de vítimas, o gulag e, as ideologias e formas de governar fascista-nazista e suas expressões mais terrificantes, tais sejam as torturas, os campos de concentração e o holocausto
Reflitamos com Lévi-Strauss, quando esse notável pensador diz: “As sociedades ditas “primitivas” nos aparecem como tais, sobretudo porque foram concebidas por seus membros para durar. Sua abertura para o exterior é muito reduzida, e o que se chamaria de ‘espírito endógeno’ as domina. O estrangeiro, mesmo vizinho próximo, é considerado sujo e grosseiro, freqüentemente chega-se até a negar-lhe a qualidade de homem. Mas inversamente, a estrutura social interna tem uma trama bem mais cerrada, um cenário bem mais rico do que nas civilizações complexas. Nada é deixado ao acaso, e o duplo princípio de que é preciso um lugar para cada coisa e que cada coisa deve estar em seu lugar, impregna toda a vida moral e social. Explica também como sociedades de nível técnico-econômico muito baixo podem experimentar um sentimento de bem-estar e plenitude, e que cada uma delas acredite oferecer aos seus membros a única vida que vale a pena ser vivida. Talvez elas lhes proporcionem, assim, mais felicidade.” (in “Antropologia Estrutural Dois” [“Anthropologie Structurale Deux”, 1973], Ed. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1976).
Lévi-Strauss tinha grande percepção e sensibilidade em face das injustiças sociais. Na juventude, esteve vinculado ao Partido Socialista Francês. Veja-se a referência feita por nosso autor à situação, por ele testemunhada, em que se encontravam os seringueiros da Amazônia, na década de 30: ”Mas o que dizer dos seringueiros a cuja agonia minhas derradeiras semanas de permanência permitiram-me assistir”. Em seu “Tristes Trópicos”, Strauss faz essa assertiva e elabora todo um capítulo - “Seringal” - no qual descreve o drama social da exploração de seringueiros-“aviados” por patrões-“aviadores”.
No dia 1° de novembro do ano em curso, morreu Claude Lévi-Strauss, em Paris, quando faltava pouco mais de um mês para que completasse 101 anos de idade. A quando da passagem da data do centenário de sua existência havia escrito um texto, valendo das minhas comunicações com o professor Lévi-Strauss, que vem a seguir:
Hoje, 28 de novembro de 2008, dia em que escrevo este texto, Claude Lévi-Strauss está completando 100 anos de idade. Ao longo de minha vida profissional tive alguns momentos de relacionamento social com o antropólogo belgo-francês. Nos últimos anos 60 dirigi-me a ele por carta manifestando o meu projeto de fazer o doutorado em Paris sob sua orientação. O notável professor tomou conhecimento de minha postulação e me respondeu por carta dizendo de sua satisfação em ter-me como seu orientando na pós. Porém, lamentavelmente, por força das circunstâncias da vida, eu me encontrava impedido de solicitar bolsa de estudo do CNPq. (havia sido “aposentado” como vítima do AI-5), e ter esta seria condição necessária para que eu pudesse me manter com minha família na França.
Perdi essa oportunidade ímpar na vida de um professor universitário. Desde então mantive com o professor Lévi-Strauss uma correspondência a largos intervalos, quase sempre em função do encaminhamento de trabalhos acadêmicos meus para sua leitura. Sempre recebi respostas de Lévi-Strauss acusando os recebimentos e fazendo seus comentários, que muito me satisfaziam.
Claude Lévi-Strauss, certamente, é o mais importante antropólogo do século XX e, a figura mais exponencial viva na ciência antropológica no Mundo atual. Na academia, liderou a constituição da antropologia estruturalista. Ao lado de Lacan, na psicanálise, de Foucault, na filosofia e de Barthes, na teoria literária, Lévi-Strauss (que nem sempre esteve de acordo com os postulados teóricos destes autores) construiu a mais importante teoria do pensamento erudito do século XX no campo das ciências humanas, traçando as diretrizes para a concretização de pesquisas empíricas e, de análises e interpretações dos mais complexos fatos relativas às sociedades e às culturas humanas, criando modelos de abordagens e de sínteses teóricas.
Lévi-Strauss se debruçou sobre o evolver das sociedades e culturas e desvendou nesses complexos sociais forças vitais que impulsionaram o homem da fase em que ele era apenas mais um personagem da natureza para se tornar criador de complexos sociais e de culturas. Viu esse poder propulsor no tabu do incesto e na reciprocidade, fenômenos complementares entre si. Através deles, o antropólogo percebeu as formas como os homens se organizam nos núcleos embrionários familiais. O tabu de incesto constituía e ainda constitui as proibições matrimoniais, e a reciprocidade dinamizava e ainda dinamiza, por um lado, a troca de mulheres, de esposas, e, por outro lado, os compromissos efetivos e duais no âmbito econômico, no trabalho, na obtenção e distribuição de alimentos etc. Tendo como subjacentes estes fulcros fundantes, são construídas as estruturas sociais nas sociedades com as metades exogâmicas, os clãs, as linhagens de parentesco matri e patrilineares, as siblings, as regras dos sistemas de casamento e as organizações parentais.
Sua monumental obra “As estruturas elementares do parentesco” (1947) é modelar neste campo de abordagem teórica com orientação para a prática das pesquisas empíricas.
Strauss, também e entre tantas outras contribuições basilares à antropologia, escreveu a tetralogia das “Mitológicas” – “O cru e o cozido” (1964), “Do mel às cinzas” (1967), “A origem do comportamento à mesa” (1968) e “O homem nu” (1971).
Com esta obra extensa, profunda e fecunda, Lévi-Strauss estuda expressões estruturais de mitos de grupos tribais de diversos lugares do mundo, especialmente do continente americano. Dando uma contribuição paradigmática e ontológica à percepção da universalidade do mito e do homem como ser e enquanto ser, demonstrou como determinados mitos são recorrentes entre povos tribais que vivem tão distantes entre si, que jamais se contactaram. Criou fórmulas apodícticas, para a interpretação dos mitos, polifonicamente inspirado nas composições sinfônicas especialmente na obra de Wagner, sendo que este fez a análise estrutural dos mitos na e com a música. Para a interpretação dos códigos míticos, elas também têm a aparência de equações matemáticas, tais como os “mitemas”.
Com formação em Direito e em Filosofia, muito jovem, Lévi-Strauss veio ao Brasil, em 1935, integrando a missão francesa, que fortaleceu nosso ensino e pesquisa universitários ao integrar-se no corpo docente da Universidade de São Paulo-USP recém-fundada. Foi, assim, um pioneiro e por que não dizer um pai fundador da antropologia como reflexão e prática científica em nosso país. No tempo em que esteve no Brasil, desenvolveu pesquisas junto a algumas sociedades indígenas, tais como os Cadiwéu e os Borôro, esteve com um grupo Tupi-Guaraní e, principalmente, com os Nambikuára, sendo este o grupo com o qual mais se demorou. Foram os seus primeiros contatos com povos indígenas em sua prática acadêmica. Em 1939, Lévi-Strauss retornou à França e levou coleções etnográficas que havia recolhido em nosso país para o Museu do Homem. Em 1940, tentou retornar ao Brasil em face do avanço das tropas nazistas sobre a França, mas teve seu pedido de ingresso no país recusado pelo governo brasileiro, que, à época, em plena ditadura Vargas, se recusava a receber judeus. No ano seguinte, o eminente antropólogo foi recebido pelos Estados Unidos, onde lecionou na New School for Social Research, pesquisou grupos indígenas e colaborou com a Smithsonian Institution, entre outras atividades acadêmicas. Em 1948, defendeu, na Sorbonne, sua tese sobre “As estruturas elementares do parentesco”.
Em 1950, com a ajuda da UNESCO, visitou a Índia e o Paquistão Oriental. No mesmo ano, assumiu, em Paris, uma diretoria na Escola Prática de Altos Estudos. No ano de 1955, Lévi-Strauss publicou “Tristes Trópicos”, obra seminal com certo caráter autobiográfico, na qual rememora sua estada no Brasil na década de 30 e, inclusive, discorre sobre os grupos tribais que aqui pesquisou. Em 1959, foi eleito para a cátedra de Antropologia Social do Collège de France. Fundou, no Collège de France, em 1960, o Laboratório de Antropologia Social, lócus em que trabalhou pelo resto de sua vida. Em 1973 foi eleito e, no ano seguinte, foi recebido como membro da Academia Francesa.
Também integram sua extensa obra: “Race et Histoire” (1952), “Antropologia Estrutural” (1958), “O Pensamento Selvagem” (1962), ”Le totémisme aujourd’hui” (1962), “Antropologia Estrutural Dois” (1973), “La voie des masques” (1975), “Le regard éloigné” (1983), “De perto e de longe” (1988), “História de Lince” (1991), “Saudades do Brasil” (1994), entre outras.
(*) Doutor em antropológia, professor universitário e um dos parceiros do NCPAM.
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